Evandoir e a esposa Geni, acompanhados dos filhos Augusto e Davi, no galpão onde as vacas ficavam confinadas (Foto: Taís Fortes)
Evandoir e a esposa Geni, acompanhados dos filhos Augusto e Davi, no galpão onde as vacas ficavam confinadas (Foto: Taís Fortes)

O galpão que antes abrigava cerca de cem vacas em lactação e representava agitação pelo trabalho empregado na produção leiteira agora gera estranheza pelo silêncio. Conhecida pelos investimentos na propriedade e pela ousadia em buscar ideias inovadoras para qualificar a produção, a família de Evandoir Gaspar Heinen, 50 anos, em Vila Arroio Bonito, interior de Mato Leitão, decidiu encerrar o trabalho com a produção leiteira. Ele era um dos maiores produtores de leite do município.

A atuação no segmento vem de décadas e, no caso de Evandoir, iniciou na juventude como uma herança de algo que já era feito pelo pai. A esposa, Geni Konrad Heinen, 49 anos, e os filhos, Augusto Henrique, 25 anos, e Davi Eduardo, 18 anos, também adotaram a profissão. No entanto, os jovens não viram nela motivação para encararem a sucessão rural, especialmente pela desvalorização em relação ao trabalho realizado e o valor recebido por ele.

A ideia de abandonar a atividade foi tomada depois de muitos cálculos e ponderações. Desde o ano passado a família discute o assunto internamente, especialmente após ter passado por três anos consecutivos de estiagem e perceber um aumento na desvalorização no valor pago pelo litro do leite. “Há seis meses o valor começou a cair. No inverno, em vez de subir, ele diminuiu”, recorda Geni. “Não recebemos mais o que é justo pelo trabalho”, complementa Evandoir.

Para eles a importação do leite e produtos derivados contribuiu para a falta de valorização da cadeira produtiva nacional. Outro ponto que pesou na decisão foi a necessidade de dedicação diária ao trabalho, de segunda a segunda, sem folgas no fim de semana ou feriados. “A última vez que conseguimos viajar para a praia faz mais de 20 anos”, observa Geni.

A família trabalhou de forma integrada com a Cooperativa Languiru ao longo dos últimos 17 anos. Atualmente, o plantel era formado por cem vacas em lactação, além de 20 animais considerados secos – que já encerraram o período de produção -, 30 terneiras e 17 novilhas. Quando decidiram encerrar as atividades, os produtores tentaram repassar o rebanho para outro agricultor do ramo leiteiro, mas as negociações não progrediram.

Por isso, os animais foram vendidos para o abate, como uma alternativa para recuperar parte do valor investido. “A enchente também agravou a nossa situação, porque ficamos duas semanas sem ração em razão dela, e acelerou a nossa decisão”, explica Evandoir, que era um dos maiores produtores de leite da Cidade das Orquídeas. A produção e a venda de pré-secado também foi paralisada e eles apenas buscam comercializar o que já têm em estoque.

Imagem de julho de 2020 mostra como era o sistema de compost barn que a família usava na propriedade (Foto: Taís Fortes/Arquivo FM)

Adaptação

O encerramento da atividade ainda é muito recente – aconteceu no início de maio – e a família se ajusta para o futuro. Por enquanto, eles decidiram que vão deixar ‘parada’ a estrutura do compost barn onde as vacas eram alojadas. Além disso, dos quatro tratores que têm, três serão vendidos.

As máquinas do kit usado para a fenação também serão comercializadas. “Não compensa ficar com elas só para prestar serviço. São cinco implementos e um investimento de mais de R$ 400 mil. O pré-secado vende bem em períodos de invernos muito rigorosos ou seca”, observa Evandoir.

Os cerca de 30 hectares de áreas próprias, onde plantavam milho para fazer silagem com o objetivo de alimentar o rebanho, serão arrendados. A família também tem um silo de 30 hectares de milho que precisa ser vendido. Sobre a renda familiar, os dois filhos já procuram por emprego, preferencialmente com carteira assinada. O mesmo deve ser feito por Evandoir e a esposa.

Apesar da certeza em relação à decisão tomada, Evandoir confessa que existe estranhamento com a nova realidade. “Acordávamos todo dia 3h45min para ir fazer a ordenha. Durante alguns dias eu continuei acordando nesse mesmo horário. Agora já consigo me levantar um pouco mais tarde. É estranho o silêncio quando subimos para o galpão, tudo é muito recente e ainda estamos digerindo. Mas estávamos sempre cansados e não tenho saudade nenhuma de acordar tão cedo”, compartilha.

Evandoir também fala sobre o desejo que a atividade volte a ser rentável para outros produtores que permanecem no segmento e lamenta que tantos agricultores tenham sofrido prejuízos com as enchentes. “O que mais dói é ver as pessoas que perderam tudo pela enchente e nós termos parado porque a atividade não é mais rentável.”
Ele também agradece o apoio recebido de todas as Administrações de Mato Leitão e dos técnicos do escritório municipal da Emater. “Tudo que conquistamos foi pelo leite, mas não queremos mais voltar a trabalhar com ele. Só se não tivermos alternativa.”

