“Aproveitem, que é o Mazzaropi que está aqui.” O alerta tinha sido feito pelo próprio, em carne e osso, dentro da casa dos Richter, que moravam na rua Júlio de Castilhos de chão batido, da Venâncio Aires ainda em preto e branco da década de 1960.
Sem jornal e com rádio ainda engatinhando, ninguém registrou o dia em que um ícone do cinema brasileiro pisou por aqui para se apresentar, ao vivo, no palco do Cine Imperial. Embora Adalberto Richter, o dono do cinema, torcesse o nariz para o cachê pedido por um dos maiores atores brasileiros, acabou cedendo. Assim, alguns venâncio-airenses tiveram a oportunidade de ver, pessoalmente, o próprio ‘Jeca Tatu’.
O episódio da vinda de Amácio Mazzaropi (1912-1981) a Venâncio é apenas um pedaço de uma história que é puro saudosismo. A história do Cine Imperial, o antigo cinema da cidade. Mesmo fechado há 40 anos, o prédio, que já foi ponto cultural, ainda mexe com a memória de muita gente. E são alguns desses relatos que a Folha do Mate traz nesta reportagem.
De um bilhete premiado ao negócio da família
Foi na década de 1940 que Adalberto Richert (1903-1973), um alfaiate de Monte Alverne, trocou o interior de Santa Cruz do Sul por Venâncio Aires. Veio com a esposa Herondina (1909-1994) e as três filhas ainda pequenas: Nilda e Nadir (hoje já falecidas) e Lourdes, atualmente com 88 anos. Richter foi convidado a assumir a economia do Clube de Leituras e, foi dentro de um dos locais mais frequentados da cidade, que ajudou a montar um cineminha.
Na virada para a década de 1950, a tela improvisada no Leituras já não existia mais, mas a ideia nunca saiu da cabeça do alfaiate. Quis o destino, mas muito mais a sorte, que Adalberto Richter fosse contemplado com um prêmio federal da loteria de bilhetes, em 1953.
“O valor não lembro, mas na época ele comprou vários terrenos na Júlio de Castilhos e ainda sobrou”, conta Gilson Roberto da Cruz, 67 anos, conhecido como Dicão. O aposentado é neto de Richter e estava na barriga da mãe quando o sonho do avô virou realidade: Lourdes estava grávida de Gilson, em 1954, quando o alfaiate mandou construir o prédio que viraria o cinema de Venâncio Aires.
Na época, Lourdes costumava sentar no entorno da obra para olhar a estrutura tomar forma. A equipe de pedreiros era liderada por Lindolfo Wildner (1901-1965), famoso construtor na cidade. “O pai tinha uma equipe grande e a obra andou bem rápido. As paredes eram com tijolo duplo”, lembra Carmen Therezinha Wildner dos Santos, 83 anos. O construtor Lindolfo, aliás, também é pai de Harry Wildner, um dos fundadores da Sociedade Venâncio-airense de Radiodifusão, em 1959, que deu origem à Rádio Venâncio Aires AM.
Família
A obra durou poucos meses e, quando Gilson já estava no colo da mãe, o Cine Imperial foi inaugurado, em 1955. Nos primeiros tempos, os rolos de filme vinham através de Nelson Evers, um primo de Herondina Richter e que era dono do Cine Apolo, em Santa Cruz do Sul. Depois, o próprio Adalberto ia buscar os ‘tubos’ em Porto Alegre. O cinema de Venâncio era um típico negócio de família: enquanto o patriarca vendia os bilhetes, o genro Élido da Cruz (pai de Gilson) era porteiro, a filha Lourdes cuidava dos comes e bebes no barzinho, Elemar Sperling (outro genro) era o projetista, os netos maiores já ajudavam na limpeza e Herondina era quem supervisionava tudo. “Era tudo muito organizado, para que nada saísse dos conformes”, conta Gilson, que também foi projetista no cinema dos 12 aos 25 anos.
Projetista
O trabalho de projetista era ponto chave. Era necessário muito cuidado no manejo do maquinário e dos rolos. Entre 1963 e 1967, quem teve essa função foi Wilson José Weschenfelder, 73 anos, jornalista que por décadas trabalhou na RVA e na Folha do Mate.
“Eu tinha uns 15 anos, era garçom na rodoviária [esquina da Júlio com Jacob Becker] e trabalhava na Fundição do Elemar Sperling [ao lado do Museu], quando ele me convidou para ajudar no cinema do sogro dele e me ensinou a projetar os filmes.”
Conforme Weschenfelder, eram duas máquinas, o que necessitava de duas pessoas. “Na sessão das 18h, aos domingos, o filme chegava em cima da hora, vindo de Santa Cruz. Às vezes eles colocavam errado dentro da lata, dava problema na fita, o que causava imprevistos durante a projeção. Daí o pessoal reclamava bastante”, lembra.
