Sobre prazeres e punições, ou do dia em que Thomaz foi dormir muito tarde
Na nossa casa, não tem moleza. Na hora de acordar para a escola, nem adianta tentar corpo mole, virar para o lado ou resmungar.
– Anda, Bruno. A próxima vez que passar por teu quarto, quero te ver de uniforme.
– Thomaz, vamos logo escovar os dentes e arrumar esse cabelo, que está todo arrepiado.
Quem tem hora para acordar, não precisa de hora marcada para dormir. Se passar do ponto, no outro dia que arque com as consequências. Aos três, aos treze, aos trinta. Respeito a importância da rotina e das regras para a qualidade de vida, a segurança e a disciplina das crianças, mas também defendo o direito às escolhas e às suas consequências, o direito à liberdade, à criatividade e a desfrutar das coisas que dão prazer e satisfação. Como o filme favorito que resolve seguir madrugada adentro. Não pode todo dia, mas.
Foi no meio da semana que Thomaz viu a propaganda. Um anúncio da TV divulgava seu filme preferido na segunda-feira.
– Mãe, já é segunda-feira?
– Ainda não, Thomaz, é recém quinta.
– Mas, mãe, quando vai dar Tela Quente?
– Na segunda.
– E quando é segunda? é depois de ‘de manhã’?
– Thomaz, quando chegar o dia te aviso.
E o dia chegou.
– Mãe, é hoje que tem Vingadores?
– Sim, filho, mas vai passar bem tarde. Quem sabe a mãe pega o filme na locadora e olhamos noutro dia?
– Mas, mãe…
– Amanhã tu não vai conseguir acordar e ir para a escola.
– Vou, sim.
– Vai estar cansado, mas a mãe vai te tirar da cama assim mesmo, sem dó.
– Tá beeeem.
As horas foram passando e nada do pequeno se entregar.
– Falta muito para os Vingadores?
– Falta.
– Falta muito para os Vingadores?
– Não falta.
– Falta muito para os Vingadores?
– Já vai começar.
Thomaz assistiu ao filme do primeiro ao último minuto, enquanto Bruno dormia no sofá. Depois dos créditos, ainda fez alguns comentários sobre como o Hulk é assustador e me pediu para ir dormir. Alertei sobre nosso combinado para a manhã seguinte.
– Sem choro ou resmungo na hora de levantar para ir para a escola.
– Eu sei.
Coloquei o Bruno na cama. Coloquei o Thomaz na cama e fui dormir. Já eram quase duas da matina, mas estava feliz por ter acompanhado meu pequeno em uma de suas programações favoritas, os filmes de heróis.
Na manhã seguinte, mesmo com sono, não reclamou. Aguentou firme a consequência de sua escolha e foi para a escola brigando secretamente contra os olhos que teimavam em se fechar.
Avisei a professora que ele deveria estar cansado, que quebramos a rotina e passamos do horário de dormir. Combinei com ele que depois da aula poderia almoçar e dormir um pouco.
A manhã pssou sem sobressaltos.Thomaz compreendeu que toda escolha tem suas consequências e, como capaz de entender que já é, aceitou a pena de acordar mesmo com sono. E de ir para a escola mesmo com vontade de ficar na cama. Quem nunca?
Talvez na próxima, ele pense duas vezes, talvez não. Quanto vale um gosto? Quanto estamos dispostos a pagar? Onde está o equilíbrio? Quem dá as regras? é fácil aprender com regras. Mas aí é aprendizado ou imposição?
Talvez você esteja pensando:- Mas ele é muito pequeno para decidir. E provavelmente é. Mas a decisão não foi dele, foi minha. Apenas deixei que ele participasse da escolha, mas não o protegi de suas consequências.
Quero que meus filhos tenham discernimento para escolher, que cumpram normas por acreditarem nelas e não porque alguém as redigiu. Procuro educá-los antes de formatá-los, porque se um dia a rotina mudar ou a regra deixar de existir, os valores e as crenças que eu os tiver ajudado a construir ainda estarão intactos.
Vai um filminho hoje?