Por Ana Carolina Becker e Rosana Wessling
Na subida pela ERS-422, na região serrana de Venâncio Aires, uma única placa sinaliza a ‘descida’ para Linha Julieta. Logo de cara percebe-se que o caminho até a localidade é modulado por curvas e uma longa descida com muitas árvores e pedras soltas. Um trecho estreito, onde dificilmente dois automóveis passam lado a lado. Casas distantes uma das outras. Algumas na beira da estrada, outras distantes dos olhos.
Dá para contar o número de casas que estão no território de Linha Julieta, que faz divisa com Linha América, Linha Saraiva e localidades como Arroio do Tigre, pertencente à Santa Cruz do Sul. Sem muita sinalização, é no famoso ‘boca a boca’ que se descobre onde moram determinadas famílias, que já são poucas no local, cerca de 30. Pertencente ao 3° Distrito, a localidade é a quarta que recebe as águas cristalinas do arroio Castelhano, responsável por abastecer o município.
Chama atenção que durante as mais de duas horas percorridas na localidade, apenas um caminhão e uma carroça passaram pela reportagem, que esteve no local na terça-feira, 14. Por lá, o sinal de telefone celular é inexistente. Logo na descida do morro, um casal prepara a terra que receberá, em breve, o tabaco. Em um ‘perau’, Rogério e Liciane Arend, 47 e 44 anos, respectivamente, ainda usam da mão de obra manual para fazer os serviços na lavoura. Nascida na localidade, Liciane lamenta pelo baixo número de moradores em Linha Julieta. “Antigamente tinha um monte de casas e famílias, hoje já não é mais assim. Acho que somos o casal mais jovem daqui. A faixa etária predominante é a nossa”, observa ao lembrar que, quando criança, estudou na única instituição de ensino da comunidade, a Escola Municipal de Ensino Fundamental (Emef) Vidal de Negreiros. No local, só restam o prédio e as lembranças.
Quando precisam ir para a ‘cidade’, optam por Monte Alverne, pois fica mais perto. No entanto, quando precisam de algum serviço relacionado à saúde precisam ir ao Posto de Vila Deodoro, o mais próximo. A área urbana de Venâncio Aires só é opção para o casal quando precisa resolver assuntos relacionados à comercialização de tabaco.
Única empresa
Sem nenhuma ‘venda’ para garantir algo que falte em casa, Linha Julieta carece de empreendimentos comerciais. A única empresa do local é de transportes, o famoso ‘Cunha’. Hoje, o fundador Ercildo Cunha, 74 anos, já não dirige mais os veículos para levar e buscar crianças nas escolas, mas durante muitos anos essa foi sua rotina diária.
Na época em que começou a fazer esses fretes, Cunha conta que ainda usava uma Rural. Depois veio o Jipe, a Picape e então, a primeira Kombi usada. Incentivado pelo prefeito da época, Alfredo Scherer, a empresa se consolidou em Linha Julieta. No início, Cunha acordava antes das 5h para fazer o fretamento de inúmeras crianças que moravam na localidade e redondezas. “Eram 11 escolas que eu precisava atender”, lembra. Hoje, o filho segue com o transporte, mas de Linha Julieta apenas duas crianças ainda utilizam o serviço. Essas são as únicas ‘novas gerações’ da comunidade. Mas Cunha não é reconhecido apenas pelo transporte. A casa dele e da esposa, Ila, 78 anos, serviu de ‘hotel’ para mais de dez professoras que passaram pela instituição de ensino, que fica quase ao lado. Conforme eles, essa era a única opção das educadoras, já que o local é de difícil acesso e não passa ônibus. “Elas vinham na segunda e voltam para suas casas apenas na sexta-feira. O ônibus passava na ERS-422. Eu nem lembro de todas porque eram tantas”, recorda.
Três construções no ‘coração’ de Linha Julieta
No ‘centro’ de Julieta, uma escola, uma igreja e um salão comunitário são as únicas opções de lazer da comunidade que já não tem mais time de futebol, clube de mães ou grupo de jovens. A escola está fechada desde 2009. Já o salão comunitário ainda recebe festejos anuais celebrados sempre em junho, a tradicional festa da comunidade católica. Outra celebração é a festa da Associação de Damas Lírios Azuis e a festa da Sociedade Tiro ao Alvo. A igreja, construída em 1993, recebe celebrações mensalmente.
O morador Ercildo Cunha recorda que na época em que foi presidente da Comunidade Católica, há oito anos, eram cerca de 68 famílias associadas. No entanto, é visível que esse número reduziu drasticamente nos últimos anos. “Os mais idosos que moravam aqui já não conseguem mais trabalhar e os filhos já foram à cidade. Hoje só sobrou terra”, enfatiza.
Nova geração
Apenas duas crianças, em idade escolar, são a ‘nova geração’ de Linha Julieta. Percorrendo a localidade, a reportagem encontrou uma delas, a Dienifer Goettms Padilha, 9 anos. Com um olho azul da cor do céu, a menina diz que sua vontade é permanecer no local, mas não descarta a possibilidade de sair e se mudar para outra cidade, no futuro. “Meu sonho é morar em Lajeado, acho uma cidade muito bonita”, complementa. A estudante da Escola Helmuth Lehmen, de Linha Cachoeira, utiliza o transporte de Cunha para ir e voltar da aula. Hoje, com a pandemia, a missão é ir até a instituição para buscar as atividades, já que não há internet e nem ônibus no local.
