Era uma iluminada manhã de outono, com um céu azul quase límpido, não fossem algumas nuvens escassas em forma de finas plumas, as quais os antigos chamavam de ‘rabo de galo’. Na carona de um Fusca branco, eu olhava silencioso a paisagem do Vale do Rio Caí e pensava que, num dia tão bonito como aquele, nada de ruim devia acontecer. Existia um Criador que haveria de me livrar de algo terrível que eu estava pressentindo.
Duas horas antes, naquele 19 de maio de 1969, um telefonema chegara à secretaria da Faculdade de Medicina de Caxias do Sul dizendo que meu pai estava muito mal e que eu viajasse urgentemente. Um colega de turma ofereceu-me transporte. Ele já sabia da triste notícia que a secretária da faculdade não tivera coragem de me contar, e só fui sabê-la ao bater na porta do hospital São Sebastião Mártir, ao meio-dia daquele dia lindo e fatal. Meu pai havia morrido naquela manhã, vítima de um infarto do miocárdio.
Meu pai era um homem bom, todos diziam. Comerciante honesto, empreendedor, liderou a criação de duas escolas no nosso Taquari Mirim, lá nas últimas beiradas do município de Rio Pardo. E fez mais: uma capela, um salão comunitário, a primeira rede elétrica da CEEE construída no município, um feito impossível para aquela época. Ergueu com recursos próprios uma rede telefônica de sete quilômetros de extensão.
Vendia fiado aos vizinhos para pagarem na safra, sem cobrar juros e sem atualizar os preços, levava doentes ao médico a qualquer hora sem cobrar a viagem, e até emprestava dinheiro para consulta e remédios. Permitia que pessoas pobres morassem nas nossas terras e dava serviço para quem quisesse. Em família, ajudou minha avó, precocemente viúva, a criar os quatro irmãos menores que o respeitavam como a um pai. Por que um homem assim, tão útil à sociedade, deveria morrer aos 50 anos?
Eu estava cursando Medicina há apenas três meses e a continuidade na faculdade particular ficou por um fio. Só pude continuar pela firme determinação da minha mãe, que renunciou a qualquer conforto, e pelo trabalho de professor que exerci em cursos pré-vestibulares e supletivos de Caxias em todas as minhas horas livres.
Sete anos após, na tarde de 17 de maio de 1976, minha mãe também nos deixou, aos 52 anos. Minha irmã, que perdera o pai aos 10 anos, agora ficava sem a mãe aos 17. Também em maio perdemos um tio, anos depois.
A morte do meu pai por infarto me levou para a cardiologia. A doença incurável da minha mãe me fez escolher Venâncio para aqui trabalhar e ficar ao lado dela até o fim. Não tive tempo de lhe dar nada mais do que amor e carinho, nem mesmo seus dois desejos mais acalentados. Queria morar num sobrado; e sonhava fazer uma viagem de navio com a família.
Mas o mês de maio, ao longo do tempo, teve as suas intermitências, ou seja, intercalou fatos ruins com coisas boas. Meu primeiro filho é de maio. Minha irmã e uma das minhas noras também festejam aniversário em maio, as duas no mesmo dia. São precedidas, na véspera, pelo aniversário de outra nora. Também em maio fomos morar na ‘casa nova’, onde já estamos por 40 anos, e onde nossos três filhos riscavam autódromos no cimento novo e, agora, nossos cinco netos desenham suas memórias nas paredes.
Maio me deu e me tirou de forma intermitente. Entre as perdas irrecuperáveis, está um naco bem grande da minha fé. E a constatação irrefutável de que coerência, lógica, merecimento e recompensa não são certezas absolutas desta vida.