Chovia muito naquele junho de 1957. Dia 13, especialmente, parecia que o mundo viria abaixo em Centro Linha Brasil. Arcildo até cogitou montar o ‘zaino’ e seguir para Vila Deodoro ainda na quinta-feira. Precisava registrar sua menina, que nasceu naquela manhã, em casa, através das mãos da Bertha Bohn, parteira experiente da região. Mas não. Entendeu que não precisava de pressa.
Quando os dias chuvosos pararam, já era 25 de junho. E aí foi. Algumas horas sobre o lombo do cavalo, atalhou pelo Teufelsloch (o Buraco do Diabo, em Linha Isabel), depois Silva Tavares, passando sob os galhos da figueira (que ainda não era chamada de Centenária), até Deodoro.
Foi no cartório daquela localidade que, em 25 julho de 1953, Arcildo Frese, então com 18 anos, casou com Ilsy Elzira Mohr, de 16. Quase quatro anos depois, em frente ao mesmo oficial distrital (Sebastião Jubal Junqueira), Arcildo disse o nome escolhido para sua primogênita: Enia Gessy.
“O ‘português’ primeiro, senhor”, sugeriu Jubal. A observação dele foi porque se considerava Enia um nome estrangeiro. Da mesma forma, o Gessy perderia o ‘Y’. Para manter a sílaba tônica, disse que escreveria ‘I’ com acento agudo. Assim, foi registrada Gessí Enia Frese.
A história dos Frese é apenas uma das que passaram pelo Ofício Distrital de Vila Deodoro. Este, que em 12 julho de 2019 completou 90 anos, ainda mantém todos os registros na atual sede, em Linha Arroio Grande. Muitos são páginas já amareladas, mas relatos fiéis de parte da vida de milhares de famílias venâncio-airenses.
A certidão de nascimento de Hilda, a ‘número 1’ do cartório
No livro de registros do cartório de Vila Deodoro, a primeira página preenchida é a que relatou o nascimento de Hilda Dattein. Nascida em 29 de junho de 1929, ela foi registrada em 22 de julho onde estava situado o primeiro cartório. O local não existe mais, mas ficava próximo à estrada da ‘grande figueira’. Aquela menina foi o ofício número 1. Noventa anos depois, a hoje bisavó ainda guarda a certidão emitida por Sebastião Jubal Junqueira, o primeiro titular.
Hilda voltaria ao cartório para casar, em 7 de janeiro de 1950, já em outro prédio, construído próximo à Casa Comercial Schulz. Também na presença de Jubal, o juiz de paz que oficializou o casamento foi Adolfo Maria dos Santos. A partir dali, com 20 anos, ela passou a assinar como Hilda Becker, adotando o sobrenome do marido Bruno. Os quatro filhos do casal, Sônia, Laura, Donato e Renato (já falecido) também têm registros lá, seja de nascimento ou casamento.
TRABALHO
- A família de Hilda, não apenas em registros nos livros, participou dos trabalhos do cartório. Como o pai dela, Edwino Dattein, que entre 1952 e 1977 foi nomeado juiz de paz. “O pai fez muitos casamentos”, lembra.
- Além do pai, o cunhado de Hilda, Alcido Becker, 77 anos, também foi juiz de paz (1977 a 2012). Entre 1974 e 1978, quem trabalhou lá foi a filha, a professora Laura Caríssimi. Ela conta que chegou a fazer o concurso para escrivã, mas não passou por causa da datilografia.
- Naqueles quatro anos, Laura atuou, então, como auxiliar e presenciou histórias inusitadas, como na vez que um jovem agricultor da região serrana de Venâncio apareceu para registrar o nascimento da filha. Antes de fazê-lo, o homem contou a história do parto, relatando que, durante a madrugada, a mulher ainda tirou o leite de todas as vacas, mesmo já sentindo ‘as dores’.
- Ouvintes atentos, os funcionários perguntaram ao pai novato: qual nome terá a menina? E a resposta foi uma surpresa: “Ah! O nome vocês resolvem!” Laura conta que não era possível obrigar a nenhuma decisão, mas foi fornecida uma lista de nomes ao pai ‘despreocupado’.
Lembranças do Jubal
Quem também é ‘registro’ no cartório é o casal Orlando e Thuna Schulz, que comemorou Bodas de Diamante neste mês. Eles casaram em 1º de agosto de 1959, tanto no civil quanto no religioso.
Orlando lembra com lamento de Sebastião Jubal Junqueira, que faleceu em março de 1959, com apenas 55 anos. O primeiro titular do cartório da localidade teve um câncer na garganta. “Nos últimos dias ele já não conseguia mais falar. Foi uma morte muito triste e lamentada por todos”, relata Orlando, hoje com 85 anos.
Ele conta ainda que o oficial distrital era uma espécie de ‘sabe tudo’. Muito culto, todos os dias ia até a Casa Comercial Schulz para buscar a edição do Diário de Notícias, jornal de Porto Alegre. “Esse Jubal era ‘fora de série’. O que se queria saber, se perguntava pra ele. Foi o Jubal quem me ensinou a ler e a escrever em alemão.”