Principais sobrenomes da localidade
Para conhecer mais sobre a história do local, a reportagem foi ao cemitério para observar os túmulos e, dessa forma, perceber os principais sobrenomes de pessoas que já tiveram algum tipo de ligação com Linha Julieta. Destacam-se: Hermes, Schlosser, Bergmann, Goettms, Gollmann, Justen, Pohl, Kapp, Marckmann, Kurtz, Kurz e Kerkoff.
Muito da história da localidade já foi perdida. Dos moradores mais antigos que ainda residem no local, a reportagem encontrou apenas um, Tancredo Bergmann, mas ele preferiu não se manifestar pois afirmou que a memória já não era mais boa o suficiente para isso.
Curiosidades
- Ao descer uma das tantas ladeiras de Linha Julieta, um morador abordou a reportagem e um fato chamou atenção ao se explicar que reconheceu que era um veículo estranho pelo barulho. Pois normalmente o que passa ali são caminhões da Madeireira Hermes, do município vizinho.
- Durante uma parada para um registro fotográfico, o silêncio chama atenção. Lá do alto, o único barulho que se ouve é o da água do arroio Castelhano.
- Na parada do cemitério, um morador estava pela estrada com seus bois na carroça. Ao se aproximarem, a reportagem pediu uma informação, o que causou pavor nos animais que acabaram se desprendendo e fugindo. Nem eles estão acostumados com uma movimentação diferente.
- Durante a visita à Linha Julieta, foi possível perceber que as famílias possuem muitos cachorros. Muitos deles são bravos e mostra o quanto os moradores precisam dos animais para a proteção.
- O aposentado Ercildo Cunha relembra que foi o primeiro a ter um carro na comunidade.
O êxodo rural põe uma comunidade em perigo de extinção
O caso de Linha Julieta é só mais um entre as inúmeras localidades dos Vales do Taquari e Rio Pardo que estão ‘sumindo’ do mapa. O coordenador do Arranjo Produtivo Local de Agroindústria e Alimentos da Agricultura Familiar do Vale do Rio Pardo (APL/VRP), João Paulo Reis Costa, afirma que a pesquisa acadêmica relacionada ao campo ainda é muito rasa. “A gente vive em uma sociedade que é basicamente urbana, infelizmente ainda temos a visão de que não existe campo, me refiro ao campo relacionado à agricultura familiar.”
Costa observa que ainda acontece um destrato com o campo. “O interior precisa sair dessa ideia de atraso. A nossa cultura reforça que quem fica no interior é considerado um atrasado. Falta apoio de políticas públicas para o jovem permanecer e investir na agricultura familiar.”
O professor reforça que definições históricas, que vem de anos, acabam influenciando e reforçando essa ideia de que o campo é um atraso. Costa elenca inúmeros motivos que fazem com que os jovens saiam da área rural: falta de sinalização, sinal de telefonia e internet, estradas em péssimas condições que não permitem aumentar e escoar a produção de uma cultura e falta de transporte coletivo. “Mas acredito que o principal problema é quando fecha a escola. Precisamos criticar a lógica do estudo onde o jovem sai para estudar e não volta. Infelizmente o estudo tira as pessoas do campo, os que ficam são por exclusão.”
Essa lógica vem sendo convertida com as Escolas Famílias Agrícolas. Um exemplo é a Efasc, onde Costa atua. Os jovens atuam uma semana na escola e uma semana em casa, onde aplicam os conhecimentos da instituição nas propriedades.
Gerações excluídas
O futuro de Linha Julieta, segundo o pesquisador, é um campo sem gente. “Não temos um estudo que possa mapear as localidades extintas na região. Mas eu moro em Sinimbu e vivo isso na pele. Várias localidades estão deixando de existir.”
O problema, conforme Costa, é a perda de recursos naturais, que vão refletir na cidade. “O rio vai nascer envenenado na fonte, porque as terras serão arrendadas ou vendidas para grandes produtores que irão implementar a soja, milho ou outra cultura que possa utilizar a mão de obra mecanizada. As lavouras vão acabar, os recursos naturais vão acabar, o alimento será escasso.”
O professor acrescenta que o problema é de décadas. A falta de empregos, de vagas nas escolas infantis e os problemas na cidade são reflexos da falta de incentivo para as novas gerações permanecerem na zona rural. “O campo precisa ser qualificado, assim não teremos um lapso de produção que já é visto. Para o interior voltar a ser visto como a potência de um município, ele precisa ser valorizado. Esse é o desafio. Ou então, teremos inúmeras comunidades se extinguindo.”
O pesquisador enfatiza que o crescimento do êxodo rural coloca em perigo a sucessão familiar das pequenas e médias propriedades, e da mesma forma as áreas urbanas que, a cada dia, “crescem mais desordenadamente, gerando diariamente bolsões de miséria, onde se acentuam situações de violência.”
“A partir do momento em que você fecha a escola, você condena a comunidade. Pois ali é o ponto de junção, dos alunos, do bingo, loto… Ela é a referência.”
JOÃO PAULO REIS COSTA – Pesquisador
LEIA MAIS: “Sinto falta de conviver com o povo”, diz Almedão, ao completar 80 anos