O ônibus conquistador de corações

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“Teu guri tá aí, então me empresta o Metz.” O pedido de Milton Büchner para o amigo Nico Reckziegel aconteceu em 1986, para que este cedesse um de seus melhores motoristas para fazer excursões pela Auto Viação Venâncio Aires, a Viasul.

A solicitação não era estranha, afinal, empréstimos e trocas entre os Büchner e os Reckziegel aconteciam desde sempre. Lauro e Antonio (o Nico), proprietários de duas importantes empresas de transportes coletivos de Venâncio Aires, eram amigos de longa data e, embora concorrentes na profissão, tinham uma relação de respeito e fraternidade.

Por isso, o pedido foi aceito e o motorista desejado, André Gilberto Metz, acabou contratado em definitivo pela empresa do centro de Venâncio um mês depois. Já o ‘guri’ mencionado por Büchner era um rapazote recém egresso do quartel: Jorge Matias Reckziegel, o filho de Nico, que começou, naquele momento sua história como motorista de ônibus. Mais do que isso, viveria anos sobre as rodas de um veículo muito especial: o número 1, que encantou motoristas, passageiros e, até hoje, transportando música e alegria, segue sua ‘saga’ de conquistador de corações.

Do ‘quebra-galho’ a uma paixão

Em 1981, para dar conta da demanda no 4º distrito de Venâncio, Antonio Reckziegel (1937-2021), conhecido como Nico, decidiu que era hora de investir em um ônibus melhor para compor a frota da Transportes Coletivos Reckziegel Ltda, empresa que ele fundou em Linha Cecília, em 1965.

A ‘joia’ foi encontrada no Expresso Arroio do Meio: um Mercedes-Benz 1969, carroceria Eliziário (futuramente integraria o grupo Marcopolo), com a porta do passageiro à esquerda da roda dianteira. Apesar de já ter 12 anos de uso, era considerado um veículo moderno para a época, com uma carroceria forte para aguentar as estradas do interior. Na fachada, o ‘1’ já estava pintado e ele seguiu com essa numeração em Venâncio Aires.

Veículo foi comprado por Nico Reckziegel em 1981, do Expresso Arroio do Meio (Foto: Arquivo pessoal)

Um dos motoristas que mais tempo conduziu o veículo foi André Gilberto Metz, hoje com 58 anos. No fim de 1982, ele retornou do serviço militar com uma ideia na cabeça: dirigir caminhões e seguir os passos do pai, Brunildo, que tinha caminhão próprio e durante muito tempo foi agregado na Expresso Cruzador. Mas a volta a Venâncio reservava outro destino.

Enquanto a família Schmitz o esperava no posto de gasolina (onde começou como frentista aos 13 anos), Nico Reckziegel fez uma proposta ao jovem que sempre lavava e cuidava com extremo capricho de seus ônibus no posto. “Fui como quebra-galho para ser motorista e acabei me apaixonando”, conta Metz.

O Reckziegel número 1 foi o primeiro ônibus em que o jovem trabalhou e diariamente fazia a linha Cecília-Santa Emília-17 de Junho-estação rodoviária (na época, ainda na esquina das ruas Júlio de Castilhos e Jacob Becker). “Era o melhor veículo da empresa e eu sempre tive muito cuidado e carinho. Dirigir ele me proporcionou uma coisa que sempre gostei, que é lidar com o público. Sem falar que acabei ganhando uma segunda família. Era tratado como filho pelos Reckziegel, morei lá e tinha um quarto só para mim na Cecília.”

André Gilberto Metz foi um dos principais motoristas do número 1, entre 1983 e 1986 (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

Casamento

O ônibus não foi o único a acertar o coração de André Metz e, em 1983, o veículo proporcionou o início de outra história de amor. Foi a bordo dele que o motorista conheceu a esposa, Roseli, que sempre pegava o ônibus no São Luiz, em Santa Emília. “Nessa época a gente também ‘puxava’ Carnaval, bailes e jogos de futebol. Mas foi depois de uma viagem a Daltro Filho, onde um irmão dela frequentava o seminário, que a gente começou a conversar. Daí o namoro começou para valer e casamos em 1987”, conta Metz.

Fretes e pedras

O ‘número 1’ também fez muito fretamento. Com as listas de agricultores que o encarregavam de fazer as compras, Metz geralmente pegava alimentos no antigo Marquetto (esquina da General Osório com Coronel Agra) e as rações buscava na agropecuária do Kurz (esquina da Sete de Setembro com Júlio de Castilhos). Também era responsável por levar as correspondências e as edições da Folha do Mate até os agricultores do 4º distrito.

