Quase 700 pessoas morreram de câncer em Venâncio desde 2015

-

Este ano foi o segundo em que o Natal não teve o mesmo significado em uma casa no bairro Battisti. Não só pela ausência de alguém na data em que os cristãos celebram o nascimento de Jesus, mas porque a pessoa que faz falta, também estaria de aniversário.

Domingos Natalício Cardoso nasceu em um domingo, véspera de Natal de 1950, e completaria 70 anos na última quinta-feira, 24. Ele, que adorava fazer aniversário e comemorar o Natal, faleceu no ano passado, vítima do mesmo tumor maligno que mais vitimou moradores de Venâncio Aires nos últimos seis anos. Desde 2015, 124 morreram de câncer de pulmão no município.

Antes de entrar para essa triste estatística, Domingos Cardoso descobriu o problema tardiamente, no inverno de 2017. “O pai teve um gripão e o doutor Jarbas pediu um raio-x e depois uma tomografia. Apareceu uma mancha no pulmão esquerdo e o médico sugeriu: ‘quem sabe o senhor diminui o cigarro’”, lembra a filha, Liane Cardoso.

Se era para diminuir a frequência das até três carteiras que fumava por dia, a decisão foi mais drástica: parou de vez. Mas atender o conselho do médico Jarbas da Rosa, (o prefeito eleito, que trabalhava no posto Caic, do bairro Coronel Brito), não foi suficiente. O problema já estava avançado e era consequência de quem experimentou o cigarro pela primeira vez ainda criança e nunca mais largou.

Em dois anos, foram várias sessões de quimioterapia e 20 quilos a menos. Muito debilitado, Domingos, que era catador no Supermercado Lenz, faleceu em agosto de 2019, aos 68 anos. “Tenho saudade todo dia”, relata Otilia Maria Cardoso, 76 anos. Ela foi casada com Domingos por quase cinco décadas.

Mortalidade

No ano em que ele faleceu, 24 morreram de câncer de pulmão em Venâncio Aires. Os dados municipais, disponíveis no Portal BI Público da Secretaria Estadual de Saúde, seguem o cenário brasileiro e mundial. Conforme o Instituto Nacional do Câncer (Inca), são cerca de 30 mil novos casos por ano no país e o tumor é o mais letal no mundo.

Segundo a médica Sheila Calleari Marquetto, que trabalha na área há 10 anos e é a única oncologista que atende em Venâncio Aires, um dos motivos para a alta taxa de mortalidade relacionada ao pulmão é o diagnóstico tardio. “Debilita muito, porque é um órgão importante e, geralmente, quando o paciente descobre, na maioria das vezes já está com a doença avançada, espalhada para outros órgãos. Isso faz com que o tempo de vida seja mais curto”, aponta Sheila.

No caso de Domingos Cardoso, o câncer não se espalhou para outros órgãos, mas aquela primeira mancha que apareceu no lado esquerdo, aumentou ainda mais com o tempo, o que também é um fator grave no combate à doença.

Ainda conforme a médica Sheila Marquetto, atualmente é possível selecionar os casos para um tratamento melhor. “Hoje em dia são feitos testes genéticos nos pacientes para saber se tem algum tipo de mutação e se responderia melhor a algum tipo de tratamento ou não. Com isso, temos gerado menos toxicidade nos tratamentos e faz com que os pacientes tenham uma sobrevida maior.”

699 – foi o número de óbitos por câncer em Venâncio de 2015 até o dia 21 de dezembro de 2020.

Problemas com álcool, cigarro e até com a água do chimarrão

Entre os grandes vilões que contribuem para o surgimento do câncer, estão o álcool e cigarro. Segundo a médica Sheila Marquetto, assim como no pulmão, eles estão fortemente relacionados aos casos de tumores na cabeça e pescoço, como na cavidade oral, na laringe, na hipofaringe e na amígdala.

Uso de bebida alcoólica e o tabagismo são fatores que contribuem para a doença (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

A oncologista destaca ainda que o uso de bebida alcoólica e o tabagismo também são um sério problema nos casos de câncer de esôfago, o segundo na lista dos tumores que mais vitimaram pessoas em Venâncio Aires, nos últimos anos. Desde 2015, foram 41 mortes.

