Santo Amaro: a história da vila de 270 anos que é a ‘mãe’ de Venâncio Aires

-

No início do filme ‘Um certo capitão Rodrigo’ (1971), o personagem interpretado por Francisco di Franco trota a cavalo por Santa Fé. A cena marca a chegada de Rodrigo Cambará à vila onde se desenrola um dos principais capítulos de ‘O tempo e o vento’, o maior clássico literário de Erico Veríssimo. O capitão percebe um lugar pacato, sem grandes movimentações e atrativos. Na ficção de Veríssimo, Santa Fé era exatamente assim. Mas, quando voltamos para a realidade, essa parece ser a mesma impressão de quem chega hoje a Santo Amaro do Sul, atual distrito de General Câmara e que, com a arquitetura original, serviu de pano de fundo para a obra cinematográfica em questão.

Fundada há mais de 270 anos, a mesma Santo Amaro que já foi cenário de filme, também tem algumas curiosidades: é mais velha que Porto Alegre, esteve na rota do famoso naturalista francês Santi-Hilarie, é um dos pontos mais importantes da história gaúcha e foi elevada a patrimônio brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Mas, além de tudo isso, para uma determinada cidade que fica a quase 80 quilômetros de distância, a importância é, digamos, embrionária. Foi de Santo Amaro que Venâncio Aires nasceu como município, em 1891. E para conhecer um pouco mais da história da ‘mãe’ e de como ainda permanecem os vínculos com a ‘filha’ Venâncio, a Folha lhe convida a ler a reportagem a seguir.

Santo Amaro: uma vila mais antiga que Porto Alegre

Se para o mundo o Brasil pode ser considerado um adolescente em trajetória, o Rio Grande do Sul é, portanto, um guri de calça curta. Isso porque o território gaúcho, como o conhecemos hoje, começou a tomar forma na metade do século XVIII, coisa de ‘apenas’ 270 anos atrás. Ainda não eram os tempos das guerras que marcariam o estado no século seguinte, porque em 1750 houve justamente um acordo diplomático que marcaria nossa história. Foi com o Tratado de Madri, assinado entre Portugal e Espanha, que se estabeleceram novas fronteiras entre as colônias dos dois países europeus. Com isso, o atual o território gaúcho passou a ter ocupação portuguesa.

Nesse contexto, a construção de fortes foi uma das primeiras iniciativas para garantir a proteção dos locais, entre eles Rio Pardo, um dos primeiros municípios do Rio Grande do Sul. Seguindo a margem do Rio Jacuí e não muito longe, os portugueses constroem um fortim, que é um forte um pouco menor. É neste lugar que foi fundada uma vila, em 1752. E, no ano seguinte, houve a criação oficial da freguesia de Santo Amaro do Sul. Portanto, o local é mais velho que Porto Alegre, a capital dos gaúchos, fundada em 1772.

“Santo Amaro pertencia a Rio Pardo e evoluiu rapidamente com a chegada dos açorianos. Quem vai lá hoje talvez não tenha noção de como foi grande e importante. Há um registro, de 1773, que a vila tinha quase 7 mil habitantes”, relata a professora e historiadora, Angelita da Rosa. Há mais de 15 anos, quando integrava o Núcleo de Cultura de Venâncio Aires (Nucva), ela liderou projetos de pesquisa histórica que resultaram em livros e no restauro da igreja de Santo Amaro.

Igreja tem paredes externas de 1,80 metro (Foto: Renan Zarth/Terra FM)

A igreja que Saint-Hilaire descreveu quando passou por Santo Amaro

O templo de Santo Amaro é a principal referência da vila. Com paredes externas de 1,80 de largura, também teve importância como proteção para os moradores em tempos de guerras e invasões. Sobre a porta, está o ano de 1787, mas não se sabe se marca o início ou término da construção. Independente disso, conforme historiadores, é a quarta igreja mais antiga do Rio Grande do Sul. Mais velha que ela, estão os templos de Rio Grande, Viamão e Porto Alegre.

