Abri meu consultório em Venâncio no já distante ano de 1976. Comigo, havia 10 médicos atuando no município de 25 ou 36 mil habitantes, mais de dois terços residindo no interior. Todos os médicos tinham seu consultório na própria residência com fácil acesso pela rua. Isso era necessário porque os clientes apareciam a qualquer hora do dia ou da noite, já que não havia nenhuma espécie de plantão, nem mesmo no hospital. Não havia postos de saúde municipais. Quem tinha emprego formal portava uma “carteirinha do INPS” que dava direito a internação hospitalar e a algumas fichas de consultas distribuídas, sob fila, por um representante local da Previdência. Agricultores não tinham cobertura e tinham que pagar suas despesas médicas e hospitalares.

Os médicos organizavam por conta própria um plantão informal: a cada noite, a cada sábado, domingo ou feriado, um de nós ficava de sobreaviso para atender as urgências e correr aos hospital nas emergências. Aquele do “plantão” não podia nem se ausentar de casa, pois os telefones eram escassos para localizá-lo. Não havia remuneração pelo sobreaviso como é hoje; arriscava-se não ganhar nada, mas geralmente apareciam algumas consultas. E as pessoas que não podiam pagar? Sim, elas sempre existiram, mas eram também atendidas. Na pratica, atendia-se primeiro para só falar em valores depois. A maioria pagava no futuro, alguns não pagavam nunca, mas o certo é que não havia omissão de socorro. Cada médico obrigava-se a atender pacientes de todas as idades, doenças e procedimentos de todos os tipos, naturalmente dentro das possibilidades técnicas existentes. A formação dada nas faculdades e nas residências médicas permitia essa versatilidade.

Um dos colegas era o doutor Granja, coronel médico reformado do Exército. É dele a frase “Quanto mais abelhas, mais mel”. Quando um novo médico pedia ingresso no Corpo Clínico do hospital, ele sempre concordava e pronunciava a já famosa frase. Na generosa visão dele, quanto mais médicos (abelhas), mais mel ( clientes) . E ninguém precisaria se preocupar com a concorrência.

Venâncio, 2025. População aproximada: 70 mil. O dobro de 1976. Número de médicos em atuação: mais de 130, ou seja, 13 vezes mais do que em 1976. Só na UPA, 45 profissionais ( média de 240 consultas por dia, podendo chegar a 350). Nos 21 postos de saúde (UBS) mais uns 25 médicos e médicas. E mais os do plantão do hospital, dos ambulatórios de sindicatos e empresas e ainda todos os consultórios particulares. Mesmo assim, há longas listas de espera para exames e procedimentos. As promessas de saúde são sempre as estrelas de todas as campanhas políticas municipais, estaduais ou federais.

“Saúde é direito de todos e dever do Estado”. Estará nessa frase generosamente demagógica da Constituição a explicação para o descompasso da saúde no Brasil? Será que aumentando 30 ou 50 vezes o dinheiro para a saúde os problemas se resolvem? O saudoso doutor Granja tinha razão no seu ditado, mas não podia prever que, um dia, o mel fosse tanto que ninguém conseguiria dar conta dele.