A festa da luz: os 50 anos da chegada da energia elétrica em Centro Linha Brasil

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Em 1970, o Brasil vibrava com aquilo que se consagrou como as maiores audiências da história da televisão: futebol e novelas. Foi o ano de Pelé, tricampeão Mundial de futebol, e de João Coragem, eternizado pelo ator Tarcísio Meira, galã da Globo e protagonista da novela Irmãos Coragem.

Mas, além da TV, era a geladeira que dividia as preferências de muitos, afinal, também era uma ‘revolução’ na casa de quem conseguia comprar. Esse sonho de consumo virou realidade ainda naquele ano na casa dos Mohr, em Centro Linha Brasil, interior de Venâncio Aires.

Como era de costume, tudo que é caro, precisava ficar bem guardado. Mas, nesse caso, não foi para poupar o equipamento e, sim, porque sem luz, ele não tinha como funcionar. Dessa forma, a Consul branca ficou um ano encaixotada até, finalmente, ser ligada. Essa é uma das histórias em torno do inesquecível 31 de dezembro de 1971, há exatos 50 anos, quando os Mohr e mais duas dezenas de famílias da localidade, comemoraram, com uma festa de verdade, a chegada da energia elétrica.

No ‘muque’ da ‘colonada’

“Arcildo, vamos participar. Não dá para perder.” Era meados de 1971, quando Emilio Seidel desceu uma das tantas lombas de Centro Linha Brasil até as terras de Arcildo Frese, para propor que o agricultor também participasse do novo grupo de contemplados com uma rede de energia elétrica.

O diálogo foi presenciado por um guri que tinha de 6 para 7 anos. “O pai ficou interessado, mas sempre foi muito seguro, um pé atrás com tudo. E como a gente tinha recém-construído a casa, não tinha dinheiro sobrando”, recorda o agricultor Roni Alberto Frese, hoje com 57 anos.

Até então, entre 1969 e 1970, apenas uma parte de Centro Linha Brasil tinha rede de luz instalada. A outra ponta ainda estava no aguardo para também ser contemplada. Esse trabalho de mobilização foi puxado por Emílio Seidel, um ex-pracinha da Segunda Guerra Mundial e na época orientador de tabaco. Simpatizante do MDB, também tinha certa influência política, e era visto como uma liderança na comunidade.

Com o ‘ok’ de pouco mais de 20 famílias, era só começar. Mas, diferente do serviço atual de uma concessionária, foram os próprios moradores quem cavaram os buracos dos postes. “Tinha a empresa do Enio Farah, de Santa Cruz [contratada da CEEE], que mandou um único funcionário. Ele comandou a ‘colonada’, sem nada em mãos. O prumo dele era no olho”, lembra Roni Frese.

O agricultor, ainda criança, viu o pai e vizinhos erguendo os postes no ‘muque’. “Olhando para trás, a gente vê que o pessoal se ajudava muito. E essa integração, essa ajuda entre vizinhos, foi se perdendo. Não sei se hoje essa união seria vista novamente como na época”, avalia.

Financiamento

O programa de eletrificação rural no Rio Grande do Sul começou no fim da década de 1960. Ele era patrocinado com 50% pela Eletrobras, 20% pela Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE) e o restante dividido pelos moradores, financiado pelo Banco do Brasil, onde atendeu diversos municípios do Vale do Rio Pardo, entre eles Venâncio Aires.

Arcildo Frese foi um dos que precisou financiar para garantir um cabo de luz até sua casa, mas, como morava numa ‘baixada’ longe da estrada principal, gastou mais. “O dinheiro do banco deu para esse ‘braço’ de quatro postes. Mas até em casa foram necessários mais três, incluindo o contador. Isso o pai pagou do próprio bolso”, conta Roni.

O agricultor lembra que as obras foram rápidas e, já na véspera de Natal, o ‘boca a boca’ na localidade levava a boa-nova: já dava para ligar a luz. Depois disso, tudo foi festa.

Lires e Dario Dessbesell também estiveram na festa do dia 31 de dezembro de 1971 (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

Polonese num depósito de fumo

Como toda grande obra, a luz também merecia inauguração. Assim, o convite se espalhou entre os moradores: uma festa na casa de Emílio Seidel, no dia 31 de dezembro, em pleno São Silvestre.

Para receber mais de 100 pessoas naquela noite de churrasco e baile, Seidel esvaziou um galpão próprio que servia de depósito de fumo da extinta tabacaleira Flórida, empresa na qual ele era orientador. Era lá que diversos agricultores levavam fardos de tabaco seco para serem transportados até o centro de Venâncio.

Entre os convidados, estavam os jovens noivos Lires e Dario Dessbesell, hoje com 69 e 70 anos, respectivamente. “Todo mundo estava eufórico com a luz, era uma alegria só. Lembro que o Scherer [Alfredo, então prefeito] não discursou. Ficou mais de lado e apenas um secretário falou. O prefeito tomou a frente, mesmo, para puxar a polonese com a esposa [professora Odila Rosa Scherer]”, lembra Dessbesel.

Lauro Weiss, que tocou em 1971, trabalhou como músico profissional por 45 anos (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

Músicos

A polonese e as demais músicas de bandinha ficaram a cargo de um trio de rapazes, com seus pistons e gaita, integrantes do Jazz Real. Como um deles, Lauro Weiss, era genro do anfitrião, nenhum dos músicos recebeu. “Foi na parceria, de graça mesmo”, recorda, entre risos, Lauro José Weiss, hoje com 74 anos e 45 deles dedicados a bandas profissionais.

