Difícil era a missão dos médicos da antiguidade. Havia várias obrigações repugnantes no trato com os doentes; entre elas, a de provar a urina dos enfermos na tentativa de diagnosticar certas doenças. Diabetes, por exemplo, conhecida desde 1500 anos antes de Cristo, era confirmada pelo gosto doce da urina. Somente no ano de 1776 é que foi descoberto um método laboratorial de diagnosticar a doença, livrando assim os doutores de sentir o gosto do xixi dos seus pacientes. Se persistisse até hoje o método antigo, certamente não haveria tantos jovens vocacionados para a medicina, a não ser para especialidades ditas cosméticas e harmonizantes que não levam em conta o lado de dentro do corpo e suas excreções desagradáveis.

Não vou tratar aqui dos pormenores da diabetes, porém tenho que dizer que essa doença mata se não for tratada, e isso tem a ver com a história que vou contar; e que, já vou dizendo, não ocorreu em Venâncio. O Beltrano era um diabético que abusava de tudo o que era ruim para a sua moléstia: comilanças em geral, doces, vinhos e cervejas, uísque, prazeres que resistiam a todos os alertas médicos. Com 40 quilos acima do peso, fumando três carteiras por dia, mulherengo e um pouco machista, tinha ainda charme suficiente para estar iniciando o seu terceiro casamento. Por ‘charme’, entenda-se uma gordíssima conta bancária e uma considerável carteira de imóveis bem localizados. Sua condição física já o impedia de alguns atos corriqueiros da vida, mas a jovem e saudável esposa estava ali para o que desse e viesse. Sempre que perguntada sobre o porquê de aguentar uma sacrificada vida de quase cuidadora de tempo integral, a moça respondia que fazia isso por “uma questão de princípios”. As más línguas falavam: só se for princípio de infarto, princípio de derrame, princípio de trombose.

Com o quadro clínico se complicando, teve que baixar hospital. Vieram os melhores médicos que lhe aplicaram os melhores medicamentos no melhor dos hospitais. Mas a glicose não baixava de jeito nenhum. Mais especialistas, consultorias com endocrinologistas famosos, dieta rigorosa controlada por nutricionistas vigilantes, nada dava resultado, e a glicemia alta produzia consequências deletérias sobre os rins, o coração e o cérebro. Tudo isso sendo acompanhado pela incansável esposa que não arredava pé da suíte hospitalar 24 horas por dia.

Enfim, nada conseguiu evitar o desfecho fatal, o óbito.

Desocupada a suíte, foi alguém da equipe da faxina hospitalar que descobriu o mistério: num dos armários, havia pilhas de caixinhas de leite condensado, todas abertas e vazias, cujos conteúdos seriam suficientes para neutralizar os efeitos das altas doses de insulina e outros medicamentos antidiabéticos. Até hoje paira a dúvida: a devotada esposa apenas obedecia cegamente aos desejos e ordens do autoritário marido, fornecendo-lhe às escondidas a preciosa guloseima, ou ela cometeu deliberadamente um doce, lento e perfeito assassinato?

Essa é uma obra de ficção inspirada livremente em fatos reais que poderia render um seriado da Netflix.