Projetos de lei que dizem defender a “neutralidade do ensino” e objetivam barrar suposta “doutrinação ideológica” nas escolas têm se alastrado pelos Legislativos do país e causado polêmica. Quase todos reproduzem o texto do programa Escola sem Partido, idealizado em 2004 pelo advogado Miguel Nagib, procurador paulista.
Para saber o que a população pensa a respeito, o portal e-Cidadania, do Senado Federal, está com consulta pública aberta sobre o projeto de Lei 193, de 2016, que está em tramitação na Casa. De autoria do senador Magno Malta (PR-ES), prevê a “neutralidade” dos docentes diante de questões políticas, ideológicas e religiosas em sala de aula. Através da consulta pública, é possível votar a favor ou contra o programa, enviar comentários e sugerir mudanças nos itens previstos.
Na Assembleia gaúcha, tramita projeto semelhante, o PL 190, de 2015, que tem Marcel van Hattem (PP) como proponente. Em nota oficial, o deputado diz que a proposta é garantir que os professores abordem todo o conteúdo factual de cada matéria, sem omissões ou recortes ideológicos. “Também, pretende evitar que os docentes se valham de sua posição para arrebanhar alunos para suas causas político-partidárias. Dessa forma, garantir-se-á a liberdade dos estudantes, que poderão formar seus juízos sobre o mundo a partir do conhecimento dos fatos históricos e científicos.”
Para van Hattem, as invasões nas escolas de Porto Alegre puseram fim às dúvidas sobre a necessidade do Escola sem Partido, que afirma garantir aos professores o direito e o dever de ensinar sobre tudo que diz respeito à sua matéria, mas sem emissão de julgamentos enviesados – ou seja, que o professor seja “informador” e “formador”, não “opinador”.
“A lei afetará somente a minoria docente que tem se dedicado a moldar suas abordagens, recortando e distorcendo fatos, ocultando boa parte do conteúdo e direcionando os alunos para o brete ideológico. A maioria dos professores, dedicada às funções precípuas e essenciais do ensino, só tem a ganhar com este reforço a seus direitos e deveres”, declara.
>>> Para sociólogo, proposta não é relevante para a sociedade
Na opinião do doutor em Sociologia e professor da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (Uergs), Valter Freitas, a discussão sobre a proposta que visa barrar suposta doutrinação ideológica em sala de aula não é de interesse da sociedade. “Não existe nem um professor pesquisador das universidades públicas que considera relevante tratar do tema Escola sem Partido a partir dos argumentos elencados pelos parlamentares.” Ele afirma que estes desconhecem as relações dialógicas que ocorrem durante o processo de aprendizagem.
Para o sociólogo, a pauta é destituída de sentido. “Qual é o acontecimento social relevante que permita que a gente tenha que rediscutir isso?” Valter questiona a existência de elementos da realidade que comprovem que o professor se aproveita de uma suposta vulnerabilidade do aluno para exercer algum tipo de doutrinação ideológica sobre ele.
Segundo o sociólogo, há uma disputa na política nacional em que o grupo detentor de maioria tem se valido disso para impor pautas que acabam por destoar do interesse coletivo. “Se tem uma pauta que é relevante no Brasil, hoje, é a criação de políticas públicas eficazes contra a corrupção, que evitem que as pessoas se apropriem daquilo que nos é mais sagrado, que é o dinheiro público”, afirma.
De acordo com Valter, “em nome da neutralidade, estão querendo que o espaço escolar deixe de discutir questões que são relevantes”. Ele diz que, caso aprovada, a proposta acabaria por intimidar e constranger educadores ao tratar de temas como identidade de gênero, questão cuja discussão é atual mas acabou sendo partidarizada. Para o sociólogo, o movimento Escola sem Partido tem partido e reflete uma ideologia conservadora.
“O que se está propondo é que a escola continue discutindo as mesmas coisas. E o que a escola discute? A escola, em geral, se orienta por um pensamento conservador. A sociedade através dos movimentos sociais é que impõe uma nova pauta e eles acreditam que essa nova pauta é partidária, mas não é.”
Conforme Valter, o conhecimento científico é por natureza plural, assim como a sociedade. “A universidade e a escola têm que ser esse ambiente da multiplicidade de posições, da divergência e da crítica, porque é isso que constrói conhecimento novo”, destaca.