“Soldado em um campo de guerra, sem ver o inimigo”, relata técnica em Enfermagem sobre a Covid

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A técnica em Enfermagem Luciana Andréia dos Santos, de 38 anos, é uma das tantas profissionais de saúde que está na linha de frente desde o início da pandemia do novo coronavírus. Neste tempo todo, não pôde fazer seu trabalho apenas por duas semanas, justamente o período determinado pelo Hospital São Sebastião Mártir (HSSM) de afastamento para quem positiva para Covid. Ela contraiu a doença em julho do ano passado, mas não teve maiores problemas. “Foi só uma sensação de leve resfriado. Não fiquei com sequelas aparentes, logo após a recuperação, e os exames mostraram que estava tudo bem”, comenta.

Embora tenha sido contaminada, ela nem de perto teve sintomas ou o agravamento de quadro como tantas outras pessoas que passaram pelos seus cuidados. Casada e mãe dois filhos, a profissional diz que a rotina na casa de saúde mudou completamente com a pandemia, inclusive com reflexos para a família, que por determinados períodos precisou ser colocada em segundo plano, já que o trabalho a chamava constantemente. “A gente está atuando em um campo de guerra, como soldado, sem poder ver o inimigo”, compara.

Ela lembra que chegou a duvidar que a situação alcançaria os momentos críticos pelos quais passou. “Na verdade, eu não queria acreditar que esta doença, de fato, chegaria até nós. Até que começaram a dividir o hospital e isolar alguns setores. Iniciamos com a máscara descartável, depois a máscara de mais proteção. Passamos a usar jalecos e aventais, foi trocado o nosso uniforme, veio o macacão, óculos de proteção, face shield, sempre primando por mais proteção ao funcionário”, observa. “E aí começou a chegar devagarinho”, completa.

“Gosto muito de uma frase que diz assim: nossas digitais nunca se apagam das vidas que tocamos. É com este pensamento que seguimos firmes e fortes, especialmente com o apoio das nossas famílias.”

LUCIANA ANDRÉIA DOS SANTOS – Técnica em Enfermagem

Primeiros casos

A técnica em Enfermagem recorda da confirmação do primeiro caso, depois o segundo e, por fim, o momento de pico. “Quando a gente se deu por conta, já estávamos vivendo uma rotina louca. Nos piores momentos, parecia que iríamos perder o controle da situação. Passamos dias difíceis, muito difíceis mesmo, mas a equipe permaneceu sempre unida. Os pacientes não tinham contato com a família, nós éramos a família deles. Daqui a pouco começou a aparecer os conhecidos, os amigos e os familiares”, lamenta.

Em dezembro de 2020, Luciana teve um baque. O pai, Paulo Rogério dos Santos, 60 anos, contraiu o vírus. Vovô, como é conhecido em Venâncio Aires – desde os tempos em que foi atleta do Guarani -, ficou 12 dias internado no hospital. “Quando se está ao lado de alguém da família é ainda pior. Ao mesmo tempo que tu quer cuidar, parece que não vê evolução. Foras dias intermináveis, porque eu tinha que trabalhar e não me livrava da preocupação de que poderia perder alguém que eu amava muito. Muitas vezes, tinha vontade de chorar. Falando eu me emociono, mas tudo passa e passou”, conta, ao agradecer pela recuperação do pai.

Equipes de fibra

De acordo com Luciana Andréia dos Santos, o apoio entre colegas sempre foi muito importante. “Só tenho a agradecer a todas as equipes, desde a copa, cozinha, lavanderia, enfermeiros, recepção, médicos, somente gratidão. Não mediram esforços, eu engasgo para falar, mas é de alegria, uma emoção boa, depois de dias muito difíceis”, diz. A profissional destaca que os problemas ficaram sérios não pela estrutura do HSSM, mas pelo volume de pacientes que precisavam de atendimento. “Era muita gente em estado grave. Teve momentos que chegavam pacientes de vaga zero (quando não há leitos disponíveis). A equipe corria, se esforçava, trabalhava seis, às vezes 12 e até 18 horas”, orgulha-se.

