Este seria um fim de semana movimentado em Linha Isabel, Linha Esperança e localidades ao redores. Seria momento dos agricultores deixarem um pouco as ferramentas de trabalho de lado para se divertir e manter viva uma tradição que já ultrapassa mais de um século: os festejos do Kerb.
A tradicional Festa de Kerb estaria completando 115 anos em 2021, mas, devido à pandemia, os festejos não serão realizados pelo segundo ano consecutivo. Para resgatar a tradição, marcar a data e conhecer histórias dessa festa que orgulha a comunidade, a reportagem da Folha do Mate percorreu alguns quilômetros na região serrana de Venâncio Aires, nesta semana.
Os moradores dizem que o Kerb foi herdado dos primeiros imigrantes germânicos e, conforme o histórico e documentos que são guardados a ‘sete chaves’ pelo agricultor Eloi Lahr, 58 anos, que é secretário e membro da comissão organizadora do Kerb, a primeira festa foi realizada em julho de 1906, no salão de Augusto Haupt, em Linha Isabel, que havia sido construído em 1902.
A festa, segundo Lahr, ocorre em um período entressafra. “Quando nossos imigrantes vieram da Áustria e da Alemanha, começaram a se virar meio que por conta. A gente não consegue nem imaginar a dificuldade que foi no início. Teve um momento em que eles perceberam que era hora de ter um espírito comunitário, fizeram a escola, as pontes, estradas e o primeiro salão, foi aí que decidiram criar uma festa.”
Conforme relato de moradores de Linha Isabel e Linha Esperança, a festa era para comemorar os avanços, as conquistas e a colheita. Além disso, era momento de união e diminuir a saudade da terra natal.
No ano de 1924, o salão que recebeu o primeiro Kerb passou a pertencer a Henrique Haupt e, em 1956, a Otto Haupt, que continua sendo o dono do salão transformado em moradia. Hoje, Otto, 87 anos e a esposa Romilda Haupt, 85 anos, relembram dos bons tempos de kerb. “Eu conduzi uma turma de Kerb por muitos anos, essa festa é um orgulho pra gente, eram bons tempos”, comenta. O casal reside em frente ao monumento que comemora a fundação da comunidade.
Mudanças
Em 1937, o salão foi se tornando pequeno para as comemorações e o evento passou a ser realizado no salão de Jacó Steffens, que depois pertenceu ao filho Theobaldo Steffens. Mais tarde, o proprietário passou a ser Armindo Siebeneichler e, por último, a Elídio e Gilmar Ludwing.
Em 2013, a comunidade teve outra mudança: a festa passou a ser realizada no ginásio da comunidade que foi construído em 2004. O ecônomo do ginásio de Linha Isabel, Neuri Lahr, 54 anos, que também é vice-tesoureiro, enfatiza que a festa sempre fez parte da família. “É uma das festas mais tradicionais da nossa comunidade. O Kerb é um dos momentos mais importantes para Linha Isabel.”
“Fizemos sempre o máximo para manter essa tradição que já ultrapassa os 100 anos. Estamos nos cuidando, mas não vemos a hora de tirar a máscara que protege da Covid, para colocar nossas máscaras de sorriso para levar alegria e diversão a nossa comunidade”
ELOI LAHR
Chefe de turma do Kerb
Tradição é comemorada em três momentos no mês de julho
Os festejos do Kerb sempre ocorrem no segundo fim de semana de julho. No sábado
à tardinha ocorre a tradicional missa e, na sequência, inicia o baile da cuca e linguiça que vai até a meia-noite. Um dos momentos mais esperados é o leilão da Kerb Flasche (garrafa de Kerb), hoje apelidada de Gilda. O participante que se propõe a pagar maior número de cervejas leva a garrafa enfeitada que fica no meio do salão. Ivo e Marisa Bencke colecionam algumas vitórias no leilão. “A gente sempre faz grupos de casais e cada um dava um pouco de dinheiro. Nosso combinado era que, a cada ano, uma família ficava com a garrafa quando ganhávamos”, recorda Marisa.
Após o baile, é hora de se preparar para o dia seguinte. No domingo, os moradores acordam cedo, pois às 8h os coordenadores das 11 turmas de Kerb partem de pontos de concentração para visitar todas as residências. Cada grupo cumpre o seu trajeto.
Por onde passam, os festeiros levam alegria, dança, diversão e muito alemão. Essa visitação, da qual só participam homens, é promovida por grupos de até 20 pessoas fantasiadas – os famosos ‘palhaços’. Além disso, eles levam gaita, violão e outros instrumentos musicais. O grupo visita as residências da localidade, cantam, soltam foguetes e são recebidos, geralmente com cuca e linguiça, prato típico da festa.
Um dos pontos de concentração é na Casa Comercial de Jair e Liane Parckert. “Antes das 8h eles chegam aqui e fazem aquele agito. Depois que eles partem eu fecho o comércio e vou para o ginásio, pois faço parte da comissão organizadora”, comenta Parckert.
“Vamos torcer que isso [a pandemia de coronavírus] passe logo e a gente possa se reunir o quanto antes. Isso faz falta, pois a gente faz o máximo para manter a tradição, é motivo de orgulho”, salienta o comerciante.
Recepção
O casal Hilberto e Teoloca Bencke, ambos com 85 anos, sempre aguarda ansiosamente pelo dia em que os grupos de Kerb passam pela residência. Bencke cita que, nesse dia, todos os filhos, além de parentes de Santa Catarina, costumam ir até a residência para acompanhar a festa. A família costuma recepcionar o grupo do Kerb com uma mesa farta. “Além da cuca e da linguiça, não pode faltar ovo vermelho, meerrettich (raiz forte) e rabanete”, salienta Teoloca.
