Um holandês, cinco estrelas e muitas histórias

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Holandês em vestes ‘militares’, mas não há informações sobre ele ter sido ou não do Exército (Foto: Arquivo pessoal de Airton Bohn)
Sobre o poço, André Bourscheidt diz que já ouviu que haveria “coisas lá embaixo” (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)
Medalha de nossa Senhora Aparecida, presente dado a Ricardo Reichert quando ele ainda era um bebê (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

Estrelas fazem parte da maioria das culturas. São símbolos com conceitos diversos, que saíram do céu para o imaginário das pessoas e tudo aquilo que, livremente, vem depois. E quando são cinco estrelas? Geralmente associamos ao Cruzeiro do Sul, à classificação qualitativa de um hotel e até ao número de títulos do Brasil em Copas do Mundo de futebol.

Mas, no que pensava quem construiu uma casa em Estância São José, no interior de Venâncio Aires? Por que, afinal, no alto da parede, cinco estrelas na cor vermelha compõem a fachada? São apenas algumas das muitas perguntas feitas para a construção dessa matéria. Mas o interessante disso, é que as estrelas levam a outra história e que chama atenção de quem viveu naquela localidade há mais de 50 anos: a presença de um tal holandês.

Nos acostumamos, por aqui, com as culturas germânica, italiana, afro e portuguesa. Então imagine a estranheza que causou à comunidade um homem, solitário, vindo da Holanda para o interior de Venâncio Aires? Isso aconteceu no fim da década de 1950, quando a Estância São José ainda integrava a vasta Estância Mariante. Foi naquelas bandas que uma figura ‘diferente’ morou.

Sem referências documentais, nos apegamos àquilo que ouvimos para escrever esta matéria. Assim como esta repórter, as pessoas ouvidas aqui confiam no que lhes foi relatado. Então como dizer que este ou aquele estão certos ou errados? Se há alguma pretensão, é apenas a de tentar resgatar parte de um fragmento que também faz parte da história de Venâncio.

Lembranças de quem conviveu com Doni

A data de nascimento é ignorada, mas seu nome seria Constant Doni e, antes de passar por aqui, teria sido prefeito de uma cidade holandesa, cargo designado pela própria rainha da Holanda. Qual ano ou qual rainha, não se sabe. As informações são de Airton Antônio Bohn, 75 anos. Hoje professor universitário aposentado e há anos no Piauí, Bohn nasceu e cresceu na Estância.

Ele conta que conheceu o holandês na adolescência. “Durante muito tempo ele frequentou nossa casa. Fazia as refeições com a gente. Falava 11 línguas e, uma vez, até me corrigiu no Português.”

Todos os dias, fazia o caminho à pé de cerca de dois quilômetros até a paróquia na Estância Nova. “Sempre foi muito religioso e, diariamente, caminhava para assistir à missa dos padres holandeses, onde estavam construindo o seminário”, conta Alfeu Bohn, 64 anos, irmão de Airton.

Doni também gostava de agricultura e plantas. A advogada aposentada Schirley Stein, 62 anos, que também nasceu e cresceu na Estância São José, lembra que ele mantinha um arvoredo, nos fundos da casa, e tudo frutificava cedo. “Existia um pé de azeitona, que ninguém sabia o que era na época, carregado de frutas, e ele dizia que era ótimo para a saúde.”

MOCHILA MISTERIOSA

Nas saídas diárias, o holandês sempre tinha às costas uma mochila – também novidade aos olhos dos moradores – e usava uma bengala. O que ele carregava, nunca mostrou para ninguém. No entanto, Schirley Stein traz uma informação curiosa. “Ele carregava sempre um tipo de sacola e dentro tinha uma lata fechada. O meu pai soube mais tarde que era tipo uma ‘patente’, para fazer suas necessidades. Ele colocava nas plantas e dizia que tudo que expelimos é aproveitado.”

Já o empresário Sérgio Luiz Reichert, 63 anos, diz que dentro da mochila ele carregava pedras. “Era um homem muito católico. Acho que ele levava as pedras como se fosse uma penitência”, sugere.

