A rotina de Marieli da Silva, a agente comunitária de saúde de Linha Alto Paredão Pires, a localidade mais longínqua do Centro de Venâncio.
Colete azul, crachá e a bolsa preta pendurada de lado. Mas também um capacete com detalhes floridos, usado por uma jovem mulher pilotando uma Titan cinza entre os morros das divisas de Venâncio Aires com Boqueirão do Leão, Sinimbu e Santa Cruz do Sul. Os moradores sabem, já de longe, que ‘quem vem lá’ é a Mari, como é conhecida a agente comunitária de saúde em Linha Alto Paredão Pires, no interior de Venâncio.
Marieli da Silva, 31 anos, percorre diariamente as estradas sinuosas e íngremes da localidade que fica no extremo do mapa do município – são 60 quilômetros do Centro da cidade. Lá, onde a Unidade Móvel de Saúde vai uma vez por mês e o posto mais próximo fica a 35 quilômetros, Mari virou uma referência para a comunidade, já que também acaba levando parte do serviço público de saúde, nesse caso, na garupa de uma moto.
As distâncias, as demandas e o trabalho voluntário
Marieli da Silva tinha apenas 5 anos quando a família foi morar em Linha Alto Paredão Pires. Saíram de Campo Bom, onde primeiro tentaram a vida, depois de deixar o interior de Boqueirão do Leão. Voltaram, portanto, para uma região que lhes era conhecida para recomeçar e ficaram, trabalhando até hoje como agricultores, cultivando tabaco.
Mari cresceu, portanto, na localidade de Venâncio Aires que acabou ficando longe de tudo no que se refere ao seu próprio município. Só de Vila de Deodoro, onde está a capatazia responsável pela manutenção das estradas e a Unidade Básica de Saúde (UBS) referência de Paredão Pires, são 35 quilômetros de distância. O Hospital São Sebastião Mártir (HSSM), no Centro da cidade, está a 60 quilômetros. Muitas crianças também acabam estudando em escolas de Alto Paredão (Santa Cruz do Sul) ou Boqueirão do Leão, como foi o caso da própria Mari, na infância e adolescência. Historicamente, a localidade também sofre com uma demanda básica: a falta de água tratada, a qual está em vias de se resolver com a implementação de uma rede hídrica.
Conhecedora das necessidades da comunidade e querendo contribuir, Marieli começou como voluntária no ‘postinho’, que é como os moradores chamam o espaço do prédio da antiga Escola Alcebíades Moreira. É onde ocorrem atendimentos médico, odontológico, de enfermagem e farmácia, profissionais que chegam no local com a Unidade Móvel de Saúde – a equipe da Prefeitura sobe a ERS-422 uma vez por mês. “Comecei abrindo as salas e ajudava na limpeza. Antes disso já ia avisar de porta em porta quando a unidade móvel viria. Sempre gostei de ajudar”, conta Mari.

A Titan 150
Foram cerca de três anos como voluntária e, hoje, já são dois anos e meio como agente comunitária de saúde contratada. Devido às distâncias, já que tem morador a 20 quilômetros do salão da Comunidade Nossa Senhora das Graças (no Centro da localidade), percorrer as casas a pé, como é feito na parte urbana de Venâncio, por exemplo, estava fora de cogitação.
Assim, no primeiro ano como agente, pegou emprestada a Titan 150 cinza (ano 2008) do irmão Dener. No ano passado, conseguiu comprá-la. “Nunca calculei a quilometragem que a moto já fez. Mas está todo dia na estrada, por isso sempre está suja de pó ou barro. Tem dias que faço uns 30 quilômetros em visitas, isso que pego vários atalhos”, descreve. São cerca de R$ 140 mensais em combustível que ela banca do próprio salário.
As visitas e o ‘postinho’ de saúde
Mari acompanha 85 famílias de Linha Alto Paredão Pires. Vai em cada uma delas pelo menos uma vez por mês. Por dia, faz de cinco a seis visitas, número que pode ser maior, dependendo da casa e do paciente. Dentro da bolsa que carrega na moto, estão anotações e o notebook, para acessar o sistema do SUS onde lança as visitas. Também vai preenchendo informações atualizadas sobre cada pessoa, desde situação das vacinas, uso correto de medicamentos e necessidade de consultas.
“Acompanho gestantes, alguns diabéticos, hipertensos, depressivos, famílias com acompanhamento do Cras [Centro de Referência de Assistência Social], assistência social e Conselho Tutelar. Também vejo situação vacinal de crianças e adultos. Se precisa consultar, quando não é na unidade móvel, encaminho para o posto de Vila Deodoro. Lá, é marcado médico ou dentista, dependendo da necessidade de cada um, assim como encaminhamentos para exames de sangue”, explica.
A agente de saúde também criou um grupo no WhatsApp chamado ‘Postinho’. “Esse é para recados, lembretes e já ir avisando o dia que virá a unidade móvel. Mas nem todos têm internet, então os avisos são dados pessoalmente.” No dia que a equipe de profissionais de saúde vai até Paredão Pires (médico, dentista, auxiliar de dentista, enfermeira, técnica em Enfermagem e farmacêutica), Mari também fica no ‘postinho’ ajudando na organização e distribuição das fichas.

