Do facão à cuia: histórias de vida marcadas pela tradição da erva-mate e do chimarrão

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Chegar em Palanque é chegar no berço da erva-mate. A paisagem bucólica é quebrada apenas por uma ou outra pessoa andando de bicicleta. A rua principal asfaltada dá ares de cidade ao campo. A via, cercada de pés de erva, remete a um cenário onde o tempo parece não passar, exceto pelo toque do vento. A brisa movimenta as folhas da tradição e parece pedir passagem para a chuva, que insiste em não cair, deixando um rastro de pó vermelho. Pó que penetra nos olhos e seca a boca, causando um clamor por algumas gotas miúdas. Poeira vermelha que muda a cena, dando um toque rubro à  imagem.

O local, embora seja considerado um dos centros de produção da erva-mate em Venâncio Aires, não é o único ponto de plantação. Alguns quilômetros dali, em Linha Travessa, os ervais cortam as barreiras do horizonte e as estradas miúdas levam até Hélio José Godoy, que dos 59 anos de vida se dedica à erva há 36.

Hélio trabalha solitário na beira de uma esteira de sapeco. O processo sucede ao corte e pode ocorrer de forma manual ou mecânica. Ele impede a fermentação das folhas e evita que o mate perca o aroma natural.

O sapeco manual realiza-se na área do erval e é feito no mesmo dia do corte. Consiste na rápida passagem dos ramos da erva-mate sobre as chamas de uma fogueira. Após ocorre o quebramento da erva e a separação dos ramos dos galhos grossos, que são empilhados em forma de feixe.

O processo mecânico envolve um grande cilindro (de ferro ou de arame), em posição inclinada, onde a erva desgalhada entra pela parte superior e graças ao movimento giratório sai sapecada na parte inferior, devido ao ar quente que circula no interior, provocado pelas chamas acesas embaixo.

O trabalhador não é o único da família que teve o destino marcado pelas folhas verdes. O irmão Jânio José Godoy também tira do produto o próprio sustento. “é só seguir pela estrada e dobrar depois da escola”, faz referência Hélio do caminho para a residência de Jânio.

O caminho empoeirado desemboca em uma casa lilás. A filha diz que o pai está na roça e corre para pegar o celular e chamá-lo. Ele chega sorridente e pronto para um aperto de mão. Logo convida para sentar na sombra de um galpão, onde conta que o sobrinho mora.

Jânio lembra que comprou o primeiro pedaço de terra quando casou, em 1984. Atualmente, possui cerca de 8 mil pés de erva-mate distribuídos em nove hectares. Além do produto, já plantou tabaco, no entanto, faz dois anos que evita. “é pra se poupar um pouco, pelo veneno. A idade tá pegando”, afirma o homem de 58 anos. No campo, ele conta com a ajuda de um vizinho. A esposa é safrista em uma fumageira e os filhos, uma menina de 21 anos e um menino de 24, trabalham fora. Quando podem, todos ajudam.

O produtor explica que a época de plantar é de maio a agosto. “Colher não tem mais tempo, eles compram direto”, comenta. Ele destaca que uma arroba de erva equivale a 15 quilos e é vendida por R$ 4,50. Ao comparar com o fumo, Jânio diz que não é tão lucrativo, mas a vantagem é que não envolve tanto agrotóxico. “Tudo que eu consegui foi no fumo, mas eu me aposentei na erva porque ela segura na seca e vai menos veneno”, relata.

Sobre o esforço, evidenciado pelas mãos e pelos pés calejados, ele afirma: “O bom é no inverno, que é mais fresco”. Ainda acrescenta: “No verão o calor judia muito da gente.”

Apesar de usar a palavra aposentadoria, Jânio salienta: “Vou trabalhar até quando Deus quiser.” Enfático, ele ressalta: “Eu me criei na roça, quero ver se me entrego na roça também.”

Para a ervateira

é só colocar os pés dentro de uma ervateira para se sentir embriagado pelo aroma da erva-mate. O cheiro recepciona quem entra, como se quisesse marcar o território do chimarrão.

 A matéria-prima da indústria chega em sacos e vai direto para o sapeco, quando as folhas ainda não passaram pelo processo. A erva crocante segue então para o picador, onde é triturada, e depois para uma fornalha. Tudo ocorre de forma automática, grandes tubos cinzas conduzem o material de máquina em máquina.

Um dos caminhos cilíndricos leva o produto para o momento do soque. O funcionário da ervateira explica que menos rotação resulta na erva tradicional e mais rotação na moída grossa. Na sequência, o produto é embalado e separado para a distribuição.

Capital Nacional do Chimarrão

Apesar de não ser o principal produto da economia venâncio-airense, a erva-mate é um símbolo cultural, presente no título de Capital Nacional do Chimarrão e já no pórtico do município. No local, duas cuias esboçam a hospitalidade de um povo, que recebe quem chega com um bom mate amargo em mãos.

A cuia parece se multiplicar pela cidade. Aparece nas placas com o nome das ruas, em um monumento na praça central e estampada em diversos estabelecimentos comerciais.

Mas a tradição que nasce nos ervais e vai para a cuia não se limita apenas ao município. Ela é levada de Venâncio para todos os cantos do Rio Grande do Sul, do Brasil e até de outros países. Um dos projetos que espande a fronteira do hábito é o Instituto Escola do Chimarrão, que teve início em 2004 e desde então já cruzou todo tipo de estrada com o ônibus personalizado doado pela Polícia Federal.

Pedro Schwengber, gaúcho do tipo que está sempre pilchado, não esconde a paixão pelo chimarrão e pela história da erva-mate. Tanto ama o símbolo que resolveu levá-lo de mão em mão com o trabalho itinerante da escola, da qual é diretor-executivo. Segundo ele, este ano o grupo vai atingir um número representativo: um milhão de pessoas atendidas diretamente pela entidade. A expectativa é cumprir a meta na Expointer, evento que ocorre em Esteio.

Pedrão, como é conhecido, empenha o seu trabalho como se fosse uma verdadeira missão. Ele destaca: “Além de uma cultura, eu levo para as pessoas um produto que ajuda muito a saúde, ajuda na educação, é um meio de turismo, é economia. Então eu me sinto muito bem fazendo isso que eu faço, que é levar essa maravilha que é o chimarrão para as pessoas”.

Embasado com números, ele também gosta de contar curiosidades sobre a produção e o consumo da erva-mate. Salienta que o maior consumidor é o Uruguai, seguido da Argentina, do Chile, da Síria e do Brasil. Além disso, o grande estado produtor brasileiro, diferente do que se pode pensar, é o Paraná, e não o Rio Grande do Sul.

Pedro chama o chimarrão de dádiva, em decorrência das propriedades da erva-mate. Certa vez, durante a 12ª Festa Nacional do Chimarrão (Fenachim), realizada em Venâncio Aires, ele confidenciou, como quem faz uma profecia: “Um dia o mundo inteiro ainda vai tomar chimarrão”.

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