Hilberto recorda de quando o Nach Kerb ainda era realizado na rua. “A gente assava carne no potreiro. Eram espetos feitos de Camboatá. Cada família encomendava sua carne e trazia saladas de casa. Ao meio-dia era aquele monte de gente sentado no potreiro almoçando. Era tudo bem simples.”
Em uma caixinha, ocorre o recolhimento de ofertas, além de venda de números e uma rifa.
Durante o trajeto, todo a pé, os homens vislumbram paisagens raras, como vistas panorâmicas do alto de um morro onde é possível observar parte de Venâncio Aires. Após as visitas, que se encerram por volta das 14h, os grupos são recepcionados no ginásio, onde começa mais uma festa. Após 14 dias, ocorre mais uma etapa da festa, o Nach Kerb, com almoço e reunião dançante. Nesse dia também são realizadas gincanas entre os grupos, como escalar no pau de sebo, entre outras.
Uma família de gaiteiros do Kerb
Na terça-feira, 6, quando a reportagem conversou com moradores das comunidades de Linha Isabel e Linha Esperança, era nítida a saudade da festa e o orgulho de manter uma tradição tão forte e presente na localidade. “O Kerb é a maior alegria para a gente, na noite anterior ao domingo, quando íamos nas casas, a gente quase nem dormia de tão nervoso e ansioso”, pontua Theobaldo Keller, 81 anos.
Ele recorda que, com 11 anos, já participava dos grupos de Kerb. Depois começou a ser o gaiteiro da turma. “Aprendi a tocar com o pai, na verdade olhava ele tocando e aprendi. Depois passei a ir junto com as turmas e era o gaiteiro oficial.”
A tarefa de animar as visitas e tocar gaita foi repassada para os dois filhos de Keller: Celerio, 61 anos, e Elacio, 52 anos. Ambos tocam gaita em turmas de Kerb distintas. “Não somos gaiteiros oficiais, mas a gente já sabe animar um Kerb”, cita Celerio. “Essa semana teria sido de muito ensaio, até uma música alusiva ao Kerb nossa família fez. Quantas e quantas histórias a gente coleciona.”
O Kerb acontece sempre no segundo fim de semana de julho, pico do inverno e muitas vezes Theobaldo lembra que os palhaços saíam cedo e o cenário era o branco da geada. “Quantas vezes as mãos congelavam de tanto frio, a gente nem conseguia tocar a gaita”, recorda Theobaldo.
Assim como na família Keller, o Kerb de Linha Isabel e Esperança passa de geração a geração.
Hoje, Theobaldo não participa mais dos grupos, mas ele e a esposa Milita, 82 anos, sempre aguardam ansiosos pela chegada dos palhaços para animar o dia. Mas o dom musical ainda continua, a gaita está um pouco de lado, é a preferida dos filhos. No entanto, Theobaldo continua tocando gaita de boca.
Fantasias
O Kerb não tem restrição, mas os grupos são formados por homens fantasiados. Quem capricha na fantasia é Régis Parckert, 41 anos. “Minha esposa sempre me ajuda nas produções. Comecei jovem, indo com amigos, desde então não parei mais. Termina um Kerb e a gente já começa a planejar a próxima fantasia.”
Jaime Luis Siebeneichler, 44 anos, é um dos chefes de turma que percorre casas das duas localidades. “Meu roteiro é metade Isabel e metade Esperança. Faça chuva ou faça sol, frio ou calor, a gente está pronto cedinho para levar muita alegria nas casas.”
Siebeneichler começou a trabalhar no Kerb muito cedo. “Meu pai era assador de carne, presidente da comissão e eu comecei a cobrar ingresso, fichas de almoço. Me orgulho disso, assim fomos passando para outros membros da comunidade e temos uma tradição viva até hoje.”
O agricultor também já vai acompanhado do filho Rodrigo, 19 anos. Em diversas famílias, é possível perceber que a tradição vem se mantendo forte e é motivo de orgulho de pessoas de todas as idades.
Eloi Lahr também é um chefe de turma há pelo menos 30 anos. Começou a ir no Kerb com o pai e hoje vai com os filhos. Ele reforça que, no início, visitava 32 famílias, hoje são apenas 20. “A gente percebe que tem cada vez mais gente no interior, maioria pessoas de idade. Então trabalhamos forte para manter viva essa tradição e fazer com que os jovens se interessem cada vez mais.
“O dia do Kerb é uma alegria. Pode ter mil problemas durante o ano, mas aquele dia é especial. A gente faz contagem regressiva, se prepara e dá saudade.”
JAIME LUIS SIEBENEICHLER
Chefe de turma do Kerb
Centenário
• O agricultor Eloi Lahr auxiliou a comunidade, assim como tantos outros, em 2006, quando foram realizadas pesquisas e publicações para comemorar o centenário do Kerb. “A gente conversou com moradores antigos que nos falavam que o Kerb era bem diferente do que é hoje. Cada um doava o que tinha produzido naquele ano e a cavalo os integrantes iam recolhendo alimentos para realizar um almoço comunitário.”
• Além disso, o Kerb tem um aspecto religioso, que segundo a comunidade surgiu com os católicos, mas hoje é celebrado por todas as culturas e religiões.
• Os moradores de Linha Isabel comentam que a festa sempre teve um caráter beneficente. No início. o lucro da festa foi utilizado para construir igrejas e depois as seis escolas das comunidades. “Tinha um leilão de produtos durante a festa e o lucro ia todo para as escolas. Hoje temos só duas funcionando ainda, aí que se percebe nitidamente o êxodo rural”, afirma Lahr. Atualmente, parte do lucro das festividades é destinado para as entidades mantenedoras do cemitério das duas localidades.
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