O jornalista também recorda de um momento especial vivido no cinema: o começo do namoro com Benilde, 73 anos, com quem é casado desde 1970. “Quando tudo estava correndo bem na projeção, eu conseguia abandonar a cabine uns minutinhos, descia para ficar um pouco com ela e depois voltava. Nunca deu problema”, garante, entre risos.
Troca de gibis
Era em frente ao cinema que a gurizada se reunia para trocar gibis. José Arthur Borgmann, 69 anos, era um dos meninos que, na década de 1960, se encontrava todo domingo, antes da matiné. “A gente trocava e vendia revistas do Pato Donald, Mickey e Zorro. O cinema era a maior diversão da cidade”, conta. Para Borgmann, que hoje mora no Rio de Janeiro, o melhor filme da época foi “Ao mestre, com carinho”, com o renomado Sidney Poitier, em 1966.
O medo escondido de O Exorcista e Zé do Caixão
A professora aposentada Diana Inês Sperling, 62 anos, também é uma das netas de Adalberto Richter. Suas lembranças mais especiais do cinema ainda são relativas à infância. Ela conta que, em todo 12 de outubro, Dia das Crianças, o avô fazia uma seleção de filmes da Disney, com os clássicos “Branca de Neve”, “Bambi” e “Alice no país das maravilhas”. Mas, como toda criança suscetível a molecagens, Diana revela que a curiosidade também era com os filmes de terror. “Antes da sessão noturna começar, eu e minha prima Márcia nos escondíamos embaixo da primeira fileira. Ficávamos ali, quietinhas, pro vô não ver. A gente ficava apavorada vendo os filmes do Zé do Caixão e com O Exorcista, então, nossa! Morria de medo, mas não podia nem gritar”, relata, entre risos.
Curiosamente, O Exorcista, clássico de 1973 e que atravessou gerações, também marcou uma história de amor. Gelson Antônio da Cruz, 68 anos, conta que seu casamento que durou 33 anos e resultou em três filhos, começou com o filme de terror. “Eu convidei para ir no cinema e por acaso era esse filme. Ela se assustou bastante e aproveitei para abraçá-la. Nosso namoro começou ali” recordou Gelson, rindo da situação inusitada.
Os campeões de bilheteria
O Cine Imperial tinha capacidade para 800 lugares – 650 embaixo e um mezanino com 150 cadeiras. Mas sempre havia dias em que o público se apertava entre escadas e corredores. “Chegava uma hora que o vô nos pedia para avisar o pessoal na fila que estava lotado, mas não iam embora. Ficavam de pé, mas não perdiam o filme”, conta Gilson da Cruz.
Lotado ou superlotado, fato é que o cinema não tinha sessão vazia. Segunda a sábado de noite e domingo em três horários: 13h30min (matiné), 18h e 20h30min. Os maiores sucessos eram os faroestes, que tiveram seu auge nas décadas de 1950 e 1960. À época, a representação do Velho Oeste era sucesso, ainda mais se tivesse nomes como John Wayne e Clint Eastwood no elenco. Mas além das produções norte-americanas, eram famosos os ‘faroeste espaguete’ já que os italianos também produziram muitos filmes do gênero. Um dos mais marcantes no Cine Imperial narrava as aventuras de Giuliano Gemma com “O dólar furado”, de 1965.
Além do estilo faroeste, outro sucesso garantido eram as produções nacionais, como os filmes do compositor gaúcho Teixeirinha e do inesquecível Mazzaropi. Assim como o Jeca Tatu em pessoa, Teixeirinha também se apresentou ao vivo no palco do cinema na década de 1960.
Palco
O cinema não foi projetado para ser apenas um local de filmes. Atrás da grande tela de 15×10, havia um palco que recebeu, além de famosos, artistas locais, como no Festival da Composição. Quem passou por ele foi Maria de Lourdes de Andrade, 72 anos. Em 1962, ela participava do grupo de teatro do Colégio Aparecida e era uma das várias crianças integrantes do Clube do Pato Donald, programa da RVA. “O cinema era uma verdadeira casa de cultura. Filmes, festivais, teatro e poesia. Era lindo e muito prestigiado”, lembra a aposentada.
Mas, como muitos, Maria de Lourdes também adorava as guloseimas do barzinho do cinema: pipoca, refrigerante ‘grapete’ e as balas Castanha e Mocinho. Além do sabor doce do refri e das balas, a aposentada não esquece dos ‘barulhos’ do cinema. “Nos filmes de terror, a gurizada largava as garrafinhas para rolar chão abaixo. Isso assustava ainda mais. Ou quando tinha uma cena de luta, ou uma cena de beijo, o pessoal ficava eufórico e batia os pés no chão.”