A igreja de Santo Amaro também mereceu atenção de Auguste de Saint-Hilaire. O famoso botânico e naturalista francês visitou o estado por volta de 1820 e assim descreveu suas memórias na obra que ficou conhecida como ‘Viagem ao Rio Grande do Sul’: “Pouco antes do anoitecer, passamos pela Vila de Santo Amaro, sede de uma paróquia. A localidade onde está construída esta aldeia é descampada, mas à direita e à esquerda há matas. A igreja fica no topo de uma colina e sobre seu declive veem-se pequenos grupos de casas, entremeadas de laranjeiras e gramados”.

Há quase 20 anos, com ajuda do Nucva, a igreja foi restaurada e houve até um trabalho arqueológico. Segundo as informações levantadas na época, até o século XIX foram de mais de 150 sepultamentos dentro e no entorno do templo. “Sob o assoalho, embaixo do altar-mor da igreja, estão os restos mortais de 10 padres, de Manuel Pedroso (um soldado da Revolução Farroupilha), e de Rita Menezes de Azambuja, dona da primeira casa construída em Santo Amaro, em 1763”, descreve a historiadora Anajara da Silva, moradora de Santo Amaro.

Historiadora Angelita da Rosa, de Venâncio, liderou projetos de pesquisa histórica que resultaram em livros sobre Santo Amaro (Foto: Renan Zarth/Terra FM)

Santo Amaro: museu a céu aberto

O conjunto histórico da vila, formado pela praça e mais 14 prédios, foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 1998. Marcada pela arquitetura colonial portuguesa, a vila é um verdadeiro museu a céu a aberto. A maior parte das edificações teve importantes funções no passado e serviram de moradia para personagens históricos. Uma delas é o casarão onde nasceu, em 1773, José Gomes de Vasconcelos Jardim, presidente da República Rio-grandense durante os anos da Revolução Farroupilha.

Nessa mesma casa, também funcionou a primeira Câmara de Vereadores de Santo Amaro, quando município, e a primeira loja de Maçonaria. É conhecida como a ‘casa dos bigodes’, pelos detalhes sobre as portas e janelas. Atualmente, a maioria desses prédios é particular. Com necessidade de alto investimento para o restauro, algo que foge das condições financeiras das famílias proprietárias, muitas casas têm sofrido com a ação do tempo e vêm se degradando cada vez mais. A ‘casa dos bigodes’ é um exemplo. Está em ruínas e boa parte do telhado já cedeu.

Praça ostenta uma figueira centenária (Foto: Renan Zarth/Terra FM)
Procissão da Festa de Santo Amaro reúne devotos de diversos municípios (Foto: Arquivo pessoal)

A Irmandade do Santíssimo Sacramento e Santo Amaro

Numa vila fundada por portugueses, naturalmente a religiosidade é uma das marcas principais. E, em Santo Amaro, a influência católica segue até hoje, mas com uma tradição diferente do que geralmente se vê por aí. Lá, existe uma manifestação religiosa leiga (que não pertence a um clero), mas com função de ser a ligação entre a igreja e a comunidade. Na vila, ela é chamada de Irmandade do Santíssimo Sacramento e Santo Amaro, e as atividades datam de 1815.

Segundo a historiadora Angelita da Rosa, as irmandades de leigos eram um grupo de homens que se unia em torno de um santo – diferente de uma paróquia. “A paróquia tem um ponto de vista eclesiástico, ela está vinculada a um distritamento religioso. Já a irmandade foca num santo, numa igreja. A festa de Santo Amaro, por exemplo, segue os ritos determinados pelo estatuto da irmandade. Sempre o festeiro é um irmão. Às 6h do dia do santo, não importa o dia da semana, vão na casa do festeiro e vêm em procissão trazendo-o até a igreja. A descida do santo do altar só é feita pelos irmãos. A missa solene, em geral, é feita por um arcebispo de Porto Alegre. E atrás dele, durante a celebração, fica a irmandade, todos vestidos com roupas vermelhas”, descreve Angelita.