Na época, ele conta que o então sogro logo comprou uma TV, o que virou o centro das atenções na propriedade de Emílio Seidel. Antes disso, Weiss percorria de bicicleta alguns poucos quilômetros até a residência dos Pilz (onde a luz já tinha sido instalada no ano anterior), para acompanhar pela TV as emoções da novela Irmãos Coragem.

Os outros dois músicos que tocaram naquela noite foram os irmãos Astor e Ornélio Bartholdy (já falecidos). A esposa de Ornélio, Julieta Bartholdy, 70 anos, não acompanhou o marido na festa de 1971, já que, em pleno dezembro, precisava fazer a ronda no forno de fumo.

Julieta conta ainda que, ela e Ornélio, então recém-casados e ainda tentando organizar a vida, não tiveram condições financeiras para integrar o grupo da luz naquele momento. Mas, no sogro Alvino, “das licht brannte” (a luz já queimava).

Os irmãos Astor e Ornélio Bartholdy, e o colega Lauro Weiss, foram os músicos que animaram a festa de inauguração da luz (Foto: Arquivo pessoal)

As maravilhas de uma Consul branca e o sabor de um picolé

Quando a primeira parte da localidade foi iluminada com energia elétrica, sabia-se, na outra faixa, que a chegada da luz seria questão de tempo. Por isso, ainda em 1970, entusiasmado com a possibilidade, Alberto Mohr, tratou de cruzar o arroio Castelhano para comprar uma geladeira em Monte Alverne, já no lado de Santa Cruz do Sul.

Na casa de Claudete Schmidt, o canto da geladeira sempre foi o mesmo. Atualmente, ele segue ocupado por uma Cônsul branca (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

O equipamento, em promoção em diversas lojas da região devido ao ‘boom’ da luz, veio acompanhado de um brinde: uma dúzia de garrafinhas de cerveja. Quem recorda essa história é Claudete Schmidt, 66 anos, filha de Alberto, e o marido dela, Elstor, 71 anos. “Ficou encaixotada naquele canto [o mesmo que ainda hoje é o espaço da geladeira], até chegar a luz”, conta Claudete.

Já Elstor destaca o avanço que foi poder refrigerar alimentos. “Antes para conservar uma carne deixava dentro de uma lata de banha. Queijo e nata ficavam dentro de uma gaveta, num quarto escuro, que era mais fresquinho, mas só durava de um dia para outro. E uma bebida ou uma sobremesa, se mergulhava dentro do poço.”

Inesquecível

Já no início da década de 1970, as geladeiras vinham com as tradicionais forminhas de gelo e, foi dentro delas, que muita gente fez picolé. Mas essa delícia gelada não foi saboreada por todos quando a luz chegou em Centro Linha Brasil. Em um caso específico, foi por uma pequena mágoa.

“Na casa da minha irmã já tinha luz e meu pai [Bruno Gabe] ficou chateado, porque entendia que a rede logo deveria ter chegado para todos os moradores. Daí quando a gente ia passear, a mana já tinha picolé, mas o pai nunca comeu, por birra”, lembra, entre risos, Lires Dessbesell.

Já na casa dos Frese, uma Consul branca só foi comprada em 1974. Então com 9 anos, Roni recorda dos primeiros picolés feitos pela mãe: água e um pacotinho de ‘Ki-suco’ de framboesa. A mistura era tão forte, que manchava lábios, dedos e o que mais encostasse. “Isso eu nunca vou esquecer. Para uma criança tem coisas que não têm preço.”

O agricultor lembra ainda da emoção de fazer o tema de casa à noite, na cozinha, com os cadernos iluminados sob uma fluorescente presa em barbantes. “A mãe improvisou uns cordões, porque toda vez que passava a vassoura para tirar o pó, ela soltava e ficava pendurada.”

Já em 1975, quando o pai, Arcildo, resolveu ‘abrir a mão’ e comprar uma TV, a alegria era assistir a novela Selva de Pedra (embora já fosse uma reprise) e os eternos Trapalhões. A Phillips 17 polegadas, em preto e branco, foi a TV dos Frese até a década de 1990.

História

Enquanto muitas localidades do interior e mesmo bairros mais afastados tiveram luz há cerca de 50 anos, no Centro de Venâncio o processo foi bem mais antigo. De acordo com o livro ‘Abrindo o baú de memórias’, em 1916, a Intendência Municipal firmou contrato com Jorge Schuck.

O cidadão, que era um industrialista, construiu uma usina de luz e força na rua Júlio de Castilhos esquina com a Barão do Triunfo, onde a energia era gerada. A geração e distribuição coube a Schuck até 1940, quando a Prefeitura decidiu, ela própria, instalar uma nova usina para dar conta da indústria e comércio que já cresciam.

Até 1956, o fornecimento foi feito pela Usina Elétrica Municipal, que tinha cinco geradores termelétricos. A usina ficava na rua Tiradentes, esquina com a Sete de Setembro, e que nos anos seguintes, também foi endereço das concessionárias CEEE, AES Sul e RGE.



Débora Kist

Débora Kist

Formada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) em 2013. Trabalhou como produtora executiva e jornalista na Rádio Terra FM entre 2008 e 2017. Jornalista no jornal Folha do Mate desde 2018 e atualmente também integra a equipe do programa jornalístico Terra em Uma Hora, veiculado de segunda a sexta, das 12h às 13h, na Terra FM.

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