“A gente se sente assistido”
Como Linha Alto Paredão Pires faz divisa com Boqueirão do Leão, Sinimbu e Santa Cruz do Sul, é mais cômodo para os moradores acessarem determinados serviços nesses municípios. Hospital, por exemplo, em caso de urgência, está a ‘apenas’ 20 quilômetros se a opção for Boqueirão. O mesmo vale quando precisam ir no mercado, comprar o que não conseguem produzir em casa. Nesse caso, Alto Paredão, em Santa Cruz, também vira ponto de referência. “É que aqui é o ‘restinho’ de Venâncio, moça”, disse uma moradora, se referindo às distâncias e ao tempo que leva para ter acesso a determinados serviços, como a manutenção das estradas (considerando que muitos trechos são literalmente morro abaixo) e na resolutividade quanto à questão da água.
Valorização
Sobre a saúde pública, do que a reportagem ouviu, não há maiores queixas, já que valorizam o fato de contar com a Unidade Móvel de Saúde uma vez por mês (que deve aumentar para duas vezes em breve, conforme informado pela Prefeitura) e o olhar atento da Marieli. “O que a Mari faz por todos aqui é muito bom. É uma pessoa querida e preocupada com a comunidade. Ela andar tão longe pra acompanhar a gente, sempre procurando e passando recados. A gente se sente valorizado e assistido”, destacou a agricultora Berenice Bechert, 34 anos.
Berenice descobriu recentemente que está grávida. Ela e o marido, Loreno Fritsch, 42, já têm dois filhos, de 15 e 9 anos, mas desejavam um terceiro, que agora está a caminho. Assim que soube, Mari foi visitar a gestante para encaminhar consulta e posteriormente Berenice fazer o pré-natal no Centro Materno Infantil (Cemai) de Venâncio. Nessa mesma visita, durante a última semana, a agente de saúde aproveitou para conversar com Nair Fernandes, 72 anos, mãe da Berenice. A aposentada toma medicação contínua e retira os remédios no ‘postinho’.
Ajuda e agilidade
Quem também pega medicação no espaço é Lizete dos Santos, 56 anos. A agricultora aposentada é diabética e é acompanhada pela agente comunitária. “A Mari nos ajuda muito, agiliza as coisas. Estamos muito bem com ela”, definiu Lizete. No dia da visita, o marido Doraci, 60 anos, não estava em casa justamente por um problema de saúde que não podia esperar mais dias. Com diarreia e vômito, saiu cedo pela manhã com destino à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Venâncio.

Mais agradecimento do que cobrança na saúde
Nas andanças diárias, Marieli da Silva diz que, de forma geral, o sentimento é de agradecimento dos moradores de Paredão Pires. “As pessoas agradecem pelo que têm na saúde. Mais agradecem do que cobram. Às vezes meu trabalho é levar uma informação, algo tão básico, mas que para aquela família vai fazer muita diferença.”
A agente de saúde conta que também se depara com situações difíceis de acreditar para os dias de hoje, como pessoas que, aos 40 anos, nunca foram ao dentista; uma jovem mãe que não fez pré-natal de nenhum dos filhos ou mulheres que jamais fizeram um corriqueiro exame de pré-câncer. Como também usa o próprio telefone para trabalhar, as ligações e mensagens de WhatsApp são frequentes, seja durante o horário de almoço ou até de madrugada. “Muita gente me chama para ajudar em situações diversas, porque confiam em mim. Às vezes só querem conversar, então até um pouco psicóloga eu viro.”
Apesar das demandas ‘fora de hora’, Mari diz que não se incomoda. “Tem uma pessoa muito importante para minha trajetória e da comunidade que é a Vera Tuppel [nome conhecido na saúde de Venâncio e com 30 anos como servidora pública]. Ela me dizia que o que a gente faz, tem que fazer com o coração e tem que amar o que faz. Isso me marcou muito. Felizmente, eu amo o que faço e tenho muito orgulho.” Atualmente, Mari está fazendo mais um curso relacionado à função dela, diretamente na UBS de Vila Deodoro, junto com a agente comunitária de saúde de Linha Marmeleiro (também na região serrana de Venâncio) e que igualmente percorre os longos trajetos de moto.

