Duas voltas ao redor do mundo: a quilometragem mensal da frota da Saúde de Venâncio Aires

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Essa matéria é sobre saúde e não sobre geografia, mas entendê-la é importante, especialmente num país de dimensões continentais. Embora ainda se use o termo ‘do Oiapoque ao Chuí’ para referenciar a nação de uma ponta a outra ou comparar grandes distâncias, no mapa os pontos extremos do Brasil ficam no Monte Caburaí, em Roraima, e no arroio Chuí, no Rio Grande do Sul. São incríveis 4.394 quilômetros de distância. Essa enormidade se aproxima de uma realidade local, já que cada veículo da Secretaria de Saúde de Venâncio Aires percorre, em média, 4,3 mil quilômetros por mês transportando pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS).

Considerando a soma de toda distância percorrida por carros, vans e ambulâncias, são 82 mil quilômetros. Ou seja, mensalmente, a frota do serviço de saúde do Município dá duas voltas ao redor do mundo (o planeta tem 40 mil quilômetros de circunferência pela linha do Equador). Para entender essa logística, a Folha do Mate acompanhou a rotina de pacientes que têm a saúde condicionada à estrada e o dia a dia de profissionais envolvidos para garantir a assistência.

Entre chegadas e partidas, a espera

Era suspeita de ser apenas uma dor no nervo ciático, mas o que a ressonância mostrou fez com que Rosana Graziela Posselt, hoje com 43 anos, fosse encaminhada diretamente para o Hospital da PUC, em Porto Alegre. Com um tumor na região lombar, já são 11 anos de idas e vindas entre Venâncio e a capital. Uma cirurgia removeu o tumor parcialmente, porque uma operação total trazia o risco de comprometer a mobilidade das pernas. Nesse meio tempo, já foram inúmeras sessões de quimioterapia e radioterapia. Hoje, além de ser acompanhada pela oncologia do Hospital de Clínicas, também em Porto Alegre, Rosana se trata com a chamada ‘equipe de dor’ (manipulação da medicação), fisiatria e especialista em lesões.

Rosana Posselt, moradora do Centro de Venâncio, se desloca a Porto Alegre há 11 anos, devido a um tumor na região lombar (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

São de duas a três viagens por mês, com o transporte da Prefeitura. “Nos primeiros dois anos, eu fiquei acamada e vinha de ambulância. Hoje é de carro. O ir e vir não é problema, a gente se acostuma, porque precisa”, comentou Rosana, que mora no Centro e tem dois filhos. A caçula ainda mamava quando a mãe descobriu a doença. Na última quarta, 17, ela foi à capital para buscar novas receitas dos quatro medicamentos que toma e marcar novas consultas. O atendimento dela era às 13h30min e, naquele dia, não precisou sair tão cedo, já que foi possível encaixar uma saída às 10h. “É normal ter que vir cedo de manhã e voltar só de tardezinha ou noite. Mas ninguém reclama, porque é o possível. Um dia a gente espera, no outro é outra pessoa, porque são horários diferentes. Faz parte e aqui todo mundo espera, mas espera, principalmente, melhorar logo.”

Rosana conversou com a reportagem enquanto aguardava na recepção do Clínicas, hospital que tem cerca de 1,3 mil consultas por dia. A movimentação de carros, de veículos de dezenas de prefeituras gaúchas, ambulâncias e táxis é constante, assim como o entra e sai de centenas de pacientes e acompanhantes. É quase uma ‘estação rodoviária’, com chegadas, partidas e espera. Jovens e velhos, de etnias e traços variados, todos estavam lá pelo mesmo motivo: tratar uma doença. No caso da Rosana, ela não sabe quantas vezes ainda precisará voltar. Nem quando vai retomar a faculdade de Matemática que precisou interromper há 11 anos. “Infelizmente, hoje não dá.”

Quase 20 anos

O número de pessoas transportadas por dia, semana e mês sempre varia, porque depende do tempo de tratamento e necessidade de cada um. Enquanto alguns precisam apenas de uma consulta de oftalmologia, por exemplo, em Candelária, há outros cuja jornada dentro dos hospitais é frequente. É o caso de Éverton Luiz Schäfer, 24 anos. Ele é morador de Travessa São José e teve o diagnóstico definitivo em 2022: miastenia congênita, uma doença genética cujo principal sintoma é a fraqueza muscular. O jovem, que trabalha como auxiliar administrativo, só consegue caminhar poucos metros e precisa de cadeira de rodas.

O problema se manifestou quando ele ainda era pequeno e, desde os cinco anos de idade, Éverton mantém uma rotina de acompanhamento hospitalar em Porto Alegre. No Clínicas, onde ele também esteve na última quarta, é acompanhado desde 2006. Atualmente, são seis especialidades: neuromuscular, genética, fisiatria, medicina do sono, nutrologia e cirurgia buco hospitalar. No Santa Casa também tem consultas devido à coluna. São cerca de três viagens por mês. “Não posso me queixar. Todo meu tratamento foi baseado em vir para cá [Porto Alegre]. Às vezes não tem nada de novo, mas a gente precisa vir igual. Meu diagnóstico veio só há dois anos e desde então estou usando um medicamento que tem me ajudado a andar. A expectativa é que, com o passar do tempo, diminua a quantidade de especialidades que eu precise e que o intervalo das viagens seja maior.”

