O suicídio de um menino de 16 anos, há exato um mês, acendeu o sinal vermelho para uma situação que se esconde no silêncio, no sorriso das fotos do Facebook e na vida atribulada de muitos jovens. Além do garoto que tirou a própria vida, outras cinco tentativas de suicídio entre adolescentes de até 18 anos foram registradas em Venâncio Aires, desde o início do ano.
Elas somam a outros 28 casos de adultos que atentaram contra a própria vida, só em 2017, conforme dados da Vigilância Epidemiológica do município. “É uma situação preocupante”, considera a psicóloga do Centro de Atenção Psicossocial (Caps II), Gabriela Ballardin Geara.
A falta de um Caps Infantil no município, serviço que atende crianças e adolescentes com problemas de saúde mental, agrava ainda mais o cenário. Atualmente, menores de idade que necessitam de atendimento psiquiátrico são encaminhados ao Caps Infantil de Rio Pardo.
Apesar disso, são apenas oito atendimentos e duas novas consultas oferecidas por mês. “Existe o projeto para criação de um Caps Infantil no município, mas está parado no Ministério da Saúde. Não estão habilitando nenhum novo serviço”, afirma o secretário municipal de Saúde, Ramon Schwengber.
Em sintonia com o trabalho do Conselho Tutelar e das escolas, o Centro de Integração de Educação e Saúde (Cies) e o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) absorvem parte da demanda. O primeiro, realiza atendimento a alunos com dificuldade de aprendizagem, enquanto o segundo atende crianças e adolescentes vítimas de violência física, psicológica e sexual.
Apesar disso, a falta de um serviço especializado em saúde mental para crianças e jovens impede que muitos casos sejam tratados como necessitam. Além disso, dificulta a obtenção de uma estatística sobre a real da situação e, até mesmo, impossibilita que os todos os casos cheguem à rede de saúde. “Acredito que a própria falta de um Caps Infantil faz o número de internações de jovens na ala psiquiátrica ser muito baixo”, diz a assistente social do Hospital São Sebastião Mártir (HSSM), Ana Paula Bittencourt Pereira.
Embora o hospital já tenha atendido até mesmo casos de tentativas de suicídio por adolescentes de 12 anos, não é comum chegarem à instituição jovens que atentaram contra própria vida. Profissionais da instituição ponderam, no entanto, que muitas tentativas são camufladas: são desde casos de automutilação, que podem ser considerados ‘acidentes’, até situações em que o jovem se dopa de remédios e dorme por muitas horas.
“Só chegam ao hospital os casos mais graves”, observa a psicóloga Susan Artus Dettenborn, gerente assistencial do HSSM. Junto da psicóloga Ana Lúcia Oliveira e da assistente social Ana Paula, ela explica, inclusive, que muitos casos de automutilação são tentativas veladas de suicídio. “Muitos jovens que praticam a automutilação relatam que têm vontade de morrer. Alguns chegam a dizer que se cortam porque não têm coragem de se matar”, comenta.
Cortes tentam aliviar a dor
Embora não entrem nas estatísticas, casos de automutilação entre adolescentes são comuns em Venâncio Aires. Enquanto parte dos cortes seguem escondidos debaixo de casacos e camisetas de manga comprida, alguns casos chegam a conhecimento do Conselho Tutelar. Às vezes, o encaminhamento ocorre pela escola. Em outras, a própria família procura ajuda.
De acordo com a conselheira Maria Izonete Bertam, casos de meninas que se cortam são atendidos pela equipe do Conselho e, em geral, têm como motivação problemas relacionados à desestrutura familiar, além de casos de abuso sexual e uso de drogas. “A maioria das adolescentes que se automutila faz isso para chamar atenção e mostrar que algo não está bem, para tentar cessar uma dor que não conseguem resolver”, comenta.
Em geral, além de chamarem os pais das vítimas para conversar sobre a situação, sempre que necessário, os conselheiros tutelares encaminham os adolescentes para atendimento psicológico no Creas. “Ao longo dos anos, esses casos têm aumentado. O que percebemos é que os adolescentes têm muita informação, mas pouca comunicação. Não conseguem se expressar”, observa Maria Izonete.
A psicóloga Gabriela Ballardin Geara explica que, por meio da automutilação, vítimas de um profundo sofrimento emocional tentam aliviar a sua dor “interna” transferindo-a para o corpo. “A automutilação é uma forma de expressão de quem não consegue mais verbalizar. É um pedido de ajuda. A pessoa precisa estar muito fragilizada para fazer isso”, ressalta.
