Por muitos anos, o protagonismo nas atividades rurais sempre foi de uma figura do sexo masculino. As mulheres eram responsáveis pela rotina doméstica e tomavam a frente na educação dos filhos. Porém, esse cenário vem mudando e hoje muitas mulheres lideram propriedades e escrevem histórias de muito trabalho e reconhecimento na agricultura familiar.
“Hoje a gente só consegue falar sobre esse protagonismo da mulher pois elas estão saindo da invisibilidade”, frisa a coordenadora pedagógica da Escola Família Agrícola de Santa Cruz do Sul (Efasc) e doutoranda em educação pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), Cristina Bencke Vergutz.
Até então, a figura feminina na propriedade ainda era vista como a ajudante na lavoura. Conforme Cristina, de 85% a 90% do tempo ocupado por elas ainda está relacionado ao cuidado doméstico. De acordo com a pesquisadora, baseada em informações do Censo Agropecuário 2017, nos municípios do Vale do Rio Pardo apenas 11% das propriedades rurais estão em nome de mulheres. No Brasil, das 5,07 milhões de propriedades rurais, 19% são dirigidas por mulheres.
Ela reforça que a mulher está entendendo que não é um ser condicionado, está se tornando visível. “Quando a mulher se torna consciente de que o trabalho dela também é importante temos pequenos suspiros de resistência.”
Apesar de poucas mulheres serem protagonistas e donas das propriedades rurais, muitas lutam pela independência financeira e buscam uma atividade que possam executar e gerar renda. Um dos exemplos é a participação no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). “As mulheres historicamente sempre foram as responsáveis pela produção de alimentos e na medida que conseguem conciliar alternativas de poder ter uma renda, uma independência financeira, com essa atividade, elas se sentem seguras e encorajadas a inovarem”, comenta Cristina.
A presença feminina nas modalidades do PAA alcançou 4.701 mulheres em 2019, o que representa 80% de participação no Brasil de acordo com levantamento da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Em Venâncio Aires, das 119 famílias cadastradas no PAA no momento, 40 tem o protagonismo feminino na produção, isso representa cerca de 34%, segundo dados do escritório local da Emater-RS/Ascar.
Coragem e protagonismo
Em Linha Sexto Regimento, Márcia Teresinha Oestrei Noll, 43 anos, viu em 2012 que a horta poderia se tornar uma alternativa para conquistar seu espaço e ter algo sob sua responsabilidade na propriedade, além da oportunidade de ter sua renda extra. Foi com o PAA que a agricultora viu a chance de inovar e se dedicar à agricultura familiar.
No início, um pequeno espaço na frente da residência foi destinado para a implantação da horta. Hoje, mais de mil metros quadrados recebem as mais variadas verduras e raízes. “No primeiro ano comecei com a entrega de abacates. Temos uma variedade diferente, de casca roxa, são umas dez árvores”, conta a agricultora.
No segundo ano a variedade de produtos ofertados para o PAA foi ampliada. “Depois incrementei a verdura, aipim e batata-doce.” Como a horta é perto de casa, quando sobra um tempo Márcia está sempre no espaço. Ao lado da família, auxilia na colheita do tabaco – são 17 mil pés – , mas o trabalho com as hortaliças é exclusividade da produtora.
Cerca de 15% da renda total anual da família são com produtos comercializados com o PAA. “Eu me viro. Sempre gostava de ter minha horta, aprendi isso quando era pequena, então muita coisa a gente já sabe como planta, como precisa cuidar. É uma oportunidade de investir em outra coisa, não só no tabaco. A gente precisa ter de tudo na propriedade e ainda pode ter uma renda extra”, frisa Márcia.
Destaque no campo e o protagonismo
O técnico agrícola do escritório municipal da Emater/RS-Ascar, Alex Davi Gregory, salienta que na maioria dos casos, dentro das outras atividades nas propriedades, o homem acaba sempre sendo o protagonista. Com o avanço da diversificação, a mulher consegue ocupar esse espaço. “No caso do PAA, temos uma nova atividade rentável na propriedade e de certa forma é uma renda extra para a família. Em alguns casos, esse dinheiro fica com as mulheres e dessa forma atua no empoderamento e na valorização da mulher no campo.”