Edson de Paula, levando a cruz, é venâncio-airense e o atual provedor da irmandade (Foto: Arquivo pessoal)

O provedor

O venâncio-airense Edson Luís de Paula, 52 anos, está no terceiro mandato como provedor da irmandade, cargo semelhante a presidente. Como descendente de italianos e portugueses, portanto famílias que sempre participaram das comunidades ondem moraram, herdou esse costume e está na irmandade há cerca de oito anos.

Mas a história dele com Santo Amaro começou muito antes. Ele conta que, há 30 anos, ia acampar nos fins de semana com a família. “Aí saudoso Joaci ‘Saca’ Gauer descobriu uma casinha de pescador para comprar. Compramos e depois construímos uma casa para os finais de semana. Com o tempo minha esposa Elisandra, também de Venâncio, começou a estudar na Ulbra em São Jerônimo. Na época eu trabalhava no curtume de Venâncio, e vinha para Santo Amaro nos fins de semana. Há uns 20 anos mudamos com tudo pra cá”, relata Edson, que é servidor público na Prefeitura de General Câmara. A filha dele, Bruna Rafaela de Paula, é a 1° princesa de General Câmara e nasceu em Venâncio.

238 Festas de Santo Amaro

Desde 1787, é realizada na vila a Festa de Santo Amaro, portanto já foram 238 edições. O dia do santo é 15 de janeiro, mas, segundo a historiadora Anajara da Silva, as comemorações começam sempre no dia 6, portanto são 10 dias de festividades. Em 15 de janeiro, aliás, é feriado no município de General Câmara.

Embora se tenha o salão paroquial, parte da programação se desenvolve no gramado da praça bem em frente da igreja, com a montagem de barracas, a exemplo de como eram as festas há mais de 100 anos. No dia 15 de janeiro, a vila recebe romarias e devotos de diversos municípios do estado.

Em Venâncio Aires, a religiosidade em torno do padroeiro São Sebastião Mártir também tem algumas coincidências para com Santo Amaro. Isso porque, antes da construção do Pavilhão de Eventos, as festas do Bastião eram realizadas sob barracas na Praça da Matriz. Vale lembrar, ainda, que o padroeiro da Capital do Chimarrão também é celebrado em janeiro, no dia 20. Em 2026, será a 150ª edição, já que a primeira festa ocorreu em 1876, ano da construção da primeira capela em honra a São Sebastião.

O interior de igreja de Santo Amaro, templo construído em 1787 (Foto: Renan Zarth/Folha do Mate)

Por que Santo Amaro?

De acordo com o livro ‘O patrimônio da fé: Santo Amaro do Sul’, não há precisão histórica que determine por que Santo Amaro virou santo da vila. Das informações populares que sempre correram, muitos dizem que a imagem foi trazida pelos açorianos no século XVIII. Outras de que foi uma imposição do General Gomes Freire de Andrade. Há, ainda, uma história quase mítica, de que a imagem foi jogada no rio, mas retornou, criando base para adoração e fé a Santo Amaro.

Em torno do santo, ainda existe outra festividade religiosa, além do 15 de janeiro. Trata-se de ‘Santo Amaro em Portugal’, que é realizado desde 2020, em abril. No dia do evento, o distrito de General Câmara se transforma, literalmente, em um pedacinho dos Açores, celebrando as raízes portuguesas com música, dança, história e gastronomia típica.

Foto: Renan Zarth/Terra FM

Onde Venâncio Aires é nome de rua e Brígida do Nascimento foi batizada

Na vila que é mãe do município de Venâncio Aires, existe uma rua com o nome da filha. A rua Venâncio Aires fica próxima do Rio Jacuí e é endereço onde muitos venâncio-airenses mantêm casas de veraneio ou para passar o fim de semana. Também em Santo Amaro há outras ligações ‘eternas’ com Venâncio. Foi lá que nasceu, em 1863, Thomaz José Pereira Júnior, a figura que os venâncio-airenses conheceram como Coronel Thomaz Pereira, três vezes intendente do município e que dá nome à Praça Católica e à escola de Linha Taquari Mirim.

