Cinzas do passado
Qual é a semelhança entre a medicina e o amor? Segundo um provérbio francês, na medicina e no amor não há “sempre” ou “nunca”. E ontem, dia dos namorados, isso deve ter ficado evidente. Assim como dor no peito nem sempre é angina, também o “amor” mais arrebatador e eterno nem sempre dura mais que um ano e nem sempre é amor. E ontem, você, que está naquela faixa que se chama de “uma certa idade”, talvez tenha olhado para trás vendo a pequena, média ou interminável lista de amores “definitivos” que passaram por sua vida. E isso me dá uma ideia.Imagine você programando um encontro com uma ex-namorada que não vê há trinta e poucos anos. As circunstâncias pessoais não interessam aqui, digamos que você está apenas “disponível” e lembrou-se daquela loira “de fechar o comércio.” (Bons tempos em que o comércio fechava por causa de mulheres bonitas; hoje, fecha por motivos bem menos românticos.) Ela foi uma das primeiras a quem você jurou amor eterno, figurou lá no cabeçalho de uma lista que depois se tornaria maior que a do petrolão. Juntos, tiveram um longo e promissor namoro com direito a tudo o que era possível na época (não mais do que 10% do que é permitido hoje).Depois de todos esses anos, você está passando pela cidade onde ela mora, descobre o telefone, liga, e ela, “disponível” como você, aceita um encontro. Será num restaurante. Pouco antes do horário marcado, lá está você numa mesa discreta bebericando um campari. Você não participa das redes sociais, portanto nunca viu uma foto recente dela, nem ela de você. Você franze a testa para olhar cada mulher que entra no restaurante (devia não ser tão vaidoso e ter trazido os óculos). Pergunta ao garçom se uma loira não o procurou. Ele diz que não.Por que será que aquela senhora morena e atarracada tanto caminha entre as mesas? Será a dona do lugar? Quando ela se aproxima, seus olhares se encontram e…- Dorinha?- Alfredo?Umas gotinhas de suar brotam na sua testa, mas o calor que você sente não é de emoção. Você está chocado, a mulher que está na sua frente é sua ex, mas parece uma estranha.- Tu… tu não mudou nada, Dorinha! (Meu Deus, ela está de cabelo preto. E aquela adorável cinturinha, sob quantas camadas se escondeu?)- Tu também continuas o mesmo, Alfredo. (Credo, como está enrugado. Pintou o cabelo. Precisava ser acaju? E está com três queixos.)- Há quanto tempo, hein? Parece que foi ontem! ( Ela sorri só com a metade da boca. E uma pálpebra pisca atrasada. Será botox?)- Os anos te fizeram bem, Alfredo. Tu estás com um ar de … de… prosperidade. ( Se o tamanho da barriga contar, deve ter ficado muito rico. Humm, mas o colarinho está meio puído)- Bonita a cor do teu cabelo. Te parece bem natural. ( Nossa, ela exagerou no pretume.)- Que bom que tu gostou. Vou te contar um segredo: ele sempre foi preto, eu é que pintava de loiro.Mais esta! Ela enganava você na cor do cabelo. Vai ver que muita coisa mais era postiça e você nem sabia.- Vamos? – ela pergunta.- Vamos o quê? – balbucia você.- Jantar, ora! Estou tonta de fome. ( Talvez a comida salve a noite, porque o Alfredo… Como é que fui aceitar este encontro? Acho que vou passar mal, aí tenho desculpa para ir embora. Posso falar que foi a emoção.)- Então, vou chamar o garçom ( Por que o meu celular não toca? Aí tenho uma desculpa para sair).Pronto.Terminou o espaço desta coluna. O final? Você decide…O certo é que os dois se convenceram de que rede social já é artigo de primeira necessidade.