Para Airton Bohn, Doni levava na mochila as pesquisas que fazia sobre os costumes e tradições de cada região, numa tese sobre divisões territoriais, e até editou um livro na língua Africâner, falada na África do Sul. “O pessoal sempre fez um ‘onda danada’ sobre ele. Mas acho que um estrangeiro causa estranheza mesmo e a imaginação corre solta.”

CASA PROTEGIDA

1 A advogada aposentada Schirley Stein relata que o holandês morava com os padres antes de ir para a casa das cinco estrelas. “As portas eram duplicadas, assim como as janelas, com várias fechaduras. Na parte de baixo existia uma sala, cozinha, um quartinho e uma cisterna.”

2 Na parte de cima, relata Schirley, existia uma escada, que era móvel. “Quando subia para o quarto, recolhia a escada para dormir. No quarto havia um tipo de caixa camuflada. Em caso de um ataque, ele se esconderia dentro e tinha um acesso ao forro da cozinha. Tudo com várias fechaduras.
Ele jamais falou porque fez uma casa assim.”

3 Sobre as cinco estrelas da fachada, Schirley diz que não sabe o porquê, mas lembra de um detalhe. “Sei que quando mostrou o seu quarto, dava para ver que tinha um furo no centro de cada estrela, que tinha a visão da frente de sua casa.”

O homem amável com crianças seria um nazista?

Entre os que conviveram com Doni, os Reichert têm outras impressões. Eles mantinham um comércio na região entre os anos 1950 e 1960 e têm suposições diferentes sobre o holandês: muito amável com crianças, mas um nazista.

Amelina Reichert, 85 anos, conta que Doni realizava as compras durante a semana, não tomava nota de nada, mas no fim do mês, sabia o quanto devia e acertava as contas. A aposentada, hoje moradora do bairro Macedo, lembra ainda que o holandês gostava muito de crianças e os filhos dela recebiam agrados, como balas e chocolates.

Um dos filhos dela, Ricardo, 55 anos, não tem lembrança de Doni, mas guarda até hoje uma correntinha com a medalha de Nossa Senhora Aparecida. “Ele deu para minha mãe quando nasci e ela ficou comigo. Essa santinha já me ajudou muito.”

Mesmo com o ‘carinho guardado’, Ricardo, que já leu e assistiu muito sobre a 2ª Guerra Mundial, arrisca: “Tudo indica que era nazista. Só pode. Eu não lembro dele, mas tudo que ouvi sobre ele, o que já li e assisti sobre o pós-guerra, eu acho que era sim.” A referência de Ricardo é sobre as inúmeras informações de que a América do Sul teria sido o destino de milhares que fugiram da guerra que assolou a Europa entre 1939 e 1945.

O irmão de Ricardo, Sérgio Reichert, conviveu com Doni. “Para mim era um alemão nazista fugido da guerra”, sugere, entre risos. “Era muito reservado, o cabelo cortado em estilo militar. Dormia no sótão, como se escondesse. A casa era uma verdadeira fortaleza, paredes duplas, aberturas reforçadas e tinha uma cisterna dentro. Mas sempre nos tratou muito bem e tinha muita sabedoria.”

A família Reichert, aliás, é a proprietária da casa das cinco estrelas. São donos porque o patriarca, Bruno (já falecido), tinha terras no entorno e nos anos 1970 comprou essa parte também. A casa está ‘cedida’ para um autônomo, de 38 anos, que paga água e luz em troca do lugar para morar.

Ouro?

Além de uma cisterna dentro de casa, há quem conte na Estância que dentro dela o holandês guardava ouro. Isso foi o que André Leandro Bourscheidt, 49 anos, ouviu dos mais antigos. Ele é vizinho de frente da casa das cinco estrelas. “Diziam até que tinha ouro no poço aqui em casa. Mas numa época de seca ‘braba’, ainda tinha oito metros de água. Vai que tem alguma coisa escondida lá embaixo?”