Mesmo sabendo da gravidade dos pacientes que estava atendendo, a técnica em Enfermagem diz que sempre procurava passar tranquilidade a eles. “Dando apoio, muitas vezes dando um abraço, fazendo um vídeo. Eu poderia, na verdade, até escrever um livro. Tem pacientes que conseguiram sair dessa, tem pacientes queridos que a gente perdeu. Tinha dias que a equipe não acreditava que ia conseguir vencer. Antes de começar a trabalhar a gente rezava. Agradecia por estar ali, podendo ajudar estes pacientes, e pedíamos força e proteção, pois estávamos cuidando do amor de alguém”, comenta ela.

Luciana ressalta que os pacientes que se recuperavam, principalmente quando saiam da intubação, agradeciam muito, assim como seus familiares. Para ela, esta era uma satisfação inexplicável, era a materialização do dever cumprido. “A cada conquista, era só alegria. Como falar depois de ser submetido a uma traqueostomia, de sorrir, de entender, de se reabilitar. Caminhar, comer sozinho. Muitos pacientes e familiares eu tenho contato até hoje pelo WhatsApp. Estão sempre mandando apoio e perguntando como estou. Perdi bastante gente e isto é doloroso, mas também ganhei muitos amigos novos”, relata.

A profissional de saúde agradece a Deus pela chegada e avanço da vacina. “Na minha opinião, está salvando muitas vidas. Espero que logo, logo este vírus vá embora. Apesar de tudo, das tristezas, dos momentos difíceis, só tenho a agradecer aos meus colegas de hospital, que sempre foram incansáveis. Quando um não estava bem, o outro abraçava. Que tudo isso passe logo e a gente possa ter logo ali uma vida normal”, conclui.

Impressões de repórter

Não foi fácil voltar ao Hospital São Sebastião Mártir, especialmente porque o diretor técnico da instituição, Guilherme Fürst Neto, fez questão de me levar até um dos quartos e à UTI onde fiquei internado, por 12 dias, por Covid. As pernas bambearam, em um misto de nervosismo e emoção. Poderia estar entre as vítimas, já que o meu quadro foi agravado por uma infecção bacteriana secundária, mas estou tendo a oportunidade de constatar a vitória sobre a pandemia. O hospital está diferente daquele 3 de março, quando dei alta. Muitas divisórias foram retiradas e os setores de isolamento foram reduzidos. Não há como não notar o sentimento de alívio de gestores e profissionais de saúde. Afinal, embora o coronavírus ainda seja uma realidade e, provavelmente, fique entre nós, a estrutura hospitalar nem de longe lembra a loucura de pessoas para lá e para cá, com pacientes sendo transferidos e semblantes de incredulidade diante de tantas perdas, que eram diárias.

Há muito o que vencer, ainda, mas o momento já é de celebração. Os profissionais de saúde têm o direito de comemorar os seus feitos, pois como eu, muita gente ainda está aí graças a eles. O doutor Guilherme, por exemplo, vem me dando várias boas informações nos últimos tempos, ao contrário do que tinha que fazer há alguns meses, quando entrava no meu quarto para dizer que o resultado da tomografia não estava legal. A Luciana, que também é personagem desta reportagem, foi quem me ajudou a comer, quando eu não tinha mais forças. Isso sem contar dezenas de outras pessoas que tiveram participação na minha recuperação. Estava tão debilitado que não me dei conta de que, do quarto no qual fiquei, era possível ter uma visão sensacional da Igreja Matriz. Voltei lá e fiz o que não tinha feito, agora recuperado, já com 10 dos 15 quilos que perdi de volta. Tudo indica que o pior já passou, mas os cuidados seguem sendo necessários. Que Deus nos permita voltar à normalidade o quanto antes, e que as vítimas da Covid-19, assim como estes heróis da saúde, jamais sejam esquecidos.

Carlos Dickow – Editor assistente da Folha do Mate



Carlos Dickow

Carlos Dickow

Jornalista, atua na redação integrada da Folha do Mate e Terra FM.

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