É com a mesa cheia de cucas, bolinhos e doces que Elvida Ottilia Riger, 87 anos, de Linha Cipó, gosta de receber as visitas, especialmente os sete netos. As datas comemorativas, como Natal, Páscoa e Dia das Mães, são sinônimos de festa para ela, pois dias antes começa a preparar as comilanças.
Para a neta Dairine Roberta Renz, 27 anos, é normal chegar na vó Vida, como é chamada, e ter potes de bolachas, doces de frutas, roscas e cucas à disposição. “De manhã, ela já serve as cucas, normalmente de abacaxi, Kässchmier e coco”, diz a neta, que aprendeu a cozinhar com a avó. Outra receita famosa na família é o Butterdoss – bolacha de manteiga. “Até a manteiga é a vó quem faz. Isso é uma coisa que nunca falta nos potes, tem gosto de bolacha de vó”, comenta Dairine.
Na hora do almoço, a avó gosta de fazer galinhada, mas não é apenas o prato com maionese, como, segundo a neta, é a tradição na ‘cidade’. Vó Vida prepara a galinhada e ainda faz batata, aipim, massa caseira e as saladas, que normalmente, são maionese e repolho. “Faço isso para que todos comam e fiquem satisfeitos. Gosto de ter muitas opções, porque assim cada um mistura o que mais gosta”, explica a avó.
Outra motivação para ela ter a mesa sempre farta é que, na infância, não havia tantas opções. “Sempre tinha comida, mas o básico, como arroz, feijão e batata. Mas carne não tinha como hoje, porque não existia freezer para guardar, então era feito o charque. Por isso, gosto de ter bastante opções, fazer os almoços, com churrascos e sobremesas”, comenta a idosa.
A aposentada também reforça que a vida no interior é mais saudável e proporciona mais calma. “Às vezes, fico na casa do meu filho e estranho muito a correria de trabalhar e ir no mercado, prefiro meu canto simples e quietinho”, enfatiza a avó.
Receitas de vó
Para Dairine, que há 9 anos saiu da localidade, ir à casa da avó é uma terapia, pois é onde ela desacelera. “Na cidade, a vida é agitada, não temos quase tempo de cozinhar, então, o almoço é arroz, feijão e carne, diferente daqui que tem muitas coisas”, ressalta.
Essa mudança de rotina, faz Dairine querer aprender mais com a avó, por isso, pelo menos a cada dois fins de semanas, ela vai para Linha Cipó. “Gosto de fazer puxa-puxa, bolachas e bolos junto com ela, assim aprendo os ‘segredos’ das receitas e posso fazer em casa depois.”
Além do tempo, a neta lembra que no interior, a maioria dos ingredientes é plantada na horta, e isso facilita para cozinhar. “Na cidade, tudo temos que comprar no mercado, então é um empecilho para ter variedades, já na colônia é só ir pegar atrás de casa”, reflete Dairine.
Na hora de voltar para casa, além de sair com a ‘barriga cheia’, Dairine também leva um ‘ranchinho’ da casa da vó. “Sempre volto com uma sacola, com ovos, banha, pão, carne, verdura, o que tiver que dá para levar eu levo, porque o gosto muda. Na verdade, o gosto é outro, é melhor”, argumenta. A avó brinca que é um ‘grande rancho’ de produtos da colônia. “O que posso compartilhar com os netos e filhos, eu compartilho”, afirma a avó.
Hábitos alimentares herdados dos colonizadores
*Por Juliana Bencke
Assim como a tradição da mesa farta, diversos pratos típicos consumidos na região, até hoje, são heranças dos colonizadores. Doutora em Ciências Sociais, a professora universitária aposentada Lissi Bender explica que, para se entender os hábitos alimentares nas colônias alemãs, é preciso voltar o olhar para o passado.
No livro Spurensuche – Rastros da presença alemã, ela atenta para o fato de que os alemães vieram de uma terra na qual, durante mais da metade do ano, reina o frio e a terra, coberta de neve, não produz alimento algum. “Ao longo de séculos, os alemães passaram por muita carestia [escassez de recursos], por diferentes motivos, principalmente climáticos e históricos”, contextualiza Lissi, que é graduada em Língua, Literatura e Cultura Alemã.
Por conta disso, os imigrantes germânicos trouxeram para o Rio Grande do Sul conhecimentos e hábitos de armazenagem de mantimentos por longos períodos, além da prática de aproveitar os alimentos da melhor forma possível. “Economizar, guardar e preservar fazia parte de seu modo de vida”, observa a professora aposentada.
Um dos exemplos disso era o Sauerkraut, ou seja, chucrute, feito com repolho. Da mesma forma, os pepinos eram guardados inteiros em grandes cântaros de cerâmica ou em vidros com sal e água.
“Com as frutas, eles faziam compotas ou as secavam. Sementes eram armazenadas. As carnes e linguiças eles defumavam ou eram cozidas. Guardavam também carnes fritas em cântaros cobertos de banha e assim garantiam a proteína”, cita a estudiosa da cultura alemã. “Era preciso plantar, colher, armazenar, poupar para não precisar passar fome durante o infindável tempo invernal”, acrescenta.
No novo território, os imigrantes encontram uma realidade diferente, com possibilidade de até três colheitas por ano, por conta do inverno menos intenso e em período mais curto. Apesar da abundância na nova terra, o espírito de vida dos imigrantes refletiu no modo de viver no Rio Grande do Sul.
“Era preciso não deixar nada se perder, para se ter quando a carestia fosse voltar. Havia-se aprendido isso na vida. Para isso, empregaram seus conhecimentos trazidos de além-mar, que haviam sido construídos em meio a séculos de adversidades”, explica Lissi.
Curiosidades
– O açúcar era um alimento caro no passado, pois era obtido a partir da cana-de-açúcar que não cresce em clima frio e, portanto, precisava ser importada. Por isso, as delícias doces faziam parte de momentos especiais ou eram adoçados com mel.
– Na falta de cereais a que estavam habituados para fazer pão, os imigrantes integraram a farinha de milho, com a qual faziam Milhebrot.
– Da cana-de-açúcar, aprenderam a extrair a calda, a Zuckerrohrbrühe e, com ela, a produzir o açúcar mascavo e o melado.
– O melado era fervido com batata-doce, abóbora, laranja ou outras frutas, e se produzia assim o Schmier – termo procedente da região do Hunsrück para denominar o doce em pasta para passar no pão, que os falantes de língua portuguesa transformaram em chimia.
Fonte: Livro Spurensuche – Rastros da presença alemã, de Lissi Bender.