Por Ana Carolina Becker e Rosana Wessling
Ao ouvir o ronco do motor, você pensa que algum carro qualquer está se aproximando. No entanto, pelo silêncio, não imagina que é uma Kombi. Aliás, não é uma simples Kombi. Ela faz parte da edição denominada ‘Last Edition’, fabricada em 2013, pela Volkswagen. No mundo há apenas 1,2 mil unidades e em Linha Saraiva, interior de Venâncio Aires, está uma delas, a de número 354.
Não bastasse a raridade, o veículo de Astor Elmo Selzler tem mais um motivo que o torna especial. Na plaquinha, logo acima do para-brisa, o veículo é identificado como táxi. Um serviço exclusivo para os moradores da área rural de Venâncio Aires.
Desde a década de 80, Selzler percorre localidades do interior fazendo o serviço de fretamento com sua Kombi de nove lugares. As viagens são agendadas por telefone ou direto na casa do motorista e a cobrança da atividade é feita no sistema de frete. O trabalho ficou ainda mais importante com a escassez de linhas de ônibus e a pandemia do novo coronavírus.
12 Kombis no currículo
Selzler aliou o amor pela direção ao serviço prestado às pessoas. Nos anos 80 ele era o chofer da comunidade onde reside desde que nasceu, há 75 anos. Na época, decidiu que era hora de investir no negócio, se legalizar e ‘adotar’ a Kombi como seu único modelo de veículo na vida. Tudo começou com uma ‘perua’ usada em 1976. “Comprei bem na época do Plano Cruzado. Demorou um monte para conseguir ter ela em mãos. Com a troca e desvalorização consegui comprar uma só”, recorda.
Como gostou do veículo fabricado até 2013 pela Volkswagen, ele apostou nesta compra por já estar acostumado com o modelo. Com isso, 12 Kombis fazem parte da história do ‘homem da Kombi táxi’. Dessas, dez foram compradas a zero-quilômetro. A paixão pela Kombi é partilhada com a esposa Asta Mohr Selzler, 73 anos. Natural de Centro Linha Brasil, ela recorda que viu uma Kombi pela primeira vez enquanto ainda era solteira e estava em uma festa. O veículo, na época, havia vindo de Dunas, Santa Catarina, para a quermesse. “Achei tão bonita, ela era clara, da cor bege. A Kombi passou e me encantei, mas nunca pensei que a gente teria uma”, complementa.
Entre as tantas lembranças, o casal lembra, com carinho, da primeira aquisição. “Comprei uma Kombi 1.200. Era para ser forte, mas nem nos morros ela subia”, brinca Selzler, ao lembrar dos fretes por diferentes localidades do interior.
Nos álbuns de fotos, as lembranças dos quilômetros já rodados com a Kombi
Engana-se quem pensa que o taxista mais famoso de Linha Saraiva faz apenas roteiros em Venâncio Aires e Santa Cruz do Sul. Como ele mora na divisa dos dois municípios, os fretes mais frequentes ocorrem para essas cidades. No entanto, são em álbuns de fotografias que estão as lembranças das inúmeras viagens feitas a trabalho ou lazer, com a Kombi. A última delas, em fevereiro, foi para as termas de Ilha Redonda, em Palmitos, Santa Catarina.
A viagem mais longa foi de 2.020 quilômetros para a cidade de Toledo e interior de Cascavel, no Paraná, em 2002. Mesmo com tantas opções tecnológicas, antes de sair para uma viagem, a opção do ‘homem da Kombi táxi’ é pelas consultas em mapas físicos, rascunhos de trajetos e contatos telefônicos para obter referências.
Entram na conta dos quilômetros rodados as viagens para fora do município, passeios, festas e, principalmente, o compromisso em trazer seus clientes para a área urbana de Venâncio Aires e Santa Cruz do Sul para consultas médicas, compras no supermercado e outras tarefas.
