Conduta de planos de saúde com usuário autista deve ser analisada

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O número de laudos para diversos níveis de autismo não para de crescer em todo o mundo. A estimativa, segundo pesquisa do Center of Deseases Control and Prevention (CDC), órgão dos Estados Unidos, é de que 1 a cada 110 pessoas seja do espectro autista. A projeção é que o Brasil, por exemplo, tenha mais de 2 milhões de autistas.

Com o aumento destes registros, empresas, profissionais e serviços precisam se adaptar para atender a elevada demanda, principalmente com relação aos atendimentos de saúde e terapias necessárias aos pacientes autistas. Essa situação esbarra em um problema que envolve empresas de convênios de saúde, e as famílias têm procurado o Judiciário para reclamar da falta ou o atendimento sem a assistência adequada nos casos de laudo de autismo.

A advogada especialista em direito da saúde, Cristiane Schuck, diz que é direito de todos o acesso à saúde, seja através do Sistema Único de Saúde (SUS) ou convênio de plano de saúde. No entanto, a realidade das famílias é um pouco diferente. Cristiane também é mãe de autista – tem um filho que foi diagnosticado com o espectro quando tinha 2 anos – e não conseguiu as terapias necessárias através do convênio de saúde. Há três anos, ela resolveu acionar o plano de saúde na Justiça para ter direito aos atendimentos ou ao ressarcimento.

O principal problema, segundo a advogada, é a conduta dos planos de saúde com relação ao atendimento dos autistas. “Não vejo engajamento, muitas cidades estão sem assistência”, sustenta. A questão, explica a profissional, é que na região, os planos de saúde limitam o atendimento aos centros de referência, localizados em Santa Cruz do Sul e Lajeado, o que deixa os moradores de Venâncio Aires e outros municípios desassistidos ou na obrigação do deslocamento quase que diário para as cidades vizinhas. “Muitas famílias optam pelo atendimento no seu município para qualidade na rotina, sem viagens”, observa.

A solução ideal – e escolha da maioria das famílias para o tratamento do autismo, que envolve uma rotina de terapias diárias e desregulação pela mudança de rotina – é seguir os tratamentos na cidade de moradia, com o reembolso do valor pago pela operadora do plano de saúde. Porém, a questão do reembolso é peculiar, conforme a advogada. Geralmente, em contrato, esta devolução não é prevista, apenas em casos excepcionais, como a falta do profissional na área de atendimento. Nestas situações, o reembolso deve ser total.

A advogada reforça que em caso de problema com o plano de saúde, a indicação é que seja consultado um profissional de advocacia para que primeiro sejam tomadas as providências administrativas, como uma denúncia na Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) ou nota extrajudicial, antes de adentrar as vias judiciais. Ela também menciona o desgaste físico e mental das famílias que precisam tomar providências judiciais, por isso, a maioria decide não seguir com o processo e acaba ficando com o prejuízo.

Rol exemplificativo

Com o movimento judiciário recente da nova Lei do Rol Exemplificativo da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), muitas famílias decidiram pleitear via judicial para conseguir o tratamento adequado aos filhos. Cristiane ressalta que a obrigação é que os atendimentos e terapias sejam iniciados em até 10 dias. Caso o plano não tenha profissionais disponíveis, a obrigação é pagar um profissional terceirizado ou reembolsar os valores que as famílias estejam efetuando para atendimentos fora do plano.

A Normativa da ANS amplia as regras de cobertura assistencial para usuários de planos de saúde com transtornos globais do desenvolvimento, entre os quais está incluído o transtorno do espectro autista, na Resolução Normativa (RN) número 539/2022. A lei número 14.454/22, Lei do Rol Exemplificativo, sancionada em setembro de 2022, derruba o chamado ‘rol taxativo’ para a cobertura de planos de saúde.

Com isso, o rol de procedimentos e atendimento na ANS passou a ser exemplificativo, uma referência básica, e enquanto não há uma regulamentação, as famílias precisam recorrer de forma judicial após as negativas dos planos, principalmente com relação aos tratamentos de terapias alternativas, como musicoterapia e equoterapia, que ampliam ao acesso aos tratamentos multidisciplinares.

A questão, segundo Cristiane, é que o tratamento dos autistas precisa acontecer em três pilares: saúde, educação e assistência social, e os planos alegam só ter a obrigação de oferecer a parte da saúde. “Ainda há um longo caminho a percorrer. Mas o novo rol oferece um tratamento mais amplo por parte da ANS”, afirma a advogada, que também é a presidente da Comissão Especial da Saúde da OAB/Subseção de Santa Cruz do Sul.

“Os planos não estão suportando as demandas de diagnósticos recentes, com laudos precoces e tardios. Não estão preparados com profissionais especializados e capacitados para atender a todos.”
CRISTIANE SCHUCK
Advogada especialista em direito da saúde e mãe de autista

  • A advogada ressalta que não deve existir lista de espera para os tratamentos do autismo, já que quanto mais cedo iniciarem, maior a neuroplasticidade desenvolvida. É direito do autista a saúde suplementar.

Onda de cancelamento

  • Outra situação frequente, segundo Cristiane, é a onda de pessoas que estão sendo excluídas de seus planos de saúde. Quando o plano for individual ou familiar, segundo ela, o usuário tem o direito de permanecer e o plano só pode ser cancelado em caso de fraude ou falta de pagamento com notificação prévia.
  • Em planos coletivos, existe a possibilidade de rescisão contratual de forma unilateral pelo plano, com notificação prévia de 60 dias. Se o usuário estiver durante um tratamento, o convênio não pode ser cancelado.