Atuante na comunidade, não apenas fundou o Grêmio Esportivo Deodoro (1952), mas fez o molde dos primeiros calções dos jogadores. “Não sei o que ele fez, mas a costura tinha uma folga e não rasgava”, lembra Orlando, orgulhoso por ter convivido com “uma figura importante ao município.”
Cartório atende em Linha Arroio Grande há mais de 20 anos
O Ofício Distrital de Vila Deodoro funcionou nesta localidade até 1997. No próximo setembro, serão 22 anos de mudança para Linha Arroio Grande, à margem da ERS-422, atual endereço.
Segundo Marinês Ehlert Becker, notária-registradora substituta e funcionária há 23 anos, foi feita uma pesquisa pela Corregedoria Geral de Justiça do Rio Grande do Sul. “O cartório precisa ser útil às comunidades e estava para fechar por falta de movimento. E, no Arroio Grande, desembocam todos os acessos de localidades abrangidas”, explica.
Além do endereço, houve mudança na nomenclatura, também na década de 1990. Por isso, é chamado de Serviços Notariais e de Registros Vila Deodoro. A primeira localidade, assim, permaneceu no nome do cartório.
No local, estão guardados todos os documentos, inclusive os primeiros livros de registros, de 1929. São serviços de tabelionato (como autenticações, reconhecimento de firmas, atas notariais, escrituras e inventários) e de registro civil (nascimentos, casamentos e óbitos).
Em tempos de computador, nos últimos anos, além do papel, tudo é digitalizado, mas Marinês diz que ainda não há uma exigência que determine o arquivamento na forma digital dos mais antigos. O número total de documentos emitidos em 2018 foi de 4.290.
EQUIPE
Desde 1996, o titular do cartório de Vila Deodoro é Luiz Carlos Mirandolli. Além dele, a equipe é formada por Liane Heck Mirandolli (1ª notária-registradora substituta), Marinês Ehlert Becker (notária-registradora substituta), Simone Graciele Guterres de Carvalho (escrevente autorizada) e Luciana Campos Fanck Costa e Ângela Maria Trindade Ilha (atendentes).
HISTÓRIA
- Enquanto Hilda Becker foi o primeiro nascimento registrado, os livros também trazem as seguintes informações: Antonio Fernando Weber e Idalina Richter foram os primeiros a casar, em 12 de agosto de 1929. Já o primeiro óbito foi registrado em 2 de agosto de 1929. Era Hildemar Kreibich, um bebê de um ano e nove meses.
- Até a última quarta-feira, 7, o cartório registrou 12.141 nascimentos, 3.251 casamentos e 2.920 óbitos. A numeração foi contínua até 1976, quando uma determinação da Lei de Registros Públicos exigiu que os registros reiniciassem.
- Em 90 anos, atuaram como oficiais distritais titulares: Sebastião Jubal Junqueira, Maria Beatriz Menna Barreto Junqueira, José Schneider (designação do Fórum), Lauro Arno Gehres, Oscar Nicolau Schneider, Dilson da Silva Braga (designação), Ingrid Marlene Vieira, Clonir Lopes Lehmen (designação) e Luiz Carlos Mirandolli.
JURISDIÇÃO
A abrangência, conforme publicação de 1996, descreve o seguinte: começa em Rio Pequeno, na divisa com Boqueirão do Leão e desce na divisa com Sério, até chegar nos limites de Venâncio Aires. Compreende as localidades de Alto Paredão, Três Barras, da Serra, Andréas, Santana, Sexto Regimento, Lucena, Duvidosa, Arroio Grande, Santa Emília, Olavo Bilac, Salto, Lenz, Harmonia da Costa, Brasil, Arroio Grande, Marechal Floriano, Antão, Centro Linha Brasil, Esperança, Saraiva, Leonor, Julieta, Cachoeira, América, Marmeleiro, Paredão, sempre com o arroio Castelhano, na divisa com Santa Cruz do Sul, “tudo de acordo com o mapa do município de Venâncio Aires.”
Sobre ver e sentir
O início da matéria narra parte da história familiar desta repórter, que é filha da Gessí e neta do Arcildo. História que sempre ouvi durante minha infância e nunca esqueci. Durante as pesquisas para a reportagem, vi os registros de casamento dos meus avós maternos e de nascimento da minha mãe, todos eternizados na letra cursiva de Sebastião Jubal Junqueira (o mesmo que há cerca de 40 anos dá nome à escola de ensino médio de Deodoro).
Não imaginava ver o que vi e, ao escrever esta matéria, senti um misto de alegria e saudade. Alegria pela oportunidade de conversar com pessoas que mantêm a história ou que são a ‘história viva’. E quanto à saudade, foi porque o carinho da vó Hilda, ao me receber, reforçou a lembrança dos meus. O Arcildo e a Ilsy, que já se foram, mas que seguem comigo na memória e no coração.