Na maioria das viagens, Asta não costuma acompanhar o marido. Afinal, é o serviço dele. “Às vezes, se as pessoas convidam para ir junto, eu vou. Tem muita gente boa que diz: ‘mãe’ tu vai junto”, conta, entre risos.
Uma Kombi extra
Nas horas vagas, é na roça que Selzler coleciona mais um lazer e também uma fonte de renda extra. Ele cultiva batatas-doces. Mas não são simples batatas, são batatas-doces abóboras, de cor alaranjada, sem agrotóxicos e cultivadas com muito carinho. Além disso, bananas e outras verduras e hortaliças fazem parte da renda da família.
Quando não vem ao centro da cidade para fazer os fretes dos seus clientes como taxista, uma outra Kombi, de cor branca, é utilizada para transportar os produtos aos supermercados, onde os revende.
Outros detalhes da Kombi
- Uma das Kombis, a ‘Last Edition’, tem detalhes que ficam para a história do veículo: bancos em couro, cortinas personalizadas e uma cor azul que chama atenção por onde passa.
- A Kombi azul é a ‘queridinha’ de Astor. No chão e sobre os bancos foram colocados alguns panos para cuidar ainda mais do estofado do veículo.
- No painel, logo ao lado da direção, está registrada que esta edição do veículo tem apenas 1,2 mil unidades e que esta é a de número 354.
- O taxista também carrega consigo um ‘paninho’ para garantir a limpeza do para-brisa.
- Astor ressalta o quanto busca auxiliar os seus clientes na hora das compras. “Na casa de uma cliente minha a Kombi não sobe, mas eu carrego as compras para ela até lá.”
- O amor por Kombis está guardado, pela família, em cômodos da casa. Durante a entrevista, Asta fez questão de mostrar o rádio em formato de Kombi da família.
As linhas de ônibus ‘perdidas’ do interior
Há cinco anos, na localidade de Linha Saraiva, a linha de ônibus que vinha para Venâncio Aires foi extinta e, com isso, o serviço do ‘homem da Kombi táxi’ se tornou ainda mais importante. Astor Elmo Selzler lembra que, com o passar dos anos, o número de clientes diminui pela facilidade de adquirir veículos próprios. Essa foi uma das causas para que diversas localidades do interior ‘perdessem’ seus horários de ônibus.
De acordo com a empresa Viasul – Auto Viação Venâncio Aires, que realiza roteiros de ônibus pelo interior do município, o número de passageiros caiu muito nos últimos anos e, em decorrência disso, algumas linhas acabaram sendo extintas. Conforme o sócio-proprietário Sérgio Luís Büchner, os roteiros com maior quantidade de horários são para Vila Mariante, Vila Palanque, Linha Herval, Vila Arlindo e algumas regiões serranas da Capital do Chimarrão.
“Era comum nos anos de administração de Glauco Scherer, Celso Artus e Almedo Dettenborn recebermos abaixo-assinado para pedir linha de ônibus, agora faz mais de dez anos que isso já não acontece mais”, pontua. Büchner confirma que o número de passageiros em linhas municipais tem caído, por isso, a empresa está focada no fretamento e em linhas interestaduais.
O motorista e proprietário da empresa Transportes Coletivos Reckziegel Ltda, Alceu Frey, comenta que atualmente, devido à pandemia, a linha Cecília-Venâncio Aires ocorre apenas nas segundas e sextas-feiras. A empresa, que existe desde 1963, também percebe uma constante diminuição de passageiros. “Hoje a linha de ônibus só existe porque tem alunos. O escolar nos movimenta. Se não, realmente não vale a pena colocar um ônibus na estrada para tão poucos passageiros”, observa.
Frey também ressalta que várias comunidades onde o coletivo percorre estão praticamente extintas. “Antigamente a gente lotava o ônibus. Hoje tem localidades que nem alunos têm mais. E com o passar dos anos, a falta de novas gerações faz com que a gente perceba que várias localidades do interior estão desaparecendo gradativamente.” As linhas da empresa passam diariamente em cinco localidades.