Famílias relatam experiências

A mãe de um menino autista, moradora de Venâncio Aires, relata a sua experiência com uma empresa de plano de saúde com clientes em todo o estado. Ela, que prefere não se identificar, explica que quando o convênio recebe o laudo de autismo, faz o encaminhamento para as terapias nos locais especializados para este tipo de atendimento na região. No caso dela, precisaria se deslocar para Santa Cruz do Sul ou Lajeado. “Marcam um dia para conhecermos o local e o paciente entra na lista de espera, não é atendido logo. A demanda de crianças é grande, conheço casos que esperaram meses para atendimento, e não é isso que a lei prevê”, afirma.

No caso desta família, a criança autista já realizava terapias antes do laudo e do diagnóstico, portanto, já tinha um vínculo com as profissionais em Venâncio Aires. “Eu disse que gostaria de seguir levando meu filho em Venâncio, porque não tem toda a questão de deslocamento e a necessidade de me afastar mais horas do trabalho, se torna inviável”, explica a mãe, que acompanha o filho em 18 horas de terapias na semana.
A solução adotada foi seguir as terapias do filho na Capital do Chimarrão, no entanto, não havia profissionais ligados ao plano de saúde com agenda disponível. Então, seguiu com outra profissional e solicitou o reembolso do valor para o plano de saúde. Porém, a empresa não reembolsa o valor em 100%. Um exemplo dado por ela é que, a consulta custa R$ 150, o reembolso fica em R$ 60, ou seja, 40%. “Não sei se esse é um valor tabelado, ou se é o que pagam para os profissionais conveniados. O plano alega que fornece o serviço, mas em outros municípios e, por isso, não reembolsa por completo o valor”, reforça.

No ano passado, a família entrou com ação contra a empresa solicitando o reembolso integral dos valores pagos pelos atendimentos. “O processo está ‘correndo’, o juiz entende que o plano fornece o atendimento, eu é que opto por levar em outro município. Em outubro ocorre a audiência”, comenta a mãe, que se diz chateada, pois conhece outras famílias que têm o mesmo plano de saúde e conseguem o reembolso total. “O que mais me deixa indignada é isso: algumas famílias não conseguem nada, outras só metade, outras tudo, são reembolsos diferentes”, completa.

Outra informação levantada pela mãe é que, caso as famílias levem seus filhos até outro município para receber atendimento, é direito deles que o deslocamento seja custeado pela empresa do plano de saúde. “A maioria dos pais não sabe, porque também foi uma das coisas que aleguei no processo. Os custos de deslocamento ficam inviáveis e existe uma lei que garante”, afirma.

Esperança Azul

1 A Esperança Azul Associação Pró-Autismo de Venâncio Aires é uma entidade que oferece apoio para autistas e suas famílias. O presidente da associação, Carlos Treib, ressalta que algumas famílias passam por problemas semelhantes com planos de saúde para os tratamentos dos filhos autistas.

2 Uma mãe com filho diagnosticado com autismo nível II a III, em moderado/severo, explica que, anteriormente, a família se deslocava quatro vezes na semana para Lajeado para a realização das terapias via plano de saúde. Neste momento, o deslocamento é feito apenas uma vez para consulta com terapeuta ocupacional. A outra consulta, com fonoaudióloga, é feita em Venâncio Aires.

3 A mesma família está com o nome do filho em lista de espera há dois anos para agendamento de dois horários de consultas em Lajeado, no espaço especializado oferecido pelo plano de saúde. Até o momento, foi liberado o agendamento de somente um horário com fonoaudióloga, psicóloga e neurologista.

4 “Foi nos dado um número de protocolo da lista e assim ficou. Os especialistas pedem as consultas, mas a espera é grande. Também levo informação de onde há profissionais, mas dizem sempre estar em negociação e já se passaram dois anos”, lamenta.

5 Outro caso é de uma família com o filho em tratamento há dois anos. Inicialmente, a criança, diagnosticada com nível II, frequentava o Centro Integrado em Educação e Saúde (Cies), em Venâncio Aires. Mas, como os atendimentos eram em pouco número, a decisão foi por seguir com o tratamento pelo plano de saúde. A família conheceu o espaço da empresa em outra cidade e iniciou os atendimentos, mas só conseguiu horário com psicólogo.

6 Após, encontraram uma clínica em Venâncio Aires, que hoje permite atendimentos de psicopedagoga, terapeuta ocupacional, psicóloga e fonoaudióloga. Há quase um ano, a rotina da criança inclui atendimentos quatro vezes na semana, mas com pagamentos por convênio particular. “Por não ajudar com nenhum percentual, colocamos o plano na Justiça. Enquanto pudermos pagar, faremos isso, pois a evolução é nítida a cada dia. Até seis meses atrás ele não falava e não interagia, hoje faz tudo”, afirma o responsável.

Em números

  • Nas estatísticas processuais de direito à saúde, pelos números do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o assunto saúde engloba o tratamento multidisciplinar que envolve, entre tantos outros casos, também os processos de usuários autistas contra planos de saúde.
  • Para se ter uma ideia, dentro deste ‘guarda-chuva’ da saúde, em Venâncio Aires, pela Justiça estadual e federal, são 201 processos desde 2020, sendo 31 em 2020, 56 em 2021, 59 em 2022, 48 em 2023 e sete até este momento, em 2024.
  • O tempo de tramitação dos processos até o julgamento vai de, no mínimo, 262 dias (processo de 2024) e, no máximo, 622 dias (processo) de 2020. O tempo de baixa do processo é ainda maior. O sistema aponta que em estado de sentenciado, ou seja, finalizado, encontra-se apenas um processo, de 2020.


Luana Schweikart

Luana Schweikart

Jornalista formada pela Unisc - Universidade de Santa Cruz do Sul. Repórter do Jornal Folha do Mate e da Rádio Terra FM

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