Fogo de chão autêntico não pode ter sinal de Internet. Já imaginou uma roda de peões se esquentando ao redor das brasas com as mãos ocupadas no celular, olhos fixos na telinha, zero conversas? Sou do tempo do fogo de chão raiz, onde o pessoal se reunia nas tardes geladas e chuvosas para botar a prosa em dia e se atualizar com as notícias. Era uma espécie de rede social de curto alcance envolvendo a vida dos vizinhos e conhecidos. E muitas histórias fantásticas. Uma delas era a do lobisomem.
Hoje em dia, a tal de Inteligência Artificial cria um lobisomem em segundos. Mas, antigamente, quando se acreditava que esse bicho existia de fato, a descrição da criatura era vaga e imprecisa. Interessava saber, mesmo, quem era o vivente que tinha a maldita sina de se transformar naquele bicho medonho e depois voltar ao normal como se nada houvesse.
Lá no meu saudoso Taquari Mirim, era voz corrente que um certo senhor idoso se transformava em lobisomem. Ocorre que, ficando muito velho, doente e acamado, já não reunia mais forças para a tão terrível metamorfose corporal e, no leito de morte, passava o tempo todo perguntando: “Quem qué? Quem qué?” Os vizinhos apareciam no rancho para lhe dar alguma ajuda e saiam de lá convencidos de que aquela pergunta era para passar adiante a maldição, ou seja, alguém tinha que ‘querer’ herdar a sina de se transformar em lobisomem. Só assim o pobre velho poderia morrer.
Assim, ele continuava a penar até que um dia foi visitá-lo um tal de seu Alcides (nome fictício aqui), homem de uns 50 anos, viúvo, fama de namorador com preferência por mulheres jovens, aquelas que ainda tinham “as etiquetas”, como ele costumava dizer. Ele ficou penalizado com a agonia do velho, “Quem qué? Quem qué? E, sem pensar muito, respondeu: “Eu quero!”. Pronto. O moribundo morreu na hora, nem deu tempo de fechar os olhos.
Seu Alcides passou a ser observado. Diziam que sumia na tardinha das sextas-feiras e só mostrava as caras nas segundas. Quem o via, jurava que apresentava uns arranhões na cara e usava mangas compridas mesmo nos dias de calor. Falavam também que pequenos animais como galinhas, ovelhas e cabritos desapareciam das propriedades e, às vezes, partes dilaceradas dos seus corpos eram localizadas. Quando chovia, rastros estranhos de patas eram vistos no barro. Algumas pessoas até descreviam terem avistado uma espécie de cachorro muito grande com olhos de brasa rondando as propriedades nas noites de sexta-feira. No mais, seu Alcides continuava namorador e os moradores mais céticos diziam que, nos seus sumiços de fim de semana, ele ia se divertir na ‘zona’ de Santa Cruz. Mas as pessoas passaram a olhá-lo com desconfiança e a fama de lobisomem nunca mais o deixou.
Muitos anos se passaram. Certo dia, quem aparece no meu consultório? Justamente ele, seu Alcides, meu conterrâneo, o suposto lobisomem do Taquari Mirim. Examinei-o com toda a atenção, fez todos os exames existentes, tratei da sua doença cardíaca por muitos anos e, juro, jamais encontrei nele nenhum sinal, nenhuma marca, nada que não fosse rigorosamente humano naquele ser que carregou por décadas uma fama devastadora. Tudo isso num tempo em que as ‘redes sociais’ se limitavam a conversas de comadres, botecos e fogo de chão. Imaginem hoje.