Quando Ketelin Cabreira, 28 anos, e o marido Heitor Posselt, 44 anos, começaram a erguer os móveis da casa onde moram com os filhos Artur, 2 anos, e Mirele, 5 anos, no Loteamento Artus, não imaginavam que a água pudesse chegar a 2,5 metros e destruir tudo o que a família conquistou. As crianças foram as primeiras a sair. Na manhã de terça-feira, Ketelin saiu com o caminhão de bombeiros, enquanto Heitor permaneceu organizando os móveis. Às 14h ele pediu socorro, mas o resgate só foi possível quatro horas depois. Enquanto isso, ficou agarrado à janela, com o corpo submerso.
Há dez anos, o casal tinha enfrentado uma enchente na qual a água atingiu 30 centímetros dentro da casa. “Naquela vez só sobraram o roupeiro e a cozinha. Agora eles também foram. Perdemos tudo. Estamos na estaca zero”, resumiu a lojista, enquanto tirava o lodo da casa, na tarde de sexta-feira. Assim como todas as vítimas, Ketelin e Heitor não estavam preparados para isso. Para perder tudo. Para não ter um documento sequer. Nem dinheiro. Tudo varrido pela água.
Não estavam preparados para ver os filhos acordarem à noite, chorando: “tá vindo água, mãe?”. Ketelin não estava preparada para ver o quarto cor de rosa de Mirele, tão sonhado por ela, ser carregado pela água. “Não vou mais ter meu quarto, mãe?”
Quando ela me contou tudo isso, com a voz embargada, foi difícil segurar as lágrimas. Por mais experiência profissional que tenhamos, nós nunca estamos preparados para ver sonhos sendo soterrados, para ver pessoas em cima de telhados ou de árvores esperando resgate. Para ver embarcações circulando por onde passamos diariamente. Para ver corpos. Os entulhos que se abarrotam nas calçadas da nossa cidade. Estradas bloqueadas, pontes caídas, arroios mudando de curso, fábricas e supermercados destruídos, caminhos interrompidos. Para viver em calamidade.
Nos últimos meses, tem virado rotina incluir a palavra ‘histórico’ nas manchetes da rádio e do jornal. E isso nos dói. Não estamos preparados para viver essa história dolorosa de eventos climáticos – mais do que isso, para noticiá-la. Em menos de oito meses, foram quatro situações extremas: as enchentes de setembro e novembro, que afetaram os distritos de Vila Mariante e Estância Nova, o temporal que causou prejuízos em todo o município, em janeiro, e agora a enchente do arroio Castelhano e rio Taquari.
Não estamos preparados para entender que esse pode ser um novo normal, com uma maior frequência de desastres que antes levavam décadas para se repetir. Não estamos preparados para compreender o tamanho da nossa responsabilidade, como sociedade, no aquecimento climático e na ocorrência desses eventos. Mas precisamos, urgentemente, pensar e agir sobre isso.