Mas além desse frete especial, o ônibus carregava cargas de pedras. Na região do barro vermelho, quando a chuva e a falta de manutenção das estradas deixavam os trajetos intransitáveis, o jeito era encher o porta-malas com pedregulho e depois espalhar nos pontos mais críticos. “Além de motorista, faxineiro e mecânico, a gente também era operário de estrada”, lembra, entre risos, Metz.

Um guri apaixonado, Durepox e uma bomba de Flit

Em 1986, o profissionalismo e o conhecido cuidado de André Metz para com os ônibus lhe renderam um convite. Dessa vez, a Auto Viação Venâncio Aires, a Viasul, à procura de um motorista para fazer excursões, propôs aos Reckziegel um empréstimo.

“Como eu estava voltando do quartel, o Milton chegou no pai e disse para emprestar o Metz. Os Büchner e o pai eram como irmãos e sempre quando precisava, um emprestava ônibus para o outro. Tinham muito respeito. Com a saída do Metz [contratado em definitivo pela Viasul semanas depois], eu comecei minha história como motorista”, conta Jorge Matias Reckziegel, 55 anos.

Jorge, como ele mesmo diz, era um guri de 19 anos na época. Antes do quartel, fazia as vezes de cobrador no ‘número 1’ e nele aprendeu a dirigir e seguir com o trato e o capricho ensinados por André Metz. “Devo muito da minha formação pessoal e profissional a ele.” Jorge ainda não sabia, mas também seria conquistado pelo mesmo veículo. “Me apaixonei por aquele ônibus e mesmo com poucos recursos fazia de tudo para melhorar a mecânica e a aparência dele.”

Além de sempre mantê-lo limpo e em condições de rodar, Jorge improvisou para deixá-lo mais bonito. Foi com Durepox (cola para metal) que fechou buracos na lataria e com uma bomba de Flit (antigo pulverizador de inseticida) fez um spray de tinta. Originalmente, o número 1 tinha uma faixa laranja na lateral e, depois, ficou azul e branco, até hoje as cores da empresa.

Jorge Reckziegel, um dos conquistados pelo ônibus, guarda com carinho a foto do veículo em frente à antiga garagem da empresa (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

Casamento 2

Foi dirigindo o ‘conquistador de corações’ que Jorge também conquistou a esposa, Ilaine, conhecida como Neca, 56 anos. Durante um ano, foram apenas amigos, enquanto ela pegava o ônibus na Linha 17 de Junho para seguir até o Centro de Venâncio. “No dia do meu aniversário, em 1987, convidei ela para ir junto num jogo de futebol na Vila Melos [atual município de Vale Verde]. Assim começamos nosso namoro.” Jorge e Neca casaram em 1990 e têm uma filha, Janaína, de 29 anos.

Com e sem carteira

Quando Jorge começou como motorista, ele não tinha habilitação para dirigir ônibus (a categoria D exige 21 anos). Ainda assim, como eram ‘outros tempos’, ele virou titular do número 1. O veículo, curiosamente, teve participação na formação de inúmeros motoristas de transporte coletivo e carga em Venâncio Aires, já que era alugado para fazer teste de direção.

“Na época, a prova era aplicada pelo Setor de Trânsito, nos fundos da Delegacia. Foi com o número 1 que eu tirei minha primeira habilitação [categoria C], dois dias após completar 18 anos, e a segunda habilitação [categoria D] quando completei 21 anos.”

Jorge dirigiu um ano e três meses sem CNH para coletivos, mas a experiência na direção ajudou a orientar muitos candidatos. “Ensinava os macetes. Na minha vez, só dei uma volta na quadra e o instrutor disse: pode parar aqui, tua carta tá assinada, eu sei que já dirige faz tempo.”

Santo Antônio escondido?

A fama do número 1 é tão grande que, mesmo quando ele não teve envolvimento direto em certos ‘enlaces’, é lembrado mesmo assim. Isso porque envolveu um de seus primeiros motoristas, Cláudio José Frey, hoje com 69 anos.

