OLHA RECOMENDA leitura da coluna do cientista político Francisco Ferraz.

é forçoso reconhecer que o Príncipe, e o pensamento político de Maquiavel, não apenas possuem vigência e atualidade no Brasil como, em todos os países e ao longo de todo este período de 502 anos. Há, pois algo de radicalmente válido no pensamento de Maquiavel que lhe conferiu a capacidade de navegar ao longo do oceano dos séculos, sem jamais ser considerado obsoleto, historicamente condicionado ou superado.

Talvez esse algo de radicalmente válido possa ser descrito como o comportamento humano em situações de ausência de normas ou de ambivalência, fragilidade e ilegitimidade das normas existentes para regular o comportamento dos cidadãos.Em situações como essas, os poderosos, os violentos, os ousados, os desonestos, instauram uma dinâmica de poder a qualquer custo, da busca da riqueza e do prestígio a qualquer preço e, do interesse pessoal acima de qualquer outro.

O argumento central da teoria política de Maquiavel, que significou um rompimento com o pensamento cristão ortodoxo da “Grande corrente do ser”, é precisamente a falta de articulação, coerência e hierarquia entre as diferentes dimensões da existência humana. Para ele não existe um conjunto de virtudes igualmente válidas para todas as esferas da vida (família, sociedade, política, economia, religião). Em outras palavras, o que é virtude numa esfera pode não ser virtude em outra.

Nossa condição humana e existencial envolve, segundo ele, contradições por meio das quais virtudes pessoais, quando aplicadas a situações sociais, podem transformar-se em malefícios públicos e, inversamente, comportamentos condenados na ótica de uma ética pessoal, quando aplicados a situações sociais podem resultar em virtudes. Não foi Maquiavel quem criou esta “armadilha existencial”, Esta, segundo ele, é a real condição da natureza humana. Esta é a realidade da vida – não a vida que desejaríamos, mas a vida como ela é, e Maquiavel dedica-se a explicar a política exclusivamente na vida real.

A economia visa à riqueza; a política visa o poder; a família visa a sobrevivência; a religião visa a salvação em outra vida; a vida social visa o prestígio e admiração. Ao buscar o objetivo próprio de uma dessas esferas o indivíduo se afasta do objetivo próprio de outra. Assim, ao procurar dar à sua vida um objetivo ético o indivíduo é, por exemplo, absolutamente fiel à palavra empenhada. Ao transferir este objetivo ético para a vida política, ele vai prejudicar seu principado, pois seus rivais não hesitarão em não manter a palavra que com ele empenharam.

“Por isso, um governante prudente não deve manter sua palavra, quando fazê-lo for contra o seu interesse e, quando as razões que o fizeram comprometê-la não mais existirem. Se os homens fossem bons, este preceito seria errado e condenável, mas, como eles são maus e não honrarão as suas palavras com você, você também não está obrigado a manter a sua para com eles.” (Maquiavel – O Príncipe Cap. XVIII)

Tornava-se assim impossível para Maquiavel a existência de uma mesma ética, aplicável com igual validade, à esfera privada, familiar e à esfera política. Cada uma delas tem uma lógica própria. O que é benefício numa pode ou não ser benefício em outra. Na política fundamentalmente, a disjuntiva ocorre entre vida privada e vida pública.O cidadão comum continua cultivando os valores da vida privada, acreditando que devam ser os mesmos para regular a vida pública, enquanto o político e o governante são forçados a administrar aquela inevitável contradição. é nessa diferença que reside a ambiguidade da política para o cidadão comum, e a sua tendência de encará-la de maneira negativa e pejorativ