Investimentos dos produtores de leite

  • O agricultor Evandoir Heinen foi o primeiro de Mato Leitão a investir no sistema de confinamento chamado compost barn. De origem americana, na prática, o termo corresponde a um modelo inovador para alojar o rebanho, garantindo aumento do bem-estar animal e, assim, incremento na produção.
  • O investimento realizado entre 2018 e 2019, levando em consideração o tempo de obra e o início da utilização, foi de aproximadamente R$ 450 mil. O galpão para o confinamento dos animais tem 77 metros de comprimento e 25,5 metros de largura. Em julho de 2020, a reportagem da Folha do Mate esteve no local para divulgar o trabalho.
  • Outra atividade que era realizada pela família envolvia o uso de pré-secado para alimentar o rebanho. Os agricultores também foram os primeiros produtores rurais da Cidade das Orquídeas a adquirirem os implementos necessários para o serviço.
  • Além do uso na propriedade, eles vendiam o excedente para agricultores de municípios do Vale do Rio Pardo, como Santa Cruz do Sul, Vale do Sol, Vera Cruz, Sinimbu, Herveiras e Rio Pardo, e cidades do Vale do Taquari. O tema foi noticiado na Folha do Mate em fevereiro de 2021. A família também era reconhecida pelo investimento constante em melhoramento genético do rebanho.
Trabalho com o pré-secado que era realizado por Evandoir Heinen e a família também será encerrado (Foto: Taís Fortes/Arquivo FM)

Saiba mais sobre a rotina de um dos produtores de leite

• No inverno do ano passado, a produção média da família Heinen foi de 3,7 mil litros por dia, o que totalizou 111 mil litros no mês. Ano passado, antes do inverno, o valor máximo pago pelo litro de leite a eles foi de R$ 3,76. No último mês de trabalho, a produção caiu para 1,5 mil litros ao dia e 45 mil ao mês. O preço também despencou e foi para R$ 2,62.

• Na relação dos cem maiores produtores rurais de Mato Leitão por Valor Adicionado Fiscal (FAV) em 2023, o agricultor figurava na quinta posição, com um percentual de 2,44%. Além disso, o filho mais velho era o 45º, com uma representatividade de 0,38%.

• O número de produtores de leite em Mato Leitão no ano passado era 44. Juntos eles foram responsáveis pela produção de seis milhões de litros no ano. Em 2023, somente o Evandoir Heinen produziu na propriedade 1,2 milhão de litros

“Isso mostra o cenário da bovinocultura de leite”

A decisão da família Heinen, de Vila Arroio Bonito, é lamentada pela Secretaria Municipal de Agricultura e Meio Ambiente e pelo escritório local da Emater. Com essência agrícola, a representatividade do setor primário em Mato Leitão é de 52,441%. Entre as cinco principais atividades, o leite aparece na terceira posição. Ele é superado pelas aves e suínos. Depois, aparecem a soja e o milho, conforme informações referentes ao ano passado.

“Isso [a desistência de Evandoir e da família] mostra o cenário em que está a bovinocultura leiteira”, avalia o chefe do escritório da Emater, Rudinei Pinheiro Medeiros. De acordo com ele, a preocupação é ainda maior porque Evandoir sempre foi um produtor com potencial, que despontou e inovou na propriedade e era um dos maiores produtores de leite do município.

Para o profissional, o cenário de desvalorização do preço pago pelo leite, os anos seguidos de estiagem e o aumento no custo de produção são os principais fatores que desmotivam os agricultores desse segmento. “Questões externas, como a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, também colaboraram para o aumento nos valores dos fertilizantes”, acrescenta.

Secretário de Agricultura, João Machry, e chefe do escritório da Emater, Rudinei Medeiros, avaliam a situação (Foto: Taís Fortes)

Preocupação

Medeiros observa que Evandoir já havia comprado maquinários para facilitar o trabalho diário. “É uma atividade que exige muita dedicação”, comenta. Ele também salienta que, para Mato Leitão, o encerramento das atividades desse produtor representa uma perda significativa para o setor agrícola.

A partir da análise do cenário da produção leiteira nos últimos anos na Cidade das Orquídeas, ele explica que é possível perceber queda no número de produtores, grande parte associada à idade avançada e falta de sucessão. No entanto, o volume de produção se mantinha. “Um produtor que investia em tecnologia parar mostra a fragilidade do setor”, avalia.

O extensionista rural também ressalta que são necessárias políticas públicas voltadas ao setor e campanhas para a valorização do leite gaúcho e dos benefícios do consumo deste produto e seus derivados. “É preciso valorizar mais a cadeia produtiva do leite”, afirma.
As ponderações de Medeiros são compartilhadas pelo secretário de Agricultura e Meio Ambiente, João Carlos Machry. Segundo ele, que também tem envolvimento com a agricultura, a partir do acompanhamento feito pela pasta nos últimos anos, foi possível perceber que produtores menores de leite do município foram excluídos pelo mercado, especialmente pela necessidade de adaptação.

Para ele, a oscilação do preço pago pelo produto gera desmotivação. “Não tem como equilibrar. Nós nos preocupamos com isso, mas estamos de mãos amarradas. O Município oferece muitos programas de incentivo para tornar o setor primário o mais favorável possível”, lamenta.

Machry ainda salienta que, no caso específico de Evandoir, foi possível perceber que ele tentou se adaptar ao mercado. “Ele tinha resiliência e fez o possível para se manter.” O receio do secretário e do chefe do escritório da Emater é que mais produtores parem com a atividade também. “Ele não é o único que está com problemas. A cadeia está com grandes dificuldades de se manter e tornar rentável para os produtores”, analisa o secretário.