Maria com o marido Cláudio Frey, o primeiro motorista do ônibus número 1 (Foto: Arquivo pessoal)

Ele trabalha com transportes há mais de 40 anos e viveu uma situação curiosa em 1977, com outro veículo dos Reckziegel. Frey levava estudantes à noite para o Colégio Oliveira Castilhos e na época já era noivo de Maria Clorete, que frequentava as aulas. Maria conta que, enquanto esperava pelos estudantes, era comum o motorista dormir no fundo do ônibus. Para não acordá-lo, a turma entrava por conta, mas, para conseguir abrir a porta, alguém esticava o braço para dentro da janelinha do motorista para alcançar uma alavanca. “Quando pulei de volta, minha aliança ficou presa e acabou cortando fundo no meu dedo. Precisaram me levar no médico e ele só conseguiu tirar depois de cortar o anel”, contou Maria, hoje com 69 anos.

A aliança foi arrumada e ainda segue no dedo dela. “Como sou esposa do primeiro motorista do ônibus ‘conquistador’, o pessoal já brincou que talvez a gente deixou um Santo Antônio escondido dentro dele”, revelou, entre risos, em referência ao ‘santo casamenteiro’.

À espera de novas conquistas

O Mercedes-Benz carroceria Eliziário tem 52 anos e ainda está em Venâncio Aires. Quem mora próximo à escola Cidade Nova já deve ter prestado atenção no veículo, todo pintado de azul, estacionado no pátio de uma residência.

O próprio Jorge descobriu o paradeiro dele neste ano. No dia que chegou a vez de receber a vacina contra a Covid, o local determinado era o ginásio do bairro Cidade Nova. “Quando dei a volta na quadra me deparei com ele. Botei o olho e sabia. Eu tinha certeza, é como um pai reconhecer o filho.”

Orlando Bergmann é o atual proprietário do ônibus, usado por uma banda local (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

O veículo tinha sido vendido pelos Reckziegel em 1993, para uma banda de Lajeado. Depois, não se sabe exatamente onde circulou, mas voltou para Venâncio Aires há cerca de 20 anos, quando o músico Orlando Bergmann, proprietário da banda Embalo Legal, comprou o veículo. “Na época comprei de uma empresa de confecções. Somos um quarteto e, para nós e para guardar os instrumentos, está ótimo. Em 20 anos só refizemos o motor e pintamos. Muita gente já quis comprar, mas não penso em vender. É um ônibus muito bom”, explicou Bergmann, 56 anos.

Segundo o músico, o veículo está estacionado desde o dia 14 de março de 2020, quando ‘estourou’ a pandemia. “Estamos ansiosos para voltar para a estrada e tocar nos eventos.”
A banda Embalo Legal, antigo Musical Novo Horizonte, é conhecida na região por festas de comunidades, quermesses e, principalmente, casamentos. Ao saber dessa ‘fama’ antiga com conquistas, seja de motoristas ou passageiros, Orlando Bergamann, concordou. “É, ele já deve ter enlaçado muitos corações então. Em festas que já tocamos sempre têm os namoros que começam e viram casamento. Acho que é o destino desse ônibus, né?”

Se esse ônibus falasse…

A história do ônibus conquistador é só um pequeno capítulo de uma trajetória muito maior que envolve a Transportes Reckziegel e centenas de famílias que rodaram e ainda rodam nessas intermináveis estradas no interior.

Fato é que o número 1 também me conquistou e entendi que ele merecia uma reportagem especial. Para ajudar nesse resgate, contei com as informações e a memória de Jorge Matias Reckziegel que, desde 2004, deixou os ônibus e as estradas para se dedicar à agricultura. “Eu era feliz, mas hoje sou muito mais”, afirmou. Ele, aliás, já foi case da Folha do Mate sobre cultivo de tabaco fora de época.

Embora a vida de motorista tenha ficado para trás, Jorge e outras pessoas que ouvi demonstraram nítido sentimento de nostalgia, porque, ao falar do veículo, foi como voltar no tempo e reviver um momento especial na vida de cada um.

O número 1 não é um ‘Herbie’ (como o Fusca que tinha vida própria no eterno filme da década de 1960), nem um DeLorean (que viajava pelo tempo no clássico oitentista ‘De volta para o futuro’). Mas ele, com certeza, ‘fala’ através da voz de quem subiu a bordo, e segue superando a barreira do tempo, com as lembranças de um passado que a memória não deixa morrer.



Débora Kist

Débora Kist

Formada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) em 2013. Trabalhou como produtora executiva e jornalista na Rádio Terra FM entre 2008 e 2017. Jornalista no jornal Folha do Mate desde 2018 e atualmente também integra a equipe do programa jornalístico Terra em Uma Hora, veiculado de segunda a sexta, das 12h às 13h, na Terra FM.

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