Especialistas advertem que crianças precisam ter a infância preservada (Foto: Pexels/Divulgação)
Especialistas advertem que crianças precisam ter a infância preservada (Foto: Pexels/Divulgação)

Recentemente, o influenciador Felipe Bressanim Pereira, mais conhecido como Felca, publicou um vídeo no YouTube que jogou luz sobre um problema silencioso e mexeu no submundo – a chamada deep web – da internet. O material de quase 50 minutos denuncia a adultização de crianças e expõe uma série de questões, desde pais que utilizam dos filhos para gerar engajamento em redes sociais até o algoritmo que ajuda a disseminar conteúdo criminoso.

No vídeo, Felca cita famosos que expõem o dia a dia dos filhos, mesmo que em situações desconfortáveis, para gerar visualizações, além de responsáveis que incentivam os menores a produzirem conteúdos sensuais, muitas vezes de caráter sexual, para alimentar desejos de pedófilos. Em alguns casos extremos, estes pais criam páginas para vender fotos dos filhos com pouca roupa ou, até mesmo, nus.

A repercussão, que ganhou espaço no noticiário nacional, chegou rapidamente a Brasília. O presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos) anunciou, recentemente, que deverá pautar um projeto de lei para garantir a segurança das crianças nas redes sociais. Será criado, para isso, um grupo de trabalho no Congresso Nacional para elaborar uma medida completa e efetiva. “Há pautas importantes, que exigem debate, negociação, tempo. Mas essa pauta não pode esperar, porque uma infância perdida não se recupera. Uma criança ferida carrega essa marca para sempre”, afirmou.

Adultização de crianças é problema antigo

Pediatra Fernanda Almeida defende maior participação dos pais no controle ao que é consumido no ambiente digital (Foto: Divulgação)

A pediatra Fernanda Almeida, em participação no programa jornalístico Folha 105 – 1ª Edição, da rádio Terra FM, na quinta-feira, 14, comentou que a adultização das crianças é um problema antigo: “A gente já vê esse problema e é uma alerta da comunidade médica há muitos anos. A gente já observava meninas muito maquiadas, usando saltos, mas a internet intensificou isso e está cada vez mais frequente.”

A psicóloga Joana Puglia, também no programa, lembrou que, embora hoje sejam assuntos interligados, esse processo não depende exclusivamente da internet. “A adultização é quando se expõe a criança a exigências, comportamentos, padrões que ela não tem como dar conta. Para sermos adultos, nós tivemos um percurso de vida. Nós cometemos alguns enganos, nós observamos os enganos dos outros e aprendemos. A criança não. A criança não entende nada. Ela está observando o mundo e tem como referência o que os pais, os tios, o irmão mais velho, os professores estão fazendo”, alerta.

As redes sociais, neste contexto, agem como um agravante expressivo. A psicóloga explica que, quando um menor é exposto a conteúdos que não são pertinentes a essa fase da vida, deixa de agir como criança, o que pode ter consequências graves. “É a dança, a música, o filme, o vídeo, a conversa. Enquanto ela está fazendo isso, está deixando de fazer coisas de criança que vão estruturá-la, como correr, subir, rolar, se arrastar no chão, se sujar. Essas atividades são fundamentais para o desenvolvimento psicomotor amplo”, citou.

O desenvolvimento motor é quem vai ditar, no futuro, muitas das suas capacidades, mesmo na vida adulta. “Ela não tem como escrever se não aprendeu a dominar as pernas dela para pular, subir em uma árvore. Como uma criança que não brinca de se esconder vai descobrir as letras de um texto? Como uma criança vai ter habilidade motora, se nunca modelou massinha? Em vez disso, estava se maquiando, vendo vídeo”, completou.

Padrão de beleza

Cruel especialmente para as meninas, o padrão de beleza imposto e disseminado nas redes sociais impacta, inclusive, os primeiros anos de vida – e é um fator no processo de adultização. Um estudo realizado em 2019 pela organização australiana Pretty Foundation revelou que 38% das meninas de até 4 anos estão insatisfeitas com seu corpo. Além disso, 34% das que têm 5 anos afirmaram que pretendem fazer dieta. “Quando a gente vê uma criança pequena, de 7 ou 8 anos de idade, com estojo de maquiagem, que não sai de casa sem passar uma base, um corretivo, um brilho no olho, tem alguma coisa muito errada ali. Você não enxerga mais a criança”, lamentou Joana.

Os efeitos, porém, vão além dos emocionais, como uma forma de aceitação social. Como advertiu a pediatra, elementos químicos, por mais sutis que sejam, podem gerar reações alérgicas e problemas na pele. O mesmo vale para calçados com salto: “Crianças não devem usar salto alto, porque isso pode prejudicar desenvolvimento motor, levar a problemas posturais e na coluna.”

“A criança está introjetando que, para ela se divertir em uma festa, para as pessoas gostarem dela, aprovarem, ela tem que mascarar o rosto, porque se ela não estiver mascarada, não vai ser aceita, não vão achar ela bonita, não vão gostar dela. E isso é catastrófico na formação de uma identidade”, concluiu a psicóloga.

Psicóloga Joana Puglia participou do programa ao vivo (Foto: Juan Grings)

“Quando não se enxerga uma criança na criança é porque alguém abusou dela. O abuso é exatamente isso. Não é só o abuso sexual concreto. O abuso é quando você provoca naquela criança uma tensão que ela não tem como dar conta.”

JOANA PUGLIA
Psicóloga

“Falta o adulto para a criança adultizada”

Tanto Fernanda quanto Joana concordaram que a melhor solução para evitar a adultização é um controle rígido e rigoroso dos responsáveis. “Eu diria que falta o adulto para a criança adultizada, para dizer o que pode e o que não pode. É importante monitorar o que está sendo consumido e quem são as pessoas que a criança segue. O ideal é que, até os 2 anos de idade, a criança não tenha contato com telas. E, com redes sociais, tem que ser muito mais tarde”, recomendou a médica.

E, neste caso, o papel dos pais é ativo. Não basta apenas conversar e deixar o filho avisado sobre o que pode ser feito no ambiental virtual. “A gente tem sempre o princípio de não aceitar coisas de estranhos. No entanto, quando a gente entrega eles na internet, se faz exatamente isso. Apenas avisar o filho é cometer um outro erro de adutilização. É transferir para a criança a responsabilidade do cuidado dela mesma. O cuidado e a responsabilidade são dos pais”, enfatizou Joana.

Esperteza não é argumento para a adultização de crianças

Também durante o Folha 105 – 1ª Edição, a psicóloga questionou o senso comum de que as crianças atuais são mais espertas, quando comparadas com as de outras gerações. Para ela, esta pode ser uma compreensão perigosa para conceder mais liberdade no meio virtual. “Tem uma coisa que é antiquíssima, mas que eu acho que vale até hoje: se a criança está muito quietinha, está aprontando. Se está muito quietinha no quarto, vá ver o que ela está fazendo. Criança não tem que ter privacidade. Ela tem o direito de usar o que for permitido, com controle de pais, e tem o direito de chorar, esperar, sapatear e querer crescer logo”, afirmou.