Madrugada em Brasília. Um pequeno grupo de operários chega à deserta Praça dos Três Poderes a fim de remover uns gradis de segurança. Ao passar perto do palácio do Supremo Tribunal Federal, um dos trabalhadores dá um grito assustado e aponta para a estátua da Justiça. A estátua está de pé! A obra esculpida em granito representando as deusas greco-romanas da Justiça, com mais de três metros de altura, sempre esteve sentada em seu pedestal desde 1961. Os olhos vendados representam a imparcialidade.
A espada repousando sobre o colo significa a força, a coragem e a ordem necessárias para impor o Direito. O fato de ter sido esculpida na posição sentada tem uma interpretação controversa: para alguns, simboliza o descanso e a serenidade após um julgamento justo; para outros, significa a morosidade da justiça brasileira.
Mas agora a estátua da Justiça está misteriosamente de pé. E, ante os olhares atônitos dos operários, ela levanta o braço esquerdo, arranca a venda dos olhos e empunha a espada com o braço direito provocando um forte ruído de pedra moída ao movimentar suas articulações. E fala! “Não fujam, senhores! Eu não causo mal aos inocentes.” A voz é árida e rascante como se alguém tivesse areia na garganta, mas perfeitamente compreensível.
A estátua prossegue: “Preciso que alguém testemunhe o que vou dizer.” Três operários mais corajosos sacam os celulares e começam a filmar. “Estive sentada aqui por mais de 60 anos.
Já vi de tudo nessa praça, fui pichada de batom, me bombardearam com fogos, nada disso alterou meu corpo pétreo, mas justiça de verdade eu muito pouco vi. Já passei por ditadura, tive que dar anistia a torturadores, sequestradores e guerrilheiros, já vi escreverem uma nova Constituição e, depois, interpretarem-na como se fosse um cordão elástico, um camaleão trocando de cor, uma biruta mudando de direção conforme o vento.”
Os operários estão boquiabertos. A estátua continua: “Sentada aqui, sinto-me inútil. Leis frouxas soltam assassinos que deveriam ter prisão perpétua. Decisões individuais perdoam ladrões poderosos e, assim, incentivam o crime. Julgamentos de delitos graves são anulados por firulas jurídicas e colocam em liberdade criminosos que voltam à cena sem escrúpulos e sem nenhuma vergonha. E são aplicadas penas conforme as posições ideológicas e políticas dos réus. E usam meu nome para defender uma estranha democracia que pende para um lado só. Pra mim, deu! Fui!”
Dito isso, a estátua saiu caminhando pela praça, passou pela frente do Palácio do Planalto e do Congresso Nacional e depois foi arrastando seus pés de granito pelo asfalto do Eixo Monumental, dobrando aqui e ali nas ruas desertas até chegar ao lago Paranoá. Atravessou a ponte Honestino Guimarães e, logo adiante, adentrou as águas e foi afundando aos poucos até se afogar completamente defronte às mansões da Península dos Ministros.
Ao deporem para as autoridades, os operários ficaram detidos. Seus celulares foram apreendidos. Gravações de todas as câmeras de segurança da região foram confiscadas. O desaparecimento da estátua da Justiça foi dado como mais um ato de vandalismo e já são indiciados os culpados de sempre.
A investigação foi posta em segredo de 100 anos.