Veículos em números

  • De acordo com o Setor de Transportes, a Prefeitura mantém atualmente 17 veículos próprios: sete Spin (sete lugares), uma van, um carro Fox, quatro carros Gol, uma Palio Weekend e três ambulâncias; outras duas vans são terceirizadas. São 15 motoristas, sendo que cinco deles trabalham como plantonistas, numa escala de 24 horas de trabalho por 72 horas de descanso.
  • Entre as maiores quilometragens, estão as ambulâncias, que percorrem entre 4 mil e mais de 6 mil km por mês. Isso porque, além de Porto Alegre, há dias em que os destinos são Passo Fundo e Bagé, por exemplo, onde há UTIs neonatais (a de Venâncio é pediátrica, para crianças com mais de 30 dias de vida). Passo Fundo fica a 204 quilômetros e Bagé está a 343 km. Também acontecem transferências para Rio Grande, atualmente o destino mais longínquo, a 370 quilômetros.
  • Outro recordista é o ‘Gol da hemodiálise’. São cerca de 10 mil quilômetros mensais percorrendo cidade e interior para buscar pacientes que se tratam na Clínica de Nefrologia junto ao Hospital São Sebastião Mártir (HSSM). De acordo com o Setor de Transportes, são atualmente 20 pessoas que dependem da condução, sendo que cada uma delas faz hemodiálise três vezes por semana.
  • Em combustível, entre os dias 21 de fevereiro e 20 de março, base para a média da quilometragem usada nesta reportagem, uma das ambulâncias, por exemplo, gastou quase R$ 5 mil. Um dos veículos terceirizados, que transporta cerca de 600 pacientes por mês para vários municípios onde há especialidades diversas, teve um custo de R$ 13,9 mil com pedágio e gasolina.

Tratamento humanizado na jornada do paciente

O transporte para as especialidades médicas inclui consultas, exames, internações e procedimentos cirúrgicos. As viagens ocorrem de segunda a sexta com pacientes esporádicos, que utilizam o transporte conforme as consultas e tratamentos agendados, com saídas pela manhã e tarde. O plantão fica disponível para remoções e altas do Hospital São Sebastião Mártir (HSSM), da Unidade de Pronto Atendimento (UPA), de outros municípios, e da busca a domicílio. Para este caso, é realizada uma análise com assistente social.

Para solicitar o serviço, o paciente deve consultar em uma unidade de saúde do município. O pedido, junto com os documentos solicitados, deve ser encaminhado ao Setor de Transportes, que entrará em contato com o paciente para confirmar data, horário e local da saída (residência do paciente ou Secretaria de Saúde). O telefone do setor é o 2183-0264.

O chefe do Setor de Transportes, Everton Carlos Dias, destaca que a jornada de um paciente é de extrema importância e vários pontos devem ser levados em consideração na hora do atendimento. “Acredito na importância da agilidade, em eliminar ineficiências e na comunicação clara e objetiva. Obviamente é bem complicado devido à alta demanda em alguns casos. Se torna uma sobrecarga gigantesca para com os funcionários e, consequentemente, reflete em todo município. Mas a gente sabe que não é fácil passar por esses momentos, então é necessário muito amor e empatia. Um tratamento humanizado, na maioria das vezes, ajuda na autoestima do paciente.”

Emerson de Bitencourt é motorista na Secretaria de Saúde de Venâncio desde 2020 e dirige média de 1,5 mil quilômetros por semana (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

“Me sinto parte do tratamento”

Entre os 15 condutores que diariamente percorrem centenas de quilômetros levando pacientes, está Emerson de Bitencourt, 43 anos. Ele é motorista da Saúde em Venâncio desde 2020, mas carrega experiência de mais de 20 anos no setor, em outros municípios. O profissional percorre cerca de 1,5 mil quilômetros por semana, fazendo viagens a vários municípios. Só a Porto Alegre, são até quatro vezes na semana, como foi na quarta, 17, em que a reportagem foi na carona. “Além da segurança, precisamos fazer com que o paciente fique o mais confortável possível. Ninguém vai a um hospital a passeio. Vai porque precisa se tratar e eu me sinto parte desse tratamento, porque muitas vezes o paciente quer ser ouvido, quer uma palavra de apoio.”

Cidades e especialidades

• De acordo com o Setor de Transportes, os veículos da Saúde levam pacientes para atendimentos em 11 municípios, mais as transferências, como Passo Fundo, por exemplo. Só em Porto Alegre, o destino são os hospitais Conceição, Clínicas, Beneficência Portuguesa, Banco de Olhos, Vila Nova, Ernesto Dornelles, Santa Casa (três complexos) e Presidente Vargas.

