Histórias de superação que a enchente do Taquari revelou

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“Vim aqui para salvar vidas, não para morrer”. O agente penitenciário aposentado Dirceu Becker, de 63 anos – que atualmente exerce a função de chefe do Departamento de Máquinas, Veículos e Implementos da Secretaria de Infraestrutura e Serviços Públicos (Sisp) -, não faz ideia de quantas vezes repetiu esta frase entre as 18h30min e 21h30min de quarta-feira, dia 6 de setembro, período em que precisou ficar agarrado a galhos de uma árvore no rio Taquari. Àquela altura, a água havia engolido a localidade de Vila Mariante, no interior de Venâncio Aires, e ele esperava por socorro, após o barco que pilotava e onde estavam mais duas pessoas, ter virado. Pescador experiente, era um dos tantos voluntários que se juntaram à Defesa Civil e ao Corpo de Bombeiros para trabalhar nos resgates de pessoas ilhadas. Antes de se tornar vítima da fúria da água, transportou pelo menos 20 moradores até locais seguros.

Na manhã de quarta-feira, assim que soube que o rio Taquari havia se aproximado da marca dos 16 metros – situação semelhante à registrada em 1941, na maior enchente da história de Vila Mariante -, e que as embarcações disponíveis não eram suficientes para resgatar as dezenas de ilhados, não pensou duas vezes. Pegou barco e motor, se equipou com jaqueta impermeável e colete salva-vidas e foi ajudar. A sua chegada ao local atingido pela água foi festejada por pessoas que o conheciam e sabiam de suas habilidades náuticas. Durante o dia, resgatou crianças, jovens e idosos e, quando já se preparava para encerrar as atividades, veio mais um desafio. Salvar um homem que estava com água no peito. “Se a gente não tivesse chegado naquela hora, em pouco tempo ele não teria mais o que fazer. A água ia para o pescoço e, depois, cobriria ele. Seria fatal, com certeza”, comentou, ao lembrar da cena que presenciou.

Com mais uma missão cumprida, era o momento de retornar à terra firme para descansar, porque a intenção era seguir colaborando no dia seguinte, ao amanhecer. Só que a viagem não se completou. “O motor começou a falhar e apagou. Fiquei puxando a cordinha pra fazer ele pegar de novo, mas não teve jeito”, recordou. À deriva, a embarcação foi atingida, provavelmente por um poste que era levado pela correnteza, e virou. Becker e os outros dois homens que o acompanhavam conseguiram ficar agarrados ao barco por quase 50 metros, até que ele afundou por completo. “Falei pra eles que a correnteza nos levaria a algum lugar, mas estava ficando difícil pra mim. Cheguei a baixar duas vezes. Uma, quando um cachorro que queria se salvar estava subindo nas minhas costas e, outra, quando bati em um poste. Achei que ia morrer. Pedi aos rapazes que, se não me salvasse, dissessem aos meus que eu os amava”, declarou.

A água subia cada vez mais e, depois de algum tempo, os três homens viram uma “mancha escura”. Ao se aproximarem, notaram que era uma árvore. “Nadamos naquela direção. Eu quase passei da árvore. A sorte foi que o Kiko, um dos amigos, me segurou pelo braço. A partir daquele momento, fomos nos segurando nos galhos e subindo”, compartilhou. Assim que conseguiram respirar mais aliviados, olharam ao redor e notaram que havia uma casa perto de onde estavam. Só que Becker tem problemas cardíacos e, ao contrário dos companheiros, não se sentia seguro para nadar cerca de 80 metros até a residência. “Aí eles disseram para eu ficar engaiolado e começar a gritar por socorro. Tinha formigas na árvore e começaram a me pegar. Eu estava molhado, gelado, fiquei com medo da hipotermia”, contou ele.

