Venâncio Aires - Já faz uns 30 anos que assisti à peça teatral Donana, escrita e interpretada por Ronaldo Ciambroni, que mereceu diversos prêmios nacionais e internacionais. Donana é uma velha senhora que vive sozinha num pequeno apartamento onde, em meio a reminiscências sobre a sua vida, vai ficando doente e incomunicável. Lembra que fez escolhas erradas e abriu mão de muitos sonhos, acreditou mais nos outros do que em si mesma. Ao final, arrastando-se pelo chão devido a uma fratura, ela sente que a morte está chegando e pronuncia a sua derradeira e paradoxal frase: “A lucidez só me vem agora que perco a consciência.” Fecha-se a cortina.
Lucidez. É o que todos nós deveríamos ter o tempo todo. É condição primordial para conhecermos a vida por inteiro, tomar decisões, escolher caminhos individuais, influenciar a sociedade. A lucidez é a porta aberta para o livre pensamento, para o desenvolvimento da inteligência e para a compreensão do mundo. Mas é, também, a verdadeira noção da realidade que nem sempre nos é favorável e muitas vezes nos faz entender que estamos num beco sem saída.
O Natal e o Ano-Novo nos fazem flutuar um pouco acima do mundo real. Nesta época, somos levados a acreditar nos votos, emanados ou recebidos, de felicidades, saúde, paz e prosperidade. Porém, o calendário inexorável vai logo virar a sua folhinha e fazer cessar nossa breve levitação, trazendo-nos de volta ao chão.
O ano de 2026 será de sérias decisões. Precisamos estar com a nossa lucidez mais acesa do que nunca. A primeira coisa é que devemos nos convencer de que o Brasil é feito por nossas escolhas. Estamos assistindo ao desenvolvimento de uma situação de conluio entre poderes que nos coloca numa situação análoga a uma ditadura, onde a lucidez gera pensamentos que podem ser reprimidos ou calados pelo medo. Caminhamos rapidamente para uma república do pensamento único.
Perdeu-se a vergonha para fazer conchavos, já não há mais pudor em defender e proteger criminosos de alto escalão onde eles próprios e seus advogados se misturam com aqueles que deveriam julgá-los. E dê-lhe festas, camarotes, passeios de jatinho, palestras patrocinadas, cochichos ao pé do ouvido protegendo a boca para que ninguém consiga fazer a leitura labial das conversas, tudo isso resultando em surpreendentes sigilos processuais e gigantescos perdões monocráticos. Evoluímos mal. Já tínhamos o crime organizado. Agora, temos o crime legalizado.
Não posso esgotar esse espaço sem desejar a você, a quem agradeço a leitura e os comentários incentivadores, um feliz Natal. Para 2026, eu lhe desejo muita lucidez. Ao contrário da infeliz velhinha da peça, precisamos, todos nós, preservar a lucidez bem antes de perdermos a consciência.