Entre suas preferências, Maria de Lourdes cita a série de filmes sobre a imperatriz Isabel da Áustria, mais conhecida como Sissi. “Era com a Romy Schneider, atriz lindíssima.”
Ingresso cortesia
- Há cerca de 60 anos, era comum crianças e adolescentes trabalharem por alguns trocados, o que lhes permitia alguns prazeres, como ir ao cinema. “Eu já trabalhava como entregador de leite e meu salário era uma entrada na matiné. Mas tinha a sessão das 18h e eu não tinha dinheiro pro ingresso. Aí carregava o cartaz dos filmes no domingo pela manhã até o Café Central”, relata Dinaldo José Morsch, 70 anos.
- Os cartazes ficavam expostos lá, um local bastante movimentado e onde, no segundo piso, ficava a RVA. Hoje é o atual Bade Esportes. Além de carregar os cartazes, Morsch tinha a tarefa de levantar os assentos do cinema depois dos filmes e varrer. “Éramos uma equipe de três a quatro guris. Foi muito bom, tudo era valorizado e ajudou na formação, com certeza.”
- No mesmo Café Central onde Morsch levava os cartazes, João Luiz da Silva, 75 anos, era garçom. Atencioso, ele cuidava para que ninguém riscasse as imagens e sempre as levava para dentro, quando estava para chuva. O dono do cinema, Adalberto Richter, observou a iniciativa do jovem e determinou: João poderia ir sempre de graça ver os filmes.
- Também era possível pagar uma carteirinha, que dava direito a assistir todos os filmes no mês. Quem guarda o documento até hoje é Gelson da Cruz (o do namoro vendo O Exorcista). Ele é filho de João Onécio da Cruz, sapateiro, que também foi projetista no cinema.
Há 40 anos, o fim
Adalberto Richter morreu em 1973 e a família ainda tocou o cinema até 1978, quando o espaço foi alugado para Walter Furtado, que na época mantinha o Cine Astro, em Santa Cruz.
Furtado, em 1982 (ano que o videocassete surgiu no Brasil), decidiu encerrar o negócio em Venâncio. Assim, sem novos interessados a seguir com o cinema na cidade, a família decidiu vender o prédio. Quem o comprou foi Arminio Grings (1940-2018), que manteve uma agropecuária no local entre os anos 80 até 1997.
Curiosamente, ele nunca mexeu na fachada do cinema e por isso o nome ‘Cine Imperial’ permaneceu sobre a porta de entrada. “O pai até esperou, talvez aparecesse alguém interessado em fazer um cinema ali, ou mesmo o poder público fazer algo com o espaço. Mas isso nunca aconteceu. Na época muita gente nos criticou, porque achou que a culpa de o cinema fechar era nossa. Mas a própria Prefeitura dizia que era um negócio inviável”, conta Roberto Grings, 48 anos, filho de Arminio.
Há alguns anos, a maior parte do prédio acabou vindo abaixo, devido a problemas na estrutura, agravados por uma infiltração. Hoje segue de pé a fachada e uma parede lateral. O espaço ainda pertence à família Grings e, conforme Roberto, a ideia futura é vender o imóvel.
Impressões da repórter
Embora saudosos, a maioria dos entrevistados entende que, talvez, ter um cinema hoje não teria o mesmo apelo e sucesso de outros tempos. Se com as fitas K7 e os DVDs o consumo já tinha mudado, imagine agora, com os serviços de streaming na internet, onde todos podem ter um cinema dentro de casa? Temos como exemplo o Oscar, que ocorre neste domingo à noite, e que vários filmes já foram disponibilizados. Ou seja, ‘esperar’ por um filme é algo que praticamente não existe mais.
Venâncio já teve cinema em Vila Mariante, na década de 1930, no auge do porto, e também no início dos anos 2000, próximo à Estação Rodoviária, no bairro Cruzeiro. Mas sem dúvida foi o Cine Imperial que mais marcou. Mais do que oferecer filmes aos venâncio-airenses, ele era um ‘evento’. Eu não vi isso acontecer, mas ouvindo meus pais, que o frequentaram, e pelas entrevistas, esse espaço marcou profundamente gerações. E mesmo para mim, que desde criança passa pela Júlio de Castilhos, essa história também faz parte da minha vida.
Não sei quanto tempo a fachada aguentará de pé, mas mesmo depois, qualquer referência de endereço próxima será feita sempre assim: “é ali, perto do antigo cinema”. E a gente sabe que, em Venâncio, coisas assim viram marcas e, portanto, não serão esquecidas.