CONTATO COM O FILHO
Em determinado momento, Becker lembrou do telefone celular. A jaqueta impermeável tem lugar específico para o aparelho e ele estava funcionando normalmente. Imediatamente, ligou para o filho Rodolfo, de 30 anos. Explicou a situação e pediu que ele mobilizasse colegas de Prefeitura, Defesa Civil, Corpo de Bombeiros e o grupo ‘Caçadores, Pescadores e Outros Mentirosos’, do qual fazem parte vários amigos comuns de pai e filho. “Sabia que o Rodolfo ia se virar. E também queria que a minha família soubesse que, apesar da situação complicada, eu estava vivo. Não falei muito, porque queria poupar a bateria do celular, pra quando precisasse na emergência. Tocava o telefone e eu nem atendia. Tinha que me aquecer, não podia ter hipotermia. Daí eu ia cansar e cair. Ou ia me afrouxar e morrer em cima da árvore. Tinha que manter as extremidades quentes. Esfregava as mãos, batia os pés e dava umas puladas nos galhos. Pra bater o coração e o velho aguentar. Mas sempre pensando que ia lutar pra sobreviver”, disse.

Sorriso e acolhimento emocional Dirceu Becker

Enquanto o filho Rodolfo buscava alternativas para resgatar o pai, ele gritava por socorro. E quando parecia que as forças estavam se esgotando, viu um sinal de luz à distância. “Comecei a gritar mais alto. Socorro, socorro, me ajuda. Aí vi um sinal de luz. Acendia e apagava, daí vi que alguém tinha escutado”, recordou, com a voz embargada. Era um barco, no qual estavam quatro pessoas.
“Calma que temos um lugar pra ti e vamos te levar. Era uma embarcação artesanal, de madeira, com remos de madeira também. Eu não entraria no rio com um barco daqueles. Eles tiveram a coragem que eu não teria e foram os meus salvadores”, declarou Becker, que pegou uma carona da árvore até a casa que avistava de longe. “O apelido de um dos camaradas que me salvaram era Sorriso. Isso jamais vou esquecer”, comentou.
Na casa, Becker conheceu o seu Bininho, proprietário do imóvel. Ele e cerca de 30 pessoas estavam abrigadas no local. Após ganhar roupas secas, café e meias, ligou para o filho. “Contei que estava em segurança, que tinha sido resgatado, para que se acalmassem e não fizessem loucura para ir me buscar”, revelou o aposentado. “Ficamos mais um tempo no trevo de Mariante pensando no que fazer. Mas quando nos demos conta, já eram 2h da madrugada e todo mundo encerrou as buscas e os resgates. Eu estava inquieto, mas a partir da informação de que o pai estava bem, deixamos para buscá-lo no dia seguinte”, explicou Rodolfo.
Na quinta-feira, 7, era quase meio-dia quando Dodô, como chama carinhosamente o filho, chegou à casa – que já abrigava quase 50 pessoas, pois cerca de 20 chegaram depois de Becker – para levá-lo à terra firme. Estava acompanhado de outros três amigos: Vanderlei, César e Beto. Na chegada e na despedida, a emoção tomou conta de todos.
“Queria agradecer e fazer uma grande homenagem a estas pessoas que me salvaram e me acolheram. Sorriso, Rudimar, Dionatan e Guinho são os meus heróis, os meus salvadores. Eles choravam comigo. Ficamos entre crianças, jovens, idosos, famílias inteiras, até uma mulher cega. Tudo apertadinho, um do lado do outro. A simplicidade daquela gente é incrível. Ganhei café, bolachinha e chimarrão. Até cachaça me ofereceram pra esquentar”, contou Becker.
Apesar do susto, ele garante que não vai deixar o voluntariado de lado. “Vou ser voluntário a vida inteira. Sou um cara duro na queda, mas senti uma emoção muito grande pela forma como aquelas pessoas me acolheram e me trataram. Agora, tenho três datas de nascimento: 23 de setembro, quando eu nasci, 27 de fevereiro de 2007, quando eu infartei, morri e voltei, e agora, quando fui salvo”, concluiu.