Ajuda gratuita
Você está angustiado? Tem ideias suicidas? Pensa que a vida não tem mais sentido? O Centro de Valorização da Vida (CVV) realiza apoio emocional e prevenção do suicídio, atendendo de forma voluntária e gratuita todas as pessoas que querem desabafar. A conversa ocorre com sigilo total e pode ser feita por telefone, e-mail, chat e Skype, 24 horas por dia. Ligue 188 ou acesse cvv.org.br.
“Queria matar aquela dor”
Uma angústia imensa e um sentimento de frustração tomavam conta de Monyque Schmidt. Prestes a completar 20 anos, ela tentou aliviar, com a bala de um revólver, o sofrimento que a consumia. “Parecia que tudo era pior do que realmente era. Só via o lado negativo de tudo. Eu me sentia muito mal. Não tinha vontade de levantar da cama.”
Em meio a uma vida atribulada, à morte do avô e à sensação de uma cobrança de que sempre era preciso fazer mais, a jovem sentia-se desanimada. “Só conseguia pensar nas coisas que eu era incapaz de fazer. Eu exigia demais de mim e como não conseguia fazer tudo, achava que eu era incapaz.”
Durante um mês, Monyque remoeu a angústia e a tristeza, e começou a pensar que queria morrer. “Tinha vergonha de falar o que eu estava sentindo. Me abri com a minha irmã, mas proibi ela de falar para meus pais”, conta.
No início da noite de 6 de novembro de 2014, depois de discussões, ao longo do dia, tentou tirar a própria vida. “Eu só pensava que ia acabar com meu sofrimento. Foi o pior dia da minha vida, porque eu me sentia muito mal. Não tem nem como explicar, era algo muito forte. Queria matar aquela dor.”
O tiro disparado por Monyque lesionou a medula e tirou da moça a capacidade de andar. “Logo comecei a sentir um formigamento nas pernas”, lembra. Além da dor – que ainda persiste – e da recuperação lenta, ela precisou aprender a conviver, de forma ainda mais intensa, com olhares e julgamentos alheios.
“Não começo, não saia de casa para nada. Eu escutava as pessoas falando na rua ‘foi aquela guria que se deu um tiro’, ‘ela fez isso porque não tinha Deus no coração’. As pessoas falavam comigo e olhavam para as minhas pernas, não para os meus olhos”, desabafa.
Com a certeza de que, para viver, “é preciso muito mais coragem”, Monyque faz questão de falar sobre tudo o que aconteceu. Quer dividir a experiência e impedir que outros jovens passem pela mesma situação. Aos 23 anos, ela entende que, falar de suicídio é falar sobre como proteger a vida. “Muita gente vem me procurar para conversar, porque acham que eu vou entender o que estão sentindo. É importante procurar ajuda com psicólogo. Todos nós precisamos de psicólogo. É importante chorar. Todo mundo tem direito de ficar triste, de ter suas fraquezas. De repente, se eu tivesse tido informações, naquela época, nada disso teria acontecido.”
Por meio das sessões diárias de fisioterapia, Monyque se esforça para voltar a andar. Na companhia da família e do namorado Ricardo de Campos, 23 anos, ela cultiva o bom humor, a vaidade e o gosto por passear. No futuro, quer fazer faculdade. “No começo, achava que minha vida tinha acabado. Agora é diferente. Quero voltar a andar, mas, se isso não acontecer, não vou ficar triste.”
Para a jovem, a chance que teve de recomeçar a vida é a confirmação de que tudo passa. “Mesmo que tudo pareça ruim, é um ciclo. Pode estar ruim agora, mas depois fica bem. O importante é procurar ajuda.”
“O suicídio é um ato de desespero”, diz psicóloga
Depressão, desamparo, desesperança e desespero. De acordo com a psicóloga Gabriela Ballardin Geara, esses quatro fatores estão diretamente ligados a casos de suicídio. “O suicídio não é uma escolha boa e natural, é fruto do sofrimento. Ninguém em sã consciência, que esteja bem, quer terminar com a própria vida. O suicídio é um ato de desespero, por meio do qual a pessoa quer por fim no seu sofrimento”, enfatiza a profissional.
Gabriela explica que, durante a adolescência, a família deixa de ser a maior referência para o filho. Em meio a mudanças físicas e psicológicas e a um “vazio emocional” vivenciado pelo adolescente, se não houver um vínculo familiar forte ou uma boa relação social (grupo de amigos), ele pode encontrar a referência para seu comportamento em um jogo como o Baleia Azul, o qual propõe desafios como se cortar, deixar de comer e tirar a própria vida.
Segundo a psicóloga, o fortalecimento do vínculo familiar deve ser a principal aposta dos pais para evitar o suicídio dos filhos: é preciso conhecê-los, para identificar mudanças de humor e comportamento. “A proximidade é o que protege. Algumas pessoas conseguem pedir ajuda ao sentirem que não estão bem, mas algumas não conseguem”, alerta.