Após a aposentadoria, a coragem e o descobrimento de uma nova profissão
Leane Adeli Horn, 61 anos, moradora de Linha Cecília, tinha tudo para desistir do sonho de ter sua agroindústria de conservas, mas a persistência e a coragem a fizeram continuar. Desde nova plantava tabaco. Casou, teve três filhos e sonhava com uma independência. Queria ser protagonista. “Comecei fazendo ficha na fumageira, ia trabalhar de noite e de dia colher fumo, mas não deu certo, não fui chamada”, conta.
O sonho era ter sua agroindústria, mas estava sozinha, não tinha apoio. No início da década de 2000, visitou agroindústrias na região e com auxílio da Emater encarrou sozinha um financiamento para construir o prédio. Em outubro de 2004 saiu do papel e Leane inaugurou a Agroindústria Familiar Conservas Cecília. “Comecei a fazer conservas e vender na cidade, de porta em porta. Ia três vezes por semana com minha sacola nas costas e vendia meus produtos. Caminhava até Linha Brasil, pegava o ônibus e muitas vezes o dinheiro foi contadinho”, relembra emocionada.
A primeira feira que participou foi a Expometal onde contava com ajuda de vizinhos para levar os produtos. “Meu início no PAA e nas feiras foi muito difícil, meu vizinho precisava me levar e me buscar, quando faltava produto precisava abastecer. Como eu não tinha carteira isso dificultou muito.”
Com 52 anos Leane decidiu fazer sua carteira de habilitação. Passou de primeira na prova teórica, mas após um ano ainda não tinha conseguido passar na prática. Recomeçou e depois de um ano, no dia da prova prática, indo ao encontro do ônibus, caiu em frente à casa e quebrou a perna. “Resvalei e cai, tinha dúzias de ovos comigo que não quebraram. Tive que fazer cirurgia e até hoje os parafusos na perna me acompanham”, lembra.
Foram seis meses sem caminhar, a autoestima baixa, uma separação que tinha acabado de acontecer e a agroindústria que precisava dos cuidados de Leane, afinal, as entregas estavam a todo vapor. “Mas não tinha o que fazer, precisei parar e me recuperar. Eu vinha para casa e chorava, foi um período muito difícil”, conta.
Força
Após a recuperação, Leane voltou a encaminhar o processo de habilitação e só em 2015 conseguiu a aprovação. “Mas além da carteira eu me meti na sala de aula, voltei a estudar aqui na Linha Brasil, no projeto do EJA. Sempre digo que meu 2015 foi o ano cheio de realizações, foi o melhor ano, cheio de superação e muita força. Não sei onde tinha tempo para fazer tudo isso.”
Era na conserva que Leane tirava força e persistência. Já o carinho dos clientes e amigos era a motivação e por isso ela nunca desistiu. O início foi difícil, mas hoje, além das verduras em conserva, a agricultora realiza compotas de doces como figo e pêssego. “Hoje são mais de 17 produtos que faço conservas, e praticamente tudo plantamos na propriedade.”
Com o auxílio do companheiro João Derlamm, 51 anos, – que está ao lado de Leane há cinco anos -semanalmente, eles participam das feiras da Cooperativa dos Produtores Rurais de Venâncio Aires (Cooprova) e feiras no Sindicato Rural. “Hoje sou feliz e realizada com o que faço. Agradeço todos os dias por não ter desistido, por não ter abaixado a cabeça todas as vezes que as coisas davam errado.”
“Me sinto realizada com o que faço. As conservas são meu ganha pão, mas é recompensador fazer o que gosta. Eu amo mexer na terra, por isso, plantamos o máximo possível de variedades. Isso me faz bem. Meu conselho para as mulheres é que elas tenha coragem, estudem, façam carteira, sejam independentes. Dá certo e a gente é bem mais feliz.”
LEANE ADELI HORN – Proprietária da Agroindústria Familiar Conservas Cecília
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