Ainda em Santo Amaro foram batizadas, em 1783, as netas gêmeas de Francisco Machado Fagundes da Silveira, o primeiro sesmeiro de Venâncio. Uma dessas meninas era Brígida do Nascimento, uma mulher muito religiosa, que doou um pedaço de terra para construir uma capela em honra a São Sebastião, de quem era devota. No entorno desse templo que Brígida idealizou, outra vila se formou, cresceu e hoje já tem 134 anos de história como município: Venâncio Aires.

Casarões junto à Rua Thomaz José Pereira, que foi intendente em Venâncio Aires (Foto: Renan Zarth/Terra FM)
Ênio Vianna, 93 anos, o Ticô, trabalhou como telegrafista na estação férrea (Foto: Renan Zarth/Terra FM)

Código Morse na Estação Ferroviária

O homem mais velho de Santo Amaro, Ênio Damaceno Vianna, 93 anos, tem dificuldade de ‘enxergar’ o futuro da vila. Mas não é por causa dos olhos, que nem necessitam de óculos, mas porque já viu a terra natal viver uma movimentação muito maior do que hoje em dia.

Para ele, se a vila voltasse a ser a sede administrativa, voltaria a ter perspectivas melhores no futuro. “Como está, acho difícil”, lamenta o nonagenário, que é conhecido por todos como Ticô. O apelido ele mesmo se deu, depois de adulto, já que quando criança ficava bravo quando o chamavam de ‘tiquinho de gente’, devido à altura.

Muito lúcido, Ticô narra com detalhes fatos da década de 1950, quando começou a trabalhar como telegrafista na Estação Férrea, construída em 1883 e há alguns anos desativada. Ele aprendeu o ofício com o avô, Agostinho Vianna, que dedilhava no braço do neto para ensinar o Código Morse, e com o pai, Ariolindo. Os dois também trabalharam como telegrafistas na estação, que fazia linha até Cachoeira do Sul e fez parte da Companhia Estrada de Ferro Porto Alegre–Uruguaiana.

Estação Férrea de Amarópolis foi construída em 1883 (Foto: Renan Zarth/Terra FM)

A história em pinturas

Uma das figuras mais conhecidas de Santo Amaro é uma venâncio-airense que fez da vila à margem do Jacuí sua casa há mais de 40 anos. Olinda Guilhermina Konrad, 82 anos, é a proprietária da Pousada e Restaurante Coqueiro, aberto em 1984 junto com o marido, Pedro Konrad, 81.

Professora aposentada, há quase 50 anos ela e o marido já veraneavam em Santo Amaro, até que decidiram empreender, abrindo o Coqueiro. Rapidamente, foi se apaixonando pelo local e pela história, por isso, também, cresceu dentro dela a vontade de contribuir com Santo Amaro. Nos anos 1980, ajudou a criar a Associação dos Veranistas e Amigos de Santo Amaro (Avasa), para promoção de diversos eventos. Foram diversas festas e atividades organizadas para atrair público e movimentar a vila histórica, entre elas festas de Nossa Senhora dos Navegantes, concursos Garota do Sol, carnavais com desfiles e acampamentos farroupilhas.

Artista, dona Olinda também registrou a história de Santo Amaro em telas: pintou 21 quadros do sítio histórico. Também fez um poema, que teve como inspiração a figueira centenária da praça. Outro hobby, como ela mesmo define, foi ter se dedicado às pesquisas e estudos sobre a cultura açoriana, trabalhando o artesanato usando escama de peixe. Exemplos dessa arte estão à mostra junto ao Centro de Atendimento ao Turista (CAT) de Santo Amaro.

Perguntada se a movimentação não é mais a mesma, já que o Coqueiro está à venda, dona Olinda mantém o sorriso e o otimismo. “A idade vem vindo, né. Mas vejo como uma oportunidade de colocar gente nova aqui, com novas ideias e dar seguimento. Porque Santo Amaro vai seguir.”

A venâncio-airense Olinda Konrad, que mora em Santo Amaro há mais de 40 anos, pintou os casarões da vila (Foto: Renan Zarth/Terra FM)

Melhor é dentro do Jacuí

Morador da rua Venâncio Aires, o pescador Mauro da Rosa Fischer, 71 anos, é conhecido apenas como Alemão. O apelido é devido ao sobrenome do avô paterno, que foi casado com Laura (natural de Santo Amaro e benzedeira afamada na vila). Foi ela quem criou o pescador desde os três meses de vida. Com isso, Alemão cresceu na vila e fez do Rio Jacuí o lugar favorito. “Prefiro estar lá dentro”, afirma, apontando o horizonte preenchido pela água.