• Para Candelária e Faxinal do Soturno, há transporte para oftalmologia. Lajeado (oncologia), Rio Pardo (internação compulsória e ginecologia), Vera Cruz e Encruzilhada do Sul (urologia), Santa Maria (transexualidade), Cachoeira do Sul (neurologia), Santa Cruz do Sul (oncologia e outras), Monte Alverne, interior de Santa Cruz (otorrinolaringologia) e Canoas (traumatologia e bariátrica).

O ambulatório no porta-malas

Além do transporte de pacientes até hospitais, outra parte importante desse logística é a que leva a saúde para quem não consegue mais ir até ela. Trata-se do atendimento domiciliar, que assiste, atualmente, 70 moradores de Venâncio Aires que estão restritos em casa. O serviço não é por livre demanda e depende sempre de encaminhamento médico.

“A grande maioria são idosos com mais de 80 anos, acamados, que precisam de sonda de alimentação e urina. É feita avaliação médica, trocas de sondas e curativos, por exemplo. E o tempo da volta sempre vai depender da condição do paciente”, explica a técnica em Enfermagem, Daiani Ferreira. Além dela, integram a equipe das visitas domiciliares a enfermeira Daniela Santos, a médica Natália Schwendler e o motorista Renildo Bento da Silva. Ele é o responsável por conduzir a Palio Weekend usada para o serviço. São cerca de mil quilômetros por mês, percorrendo todas as localidades de segunda a sexta. O porta-malas do carro é o ambulatório improvisado, levando medicamentos e demais suprimentos médicos necessários para os atendimentos em casa.

Daiani Ferreira e Natália Schwendler integram equipe das visitas domiciliares. Atualmente, serviço atende 70 moradores de Venâncio (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

20,2 mil – foi o número de transportes de pacientes realizados em 2023. Em 2022, foram 13,8 mil.

Impressões da repórter

Na terça-feira, 16, fui na carona da Palio Weekend, das visitas domiciliares, acompanhar um atendimento no interior de Venâncio, de uma senhora de 99 anos. Embora a natureza diga que ela esteja mais para o fim da vida, segue tendo o direito de envelhecer da forma mais saudável e digna possível. E esse atendimento em casa vai ser importante para que ela chegue firme e forte no centenário, que completará em julho. Já na quarta, 17, acompanhei o transporte de pacientes a Porto Alegre, entre eles o Éverton e a Rosana. Emerson foi o motorista e conduziu a Spin 323 (número da frota), ano 2016, um dos veículos mais ‘experientes’ da Saúde. Já são mais de 481 mil quilômetros rodados ou, voltamos à geografia, já deu 12 voltas no mundo.

Foto: Débora Kist/Folha do Mate

A ida a Porto Alegre me possibilitou enxergar um cenário complexo e ouvir histórias diversas, de pessoas que, por vários motivos, têm a saúde comprometida e precisam de tratamento longe das cidades de origem. Infelizmente, a maior parte da estrutura, da tecnologia e das especialidades fica nos grandes centros. É a realidade nos estados brasileiros e, aos municípios, se não tem o serviço, a preocupação é levar o paciente até ele, numa logística que precisa dar conta da demanda.

Saímos às 10h e, com todos os encaminhamentos resolvidos rapidamente, às 18h estávamos de volta. Venâncio está a 130 quilômetros de Porto Alegre (menos de duas horas de viagem) e não foi um dia longo de espera, comparado a outras vezes, como é comum. Ainda assim, confesso que fiquei um pouco cansada na volta, o que me deixou com sensação de culpa, afinal eu não estava lá por causa de alguma doença, nem dirigi centenas de quilômetros como o Emerson que, naquele dia, antes de ir a Porto Alegre, já tinha ido a Santa Cruz no fim da madrugada.

O motorista, aliás, me confidenciou um relato muito bonito. A filha dele, Maria Clara, quando tinha 6 anos, foi perguntada na escola sobre a profissão dos pais. Da mãe, dentista, disse que ela ajuda as pessoas a sorrirem melhor. Do pai, disse o seguinte: “Meu pai é um herói, porque quando alguém precisa ir no médico, é ele quem leva.” Acho que isso também vale para os demais profissionais da saúde e principalmente para os pacientes, que não escolheram adoecer, mas precisam ser fortes e corajosos para vencer a enfermidade, seja em casa ou a centenas de quilômetros.



Débora Kist

Débora Kist

Formada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) em 2013. Trabalhou como produtora executiva e jornalista na Rádio Terra FM entre 2008 e 2017. Jornalista no jornal Folha do Mate desde 2018 e atualmente também integra a equipe do programa jornalístico Terra em Uma Hora, veiculado de segunda a sexta, das 12h às 13h, na Terra FM.

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