Melhorias
Sobre melhorias nos serviços, Mari fala da expectativa pelo reforço nos atendimentos presenciais da Unidade Móvel de Saúde. A ideia da Prefeitura é oferecer o serviço duas vezes no mês.
A agente também comentou sobre a canalização da rede hídrica, que vai garantir água potável e encanada para mais de 50 famílias que integram a Associação Hídrica Serrana de Alto Paredão Pires. Historicamente, a localidade tem problemas no abastecimento e muitas famílias consomem água de açudes ou cacimbas. Atualmente, 13 famílias já têm a rede instalada nas casas e faltam mais de 40.
Enquanto isso, para suprir a necessidade da localidade, Mari conta que o caminhão-pipa da Prefeitura vai toda semana para levar água. “A gente também tem outro grupo no WhatsApp para quem está precisando de água, porque aqui não é só na seca que falta. Quando chove muito, a água fica barrenta e não tem como tomar. Então a rede hídrica vai ser muito importante para a comunidade. Um grande avanço para a saúde de todos também.”

Venâncio conta com 46 agentes de saúde
De acordo com dados da Prefeitura, Venâncio Aires tem 46 agentes comunitários de saúde (45 em atuação e uma afastada por problema de saúde). Todos os profissionais estão atrelados a alguma Unidade Básica de Saúde (UBS) ou Estratégia de Saúde da Família (ESF).
São três na ESF Estância Nova, quatro na ESF Macedo, seis na ESF Santa Tecla, cinco na ESF Gressler, quatro na ESF Caic, cinco na ESF Coronel Brito, quatro na ESF Battisti, dois na UBS Santa Tecla, quatro na UBS Gressler, um na UBS Cruzeiro, dois na UBS Deodoro (Mari é uma delas), uma na UBS Santa Emília, três na UBS Tabalar e duas na UBS Palanque.
Para o secretário de Saúde de Venâncio Aires, Alan Flores da Rosa, o trabalho dos agentes é fundamental para o andamento dos serviços de Atenção Primária. “São os agentes que fazem a ligação entre residência e unidade de saúde. Eles trazem até a unidade muitas coisas que não conseguimos identificar logo, somente na consulta. Agora, com o curso ‘Saúde com Agente’, também são capacitados para verificar sinais vitais, pressão arterial, verificação de testes e dar orientações sobre condutas e patologias.”
Integrando os serviços de atenção básica
De acordo com o Ministério da Saúde, o Agente Comunitário de Saúde é realiza a integração dos serviços de saúde da Atenção Básica com a comunidade. Tem como atribuição o exercício de atividades de prevenção de doenças e promoção da saúde, mediante ações domiciliares ou comunitárias, individuais ou coletivas, desenvolvidas em conformidade com as diretrizes do SUS.
As equipes de agentes devem estar vinculadas às Unidades de Saúde, seguindo os critérios da Política Nacional da Atenção Básica, visando a cobertura de um território específico. O número de agentes por equipe deverá ser definido de acordo com base populacional, critérios demográficos, epidemiológicos e socioeconômicos, de acordo com definição local.
Ainda conforme o ministério, cada agente deve realizar as ações previstas nas regulamentações vigentes da Atenção Básica e ter uma microárea sob sua responsabilidade, cuja população não ultrapasse 750 pessoas. As atividades devem se dar pela lógica do planejamento do processo de trabalho a partir das necessidades do território, com priorização para população com maior grau de vulnerabilidade e de risco epidemiológico.