O pescador lembra com carinho dos tempos da ‘ilha’, que formava uma praia bonita e que atraía muito gente. “O povo de Venâncio vinha direto. Mas daí construíram a barragem e acabou a ilha”, conta, se referindo à barragem, construída na década de 1970 para facilitar a navegação.

Pescador desde menino, o que mais tirou do rio foram piavas, já não tão abundantes como em outros tempos. No dia a dia, Alemão está dentro da água ou desembaraçando as redes, a poucos metros da rua Venâncio Aires. Em breve, uma via lateral receberá o nome de rua Laura Fischer, em homenagem à vó dele e filha legítima de Santo Amaro.

O pescador Mauro da Rosa Fischer, o Alemão, se criou dentro do rio (Foto: Renan Zarth/Terra FM)

Onde se ouve até pensamento

Altair Miguel Heinen, 72 anos, também é um venâncio-airense que fez de Santo Amaro moradia. O representante comercial aposentado se mudou em definitivo há oito anos, mas já frequentava a vila desde criança. Ia com o pai, Aldino, conhecido como Bossa Nova, um caminhoneiro que adorava pescar e acampar na antiga ilha, onde ficavam até 40 dias. “Depois também íamos na casa de amigos, todos venâncio-airenses. Aqui, no auge, metade das casas que tinha eram de pessoas de Venâncio”, comenta Miguel, como é conhecido.

Devido a problemas de saúde, dele e da mãe, já nonagenária, o aposentado e a esposa se mudaram para Santo Amaro e moram na casa construída pelo pai dele, há mais de 30 anos. No local, estão as lembranças de Aldino, como o barco (batizado de Bossa Nova) e o Del Rey 1988. Miguel tem uma filha morando em Venâncio e diz que não pode descartar uma volta à Capital do Chimarrão. Mas, por enquanto, ele se diz bem e feliz na vila histórica. “O que mais gosto é a tranquilidade. Estamos longe de barulho. Aqui a tranquilidade é tão grande que conseguimos escutar até os pensamentos.”

Venâncio-airense, Altair Miguel Heinen frequenta a vila desde criança e se mudou em definitivo há oito anos (Foto: Renan Zarth/Terra FM)

Entre o saudosismo e a resiliência

Santo Amaro é, sim, um lugar onde se olha para o passado. Mas justamente com o intuito de valorizar tamanha história, algumas ações foram implementadas nos últimos anos pensando no futuro também. Entre elas, a rota turística ‘Caminho Açoriano’, criada em 2018.

A guia turística é a professora e historiadora Anajara Maria de Mello da Silva, que também coordena o Centro de Atendimento ao Turista (CAT) de Santo Amaro há 17 anos. Anajara nasceu em Tucunduva, mas mora em Santo Amaro desde 1970, porque a mãe dela era natural da vila. Tinha, portanto, 12 anos, quando o já premiado diretor de cinema, Anselmo Duarte, filmou em Santo Amaro ‘Um certo capitão Rodrigo’, obra mencionada no início dessa matéria. “Fui figurante”, conta, lembrando da movimentação intensa no lugar há mais de 50 anos.

A importância do filme para a comunidade segue até hoje, já que, na casa ao lado do CAT, foi montado um cenário para ilustrar a ‘Venda do Nicolau’, um dos primeiros pontos de parada do capitão Rodrigo Cambará, no livro de Erico Verissimo. É na venda que o personagem solta a famosa frase, talvez conhecida até por quem não leu a obra: “Buenas e me espalho! Nos pequenos dou de prancha e nos grandes dou de talho!”