Mas a médica chama atenção para uma situação bem particular e que mexe com o hábito do município que virou a Capital Nacional do Chimarrão: a temperatura da água para o mate. “Outro fator é esse cultural. Está comprovado que a temperatura da água, se muito elevada, pode causar câncer de boca e esôfago. Claro que não é o único fator, mas contribui. Um grande causador é água quente acima de 55 graus. Então pode tomar, mas tomar com uma água mais morna que quente.”

Histórico

Para Sheila Marquetto, que é a responsável técnica pelo serviço de Oncologia do Hospital Ana Nery, de Santa Cruz do Sul, não se tem um estudo que diga quais os fatores que podem contribuir para a incidência de casos em Venâncio Aires.

No entanto, além dos situações corriqueiras, como álcool, cigarro, sedentarismo, má alimentação e estresse, ela cita a exposição a agrotóxicos. “Em Venâncio tem uma população grande de agricultores e a gente sabe que agrotóxicos usados na lavoura podem ocasionar câncer. Por isso o uso de EPIs é importante.”

A médica também aponta outro fator histórico no município, que pode ter contribuído para problemas no fígado. “Há um incidência maior de câncer de fígado ou que começou no fígado, porque Venâncio tem um grande índice de pessoas infectadas pela hepatite C. Essa infecção, a maioria foi no passado. Ela, com o decorrer no tempo, pode virar cirrose e depois câncer. Isso, claro, pelo que se vê no dia a dia de casos atendidos.”

Tratamento

A maior parte dos pacientes com câncer que moram em Venâncio Aires, atendidos pelo SUS, tem como referência o Hospital Ana Nery, em Santa Cruz. Se for tumor hematológico, como leucemia e linfomas, a indicação é o Bruno Born, de Lajeado.

O trabalho da Liga Feminina de Combate ao Câncer

Durante os dois anos que esteve em tratamento, Domingos Natalício Cardoso e a família contaram com a ajuda de uma entidade importante para Venâncio Aires, fundada em 1997. Através da Liga Feminina de Combate ao Câncer, dezenas de pacientes tiveram apoio na caminhada, mesmo que o final dela não seja sempre feliz.

A Liga ajuda com medicações, fraldas, absorventes, leite, suplementos por sonda, passagens e empréstimos de cadeiras de rodas, muletas, camas hospitalares e andadores, por exemplo. Também faz o ‘meio campo’ para marcação de consultas, exames e fisioterapia. Além disso, oferece palestras, visitas assistenciais das voluntárias e orientações aos pacientes.

Todo o serviço é oferecido de forma gratuita. Por isso, para se manter, a Liga depende de doações, as contribuições fixas pelos carnês e eventos beneficentes, como o Jantar do Risoto, que não foi realizado neste ano em função da pandemia.

Demanda

De acordo com um relatório próprio, 376 pessoas atendidas na Liga morreram de câncer desde 2015. O número, naturalmente, é diferente dos dados gerais municipais porque nem todos passam pela entidade. “Alguns não precisam porque têm uma situação financeira boa, outros nem dá tempo e já falecem e alguns casos nem sabem que a Liga existe”, considera Marli Bussmann, secretária da entidade.

Atualmente, Liga dá suporte para quase 600 pacientes, entre ativos e inativos (que estão em atendimentos e outros curados ou estáveis). A entidade atende em um espaço dentro do Hospital São Sebastião Mártir.

Tipos

Além dos cânceres mais conhecidos, chama atenção alguns tipos de tumores em locais que não são de conhecimento geral. Entre os exemplos, houve pessoas de Venâncio que já faleceram de câncer na virilha e na face. No relatório da Liga Feminina de Combate ao Câncer, 45 tipos de tumores vitimaram pacientes desde 2015.

Considerando os 548 óbitos gerais registrados em Venâncio Aires em 2019, 119 foram vítimas de câncer. Isso dá quase 22% do total.



Débora Kist

Débora Kist

Formada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) em 2013. Trabalhou como produtora executiva e jornalista na Rádio Terra FM entre 2008 e 2017. Jornalista no jornal Folha do Mate desde 2018 e atualmente também integra a equipe do programa jornalístico Terra em Uma Hora, veiculado de segunda a sexta, das 12h às 13h, na Terra FM.

Clique Aqui para ver o autor

    

Destaques

Últimas

Exclusivo Assinantes

Template being used: /var/www/html/wp-content/plugins/td-cloud-library/wp_templates/tdb_view_single.php
error: Conteúdo protegido