A volta para a Europa e o fim desconhecido

Airton Bohn foi um dos que mais conviveu com Doni. Ele lembra da ajuda que recebeu do holandês para começar a trabalhar no Banco Ítalo-Belga, em Porto Alegre, no início dos anos 1960. “Ele acompanhou eu e meu irmão, Clinton, numa viagem de vapor até a capital. Foi bem na época que o Brizola era governador. Sempre me incentivou muito a estudar e trabalhar.”

Depois, o holandês foi para a Europa e trocava cartas com Airton – até lhe enviou uma foto. “Em 1970 eu estava na Alemanha para uma especialização. O Doni estava em Liège, na Bélgica, e foi me visitar. Ele vivia estudando e estava na universidade de lá.”

Depois, Bohn diz que perderam contato e ele não ouviu mais falar do holandês. Não se sabe que fim levou, se casou, se teve filhos ou mesmo quantos anos tinha. “Doni era muito reservado e aí morou naquela casa com cinco estrelas. Ouvi que teria relação ao cinco continentes, mas não sei, não.”

O professor aposentado considera ainda que as muitas versões são devido à época com poucas informações sobre tudo. “As pessoas pouco conheciam do mundo e acho que ele ter esses mistérios contribuíram para a imaginação correr solta. Um europeu, reservado e com costumes diferentes, foi um fenômeno na localidade.”

SACRAMENTINOS

1 A história de Doni pode ter relação com a presença de padres holandeses na paróquia de Estância Mariante. Segundo informações da Diocese de Santa Cruz do Sul, em 1954, a Congregação dos Sacerdotes do Santíssimo Sacramento – padres sacramentinos – tinha como auxiliares os padres João van Hermen, Paulo Kroes e Pedro Versmissen, vindos da Holanda.

2 No mesmo ano, foi inaugurada a Igreja Matriz provisória em Estância Mariante. A mudança da sede paroquial de Mariante para a atual Estância Nova, foi motivada, principalmente, porque os padres sacramentinos iniciaram a construção de um seminário, em 1958.

3 Em 1974, com a saída dos padres sacramentinos da região, o seminário foi fechado e tudo foi a leilão, para custear despesas com o Estado. Tempos depois, o seminário virou o Instituto Penal de Mariante (IPM), que viraria a Colônia Penal Agrícola, fechada desde 2013.

E as estrelas, afinal?

Sobre o holandês, relatos diferentes ajudaram a costurar uma tentativa de perfil. Mas e sobre as estrelas vermelhas na fachada da casa? Como mencionado no início, não há conhecimento de documentos. Por isso, esta repórter toma a liberdade de também supor, a partir do que ouviu e do que os livros de História ensinaram.

Se considerarmos que as cinco estrelas têm relação com os cinco continentes, como mencionado por Airton Bohn, é possível associar ao republicanismo, o socialismo e o comunismo, por exemplo. Coincidência ou não, ao vê-las, a primeira coisa que veio à cabeça foram as estrelas do Kremlin, principal símbolo da ascensão dos comunistas na extinta União Soviética.

Para a historiadora Angelita da Rosa, seria importante saber o ano da construção da casa. Segundo ela, se houvesse essa informação, seria possível pensar em algumas relações. Ainda assim, é difícil afirmar algo.

Em uma busca rápida na internet, a pesquisa mostra a imagem da bandeira da província de Drenthe (na Holanda!), que tem estrelas perfiladas. Mas são seis, não cinco.

Nessas ‘quase’ pistas, não há a pretensão do certo ou errado, mas que todas estas impressões e suposições também sejam uma provocação. A expectativa é que essa matéria alcance outras pessoas que conviveram com o holandês ou que saibam sobre a história da casa das cinco estrelas.

Provavelmente há muito mais a ser contado, assim como outras histórias escondidas por aí.



Débora Kist

Débora Kist

Formada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) em 2013. Trabalhou como produtora executiva e jornalista na Rádio Terra FM entre 2008 e 2017. Jornalista no jornal Folha do Mate desde 2018 e atualmente também integra a equipe do programa jornalístico Terra em Uma Hora, veiculado de segunda a sexta, das 12h às 13h, na Terra FM.

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