Casa que já foi Intendência e hoje é onde funciona o CAT (Foto: Renan Zarth/Terra FM)

Reparação histórica

Apaixonada pela história da vila, Anajara não esconde a emoção ao revelar o que está no desejo mais íntimo dela. “Se o pessoal pensar como eu, deveria ser a sede do município aqui novo, como foi, até a década de 1930. Seria uma reparação histórica”, define, com os olhos marejados. A historiadora se refere ao que aconteceu na década de 1930, quando Getúlio Vargas era o presidente do Brasil.

O gaúcho decidiu, na época, fazer o segundo Arsenal de Guerra do país, um espaço que teria uma área propícia para construir uma grande vila militar. Vargas escolheu, então, o distrito de Margem do Taquari, que era o nome de General Câmara enquanto distrito de Santo Amaro. Com isso, o distrito de Margem é emancipado com o nome de General Câmara e elevado a município. Como consequência, acontece o ‘rebaixamento’ de Santo Amaro para vila e todos os setores, serviços e comércio migram para a nova sede administrativa.

A questão também incomoda outros moradores mais antigos e foi, inclusive, alvo de pesquisas e produções literárias de Francisco Pereira Rodrigues (1913-2020), político, historiador e escritor de Santo Amaro. O assunto foi abordado em dois dos livros dele: ‘Um crime de lesa-história’ e ‘Uma injustiça na história Rio-grandense’.

Historiadora Anajara Maria de Mello da Silva coordena o Centro de Atendimento ao Turista, onde funciona um museu. Ela mostra a espada de um soldado da Revolução Farroupilha (Foto: Renan Zarth/Terra FM)

Pouco mais de 600 moradores e 25 alunos

De acordo com a Prefeitura de General Câmara, com base nos dados de cartões do Sistema Único de Saúde (SUS), Santo Amaro do Sul tem 613 moradores – cerca de 8% da população de General Câmara (7,6 mil, conforme o Censo de 2022). Vale lembrar que a vila já chegou a ter 7 mil habitantes nos primeiros anos de povoamento.

Pacata, se vê pouquíssima gente circulando durante o dia pelas ruas e praça. De comércio e serviços, há dois mercadinhos, uma farmácia, dois restaurantes, um posto de Estratégia de Saúde da Família (ESF), a Subprefeitura e uma fabriqueta de cuias e mateiras. O único educandário é a Escola Estadual Ensino Fundamental Rio Grande do Sul (1º a 9º anos) e, conforme a Prefeitura, apenas 25 alunos estão matriculados em 2025.

Memórias

Entre os moradores e visitantes, há quem diga que a vila parou no tempo e corre o risco de ver o patrimônio material ruir. A historiadora Anajara da Silva é uma das que teme pela deterioração dos prédios históricos. “Muitas casas são particulares e uma restauração custa muito dinheiro. Infelizmente tem casas se deteriorando. A casa do Gomes Jardim [1763] tem um projeto pronto, mas as coisas no Iphan demoram. O primeiro hotel de Santo Amaro levou 10 anos com o projeto na fila do Iphan para ter o restauro”, exemplifica.

Guardiã das memórias, Anajara também conta com orgulho sobre a manutenção do Centro de Atendimento ao Turista (CAT), onde são mantidos um museu e a sala açoriana, com itens vindos diretamente de Portugal. “Devemos preservar para manter o legado arquitetônico que transpassa os séculos. Em cada um dos pontos, a história açoriana deixou sua contribuição para o município e o turismo. Aqui foi o começo da nossa história e ela precisar seguir.”

Primeira casa de Santo Amaro, mais antiga que a igreja, sofre com a ação do tempo (Foto: Renan Zarth/Terra FM)

Investimentos

Recentemente, houve obras de pavimentação na vila, abrangendo trechos das ruas Venâncio Aires, Ernesto Alves, 20 de Setembro e Demétrio Ribeiro. Segundo a Prefeitura, são obras que começaram no governo de Helton Barreto (PP) e concluídas em 2025, já na administração de Marcio Brandão (PP), com recursos de emendas parlamentares.

