Se fosse escolher um lugar, qualquer lugar no mundo que sintetizasse a minha avó, ele seria, sem dúvidas, a cozinha da casa dela. E não se trata aqui apenas de uma memória gastronômica. É claro que dali saiam as saborosas e inesquecíveis roscas e cucas, e também o pão de centeio, que eu particularmente achava bem ruim, na infância. Mas a cozinha da vó sempre foi além do simples lugar de cozinhar.
Já ouvi dizer que a cozinha é a alma da casa. Essa frase nunca fez tanto sentido. Naquele espaço aconchegante, de chão de parquê, com o fogão a lenha com uma chaleira sempre chiando e a cristaleira de madeira antiga, a vó sempre foi a protagonista.
Vejo ela em cada detalhe daquela cozinha. A pia sempre intacta – nunca houve escorredor de louças ali. Cada utensílio usado era imediatamente lavado, seco e guardado, para que logo o inox da pia voltasse a brilhar sem uma gota de água sequer, onde repousavam os guardanapos de crochê.
Um guardanapo, sob um arranjo de flores, também enfeitava a mesa de madeira que ficava no meio da cozinha. Aquela pequena mesa – uma herança da sogra, que originalmente era uma espécie de escrivaninha de quarto – tinha o tamanho ideal para o café e o almoço da vó e do vô. Em volta dela, era possível reunir ainda um ou dois netos em uma refeição. No caso de haver mais gente, recorria-se à mesa da sala, maior, onde era possível acomodar, com mais espaço, as travessas com as comidas preparadas com tanto afeto.
Aquela pequena mesa que ocupava o centro da cozinha também era o espaço para as partidas de canastra – um dos passatempos favoritos na casa da vó. Eu, minha irmã Sabrina e a prima Larissa também disputamos ali incontáveis rodadas de Paciência. A mesinha da cozinha também servia de apoio para a leitura da Folha do Mate ou o jornalzinho da Paróquia São Sebastião Mártir.
Qualquer que fosse a atividade, havia, por ali, sempre uma bandeja carinhosamente preparada com o lanche. Bolachas, roscas, cucas, as rodelas de pão cacetinho com nata. Algo sempre tinha para beliscar. Para beber, chimarrão, é claro. Mas, para as crianças, havia suco de framboesa servido em taças de alumínio que, na minha visão, pareciam copos de realeza. Nos dias frios, um chazinho preparado na hora.
Daquela cozinha, onde o rádio sintonizado na AM garantia a trilha sonora, também saiam sacolés, as bolachas pintadas de Natal, a keschmier que ficava pendurada na torneira até escorrer todo o soro. Nas grandes festas de família, aquele cômodo parecia um restaurante – grandes bacias com maionese, repolho, beterraba e ovo curtido, entre outras tantas saladas. Tudo depois dividido em diversos pratinhos espalhados pela mesa comprida. Mais tarde, por ali se erguia a operação para lavar e secar toda a louça.
Por trás dessa engrenagem toda sempre esteve a vó. Ela que quase não sentava para conversar com as visitas, entretida que ficava em preparar e oferecer o melhor. Ela que não mediu esforços para cuidar do marido até o último dia. Ela que precisava ser chamada insistentemente pelos filhos, nos almoços de Natal e Páscoa, para que finalmente sentasse à mesa para comer. Ela que presenteava as mulheres da família com panos de prato – e os homens com panetone (!) – a cada fim de ano. Que deu exemplo de vida comunitária. Que mesmo no labirinto do Alzheimer, seguiu nos presenteando com o sorriso e o abraço de vó e bisa.
Ela que amou com seus atos de serviço. Que, na sua singeleza e poucas palavras, ensinou tanto sobre cuidado e dedicação. Não importa o tempo, mas a alma dessa cozinha, onde ouvimos histórias, aprendemos sobre vida e família, e colecionamos memórias, nunca vai deixar de existir dentro de nós.
“O que eu penso a respeito da vida
É que um dia ela vai perguntar
O que é que eu fiz com meus sonhos?
E qual foi o meu jeito de amar?
O que é que eu deixei pras pessoas
Que no mundo vão continuar?
Pra que eu não tenha vivido à toa
E que não seja tarde demais”
(Jorge Trevisol)
*Este texto é uma homenagem para minha avó materna, Venilda Agnes, que partiu no dia 3 de julho, aos 81 anos.