“Fiquei longe de ti, mas ajudei muita gente”

Quem viu a assessora administrativa da Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Social, Camilla Souza Capelão, de 31 anos, correndo de um lado para outro, desde segunda-feira, 4, à noite, para auxiliar as pessoas atingidas pela enchente do rio Taquari, nem imagina todas as dificuldades que ela precisou superar na vida. Ela estava em casa, ouvindo a transmissão da Câmara de Vereadores, pela Rádio Terra FM, quando soube que as coisas estavam ficando complicadas em Vila Mariante. “Ouvi o César (Garcia, vereador do PDT) falando que a água estava subindo e liguei para o prefeito Jarbas da Rosa, que me relatou a situação. Pedi ajuda da Claidir (Kerkhoff Trindade, vereadora do União Brasil), que já tinha experiência com enchentes, e nos deslocamos para o segundo distrito”, recordou ela.
Inicialmente, as duas foram à Capatazia de Vila Mariante, conversaram com outros servidores que já estavam de prontidão e, depois, ajudaram as primeiras famílias a deixarem a localidade em direção ao ginásio de esportes de Linha Mangueirão, onde a Prefeitura montou uma estrutura para receber os desabrigados. Ficou a noite toda no ginásio e emendou trabalhando no dia seguinte, quando aumentou significativamente o número de famílias no ginásio. Camilla foi fundamental no atendimento aos cidadãos e, o que chamou mais a atenção de quem a conhece, foi uma imagem na qual aparece agarrada em um caminhão que levava água e comida para distribuição às famílias quando a água do rio Taquari baixou.
“É inacreditável a força e a coragem desta guria”, comentou um colega de trabalho. Ele estava espantado porque sabe que, recentemente, Camilla precisou superar um câncer na mama. No dia 30 de dezembro de 2021, recebeu o diagnóstico de um nódulo provavelmente maligno, informação confirmada dias depois. Foram 16 sessões de quimioterapia, pois havia metástases pelo corpo, e uma mastectomia (cirurgia para a retirada da mama), tudo em 2022. Depois, foram mais 15 sessões de radioterapia. Há um mês e meio, passou por mais uma cirurgia (histerectomia). “Hoje, sigo em acompanhamento médico, mas estou superbem”, garantiu ela, que passou por tudo isso depois da aflição no nascimento do filho, que nasceu prematuro, de 35 semanas. “Passou. O João Vicente faz 4 anos agora, dia 28”, ressaltou.
Nos dias em que precisou dedicar aos “irmãos venâncio-airenses”, Camilla pouco viu o filho. Quando saía de casa, antes de amanhecer, ele ainda estava dormindo. O marido Alex Quintana, comerciante de 41 anos, era quem o levava para a escola, onde passava o dia. E, no feriado de 7 de setembro, Alex e João ficaram na casa dos pais dela. “Eu chegava em casa e sussurrava no ouvido dele: fiquei longe de ti, mas ajudei muita gente”, emocionou-se.

Camila com o marido Alex e o filho João Vicente

INSPIRAÇÃO
A mãe do João Vicente relatou que cada vez mais descobre o seu potencial para ajudar as pessoas. “Muitas vezes, me chamam para conversar com alguém que vai passar pela situação que passei. Na Prefeitura, tivemos uma colega que também enfrentou o câncer, e escutar dela que se espelhava em mim foi muito gratificante”, afirmou. Depois de tudo que aconteceu nestes últimos dias, o que mais deixa Camilla feliz “é chegar na casa de alguém, com uma água que seja, poder dizer que estamos juntos e ver a reação de alívio de quem precisa de carinho, amor e doação do povo de Venâncio Aires”.

Mais tarefas

Além do trabalho voluntário durante a semana, Camilla também auxiliou a secretária de Planejamento e Urbanismo, Deizimara Souza, a elaborar o relatório de prejuízos ocorridos em Venâncio Aires. O documento será enviado pela Defesa Civil ao Governo Federal, para embasar a homologação do decreto de emergência da Capital do Chimarrão.

Nesta sexta-feira, 8, pela manhã, ela voltou à localidade de Vila Mariante acompanhada de assistentes sociais e psicólogas da secretaria, além de toda a equipe técnica e voluntários. “Estamos fazendo o levantamento da situação das famílias, pois algumas não têm nem pra onde voltar. Vamos ver as casas que precisam de alguma melhoria também. Ver se é possível fazer alguma obra. E acolher esta gente”, declarou.



Carlos Dickow

Carlos Dickow

Jornalista, atua na redação integrada da Folha do Mate e Terra FM.

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