Prefeito de General Câmara, Marcio Brandão (Foto: Renan Zarth/Folha do Mate)

Perguntado se pretende continuar investindo em infraestrutura em Santo Amaro, Brandão reforçou a importância histórica e turística para General Câmara e região. “É um distrito histórico, com uma importância muito grande para o turismo. A prainha continua atraindo pessoas, como de Venâncio e Santa Cruz. No mandato passado houve investimentos, concluídos agora. Tem ruas que precisam de manutenção e outras que temos intenção sim de pavimentar, mas tudo depende de recurso.”

Vale lembrar que foi em 2023 que a estrada que dá acesso à vila, pela ERS-244, foi asfaltada. Com cerca de 4,5 quilômetros de extensão, a obra teve investimentos do Estado no valor de R$ 927 mil, além de recursos da Prefeitura e do Governo Federal.

Quantas às casas históricas, a Prefeitura informou que está em fase licitatória, junto ao Governo Federal, a restauração da Casa de Cultura Miguel Pereira, no valor de R$ 300 mil. O prédio foi construído no século XVIII e pertence ao Município.

Casas que foram moradia de militares, no Centro de General Câmara (Foto: Renan Zarth/Terra FM)

Arsenal de Guerra desativado

O Arsenal de Guerra General Câmara, que em 1935 foi levado por Getúlio Vargas à margem do rio Taquari (o que causou a troca da sede administrativa com Santo Amaro), foi desativado pelo Exército no fim de 2024. Segundo o Comando Militar do Sul, a estrutura do complexo deve ser repassada ao Município. Entre os imóveis, há casas, clubes, campo de futebol e ginásio. Atualmente, 25 das casas que foram moradia de militares, estão ocupadas por famílias atingidas pela enchente de 2024.

Os materiais foram para outras unidades do Exército, para otimizar recursos e concentrar capacidade em locais estratégicos, como Santa Maria, que é um polo militar no estado Já o acervo histórico foi repassado para o Museu Militar do Comando Militar do Sul, em Porto Alegre. O local recebeu o nome em homenagem a José Antônio Corrêa da Câmara (primeiro governador o Rio Grande do Sul após a Proclamação da República, em 1889). Quando a sede administrativa saiu de Santo Amaro e o distrito de Margem do Taquari foi elevado a município, a nova cidade recebeu o nome do arsenal bélico.

Ainda que General Câmara tenha se tornado município há pouco mais de 80 anos, o aniversário da cidade é comemorado em 4 de maio, uma data que tem relação direta com Santo Amaro do Sul. Isso porque foi em 4 de maio de 1881 que Santo Amaro se emancipou de Taquari.

O passado merece um futuro

‘Descobri’ Santo Amaro depois de assistir, ainda na adolescência, ao filme ‘Um certo capitão Rodrigo’. Tempos depois, já na faculdade e interessada pelo passado venâncio-airense e gaúcho, fui até a vila, curiosa para saber mais sobre de onde Venâncio Aires tinha ‘nascido’. Para quem gosta de História, é um ‘prato cheio’. Um museu a céu aberto, onde às vezes se custa a acreditar que prédios tão velhos continuam de pé. E talvez seja nesse ponto que está a ‘magia’ de uma das vilas mais antigas do Rio Grande do Sul: ela resiste.

Santo Amaro não é apenas um pedaço importante da história de Venâncio, é também do estado. Há quem diga que ‘parou no tempo’ ou ‘não tem futuro’. Mas entendo que, ainda que algo esteja atrelado ao passado, não significa que deixou de existir. Ou, pior ainda, que deve ser esquecido. O passado também merece um futuro, nem que seja somente para manter a memória, enquanto luta contra o esquecimento.

Por Débora Kist – jornalista



Débora Kist

Débora Kist

Formada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) em 2013. Trabalhou como produtora executiva e jornalista na Rádio Terra FM entre 2008 e 2017. Jornalista no jornal Folha do Mate desde 2018 e atualmente também integra a equipe do programa jornalístico Terra em Uma Hora, veiculado de segunda a sexta, das 12h às 13h, na Terra FM.

Clique Aqui para ver o autor

Oferecido por Taboola

    

Destaques

Últimas

Exclusivo Assinantes

Template being used: /bitnami/wordpress/wp-content/plugins/td-cloud-library/wp_templates/tdb_view_single.php
error: Conteúdo protegido