Uma experiência apavorante recontando a história cruel do regime soviético na Lituânia e onde os participantes se transformam em protagonistas. Esta é a proposta da produção teatral 1984: Uma Peça de Sobrevivência aberta ao público embora restrita a grupos organizados. Nesta semana juntamente com colegas de trabalho vivi de perto -durante algumas horas- a realidade da vida de prisioneiros durante a União Soviética.
A 30km de Vilnius, no meio de uma floresta encontra-se uma das sete casamatas construídas pelos russos em diferentes países que faziam parte da União Soviética. Eram “bunkers” estrategicamente construídos e que serviriam de refúgio em caso de algum ataque nuclear. Hoje em dia o local continua praticamente tal e qual como nos anos 70 e 80 no auge do regime. Antes de sermos levados à casamata somos recepcionados por dois
guardas vestidos a rigor, em uniforme verde com as lapelas carregadas de insígnias comunistas. A peça é um retrato tão realista da vida durante o regime soviético a ponto de todos nós sermos convidados a assinar na entrada do local uma renúncia, que inclui a cláusula: “Em caso de desobediência participantes podem receber punições psicológicas ou físicas.” Logo em seguida todos os participantes guardaram seus pertences pessoais, inclusive celulares, para vestir casacões escuros e que antigamente eram uniformes dos presos.
Enfileirados numa linha reta branca, nosso grupo de 16 pessoas esperava apreensivamente, sem saber o que estava por vir. Não tivemos que aguardar muito para que o silêncio fosse quebrado. Uma voz forte e severa ecoava pelo corredor. Eram comandos na língua russa. Durante o regime a língua lituana era proibida e nas escolas alunos eram forçados a aprender russo. “Estamos em 1984 e você estásob o controle das forças armadas da URSS” ele gritou bruscamente. Ao som ruidoso do hino nacional da URSS saudamos a bandeira vermelha enfeitada com o simbólico martelo e foice. E assim entramos na vida de um cidadão capturado pelo Estado totalitário.
Na floresta ao fundo, a poucos metros de onde estávamos uma pequena porta escondida entre árvores e gramados nos mostrava a entrada do bunker. De fora jamais conseguiria imaginar os longos corredores, salas, e celas enterradas sob o gramado. O local é gigantesco e se esparrama por uma extensão de 2.500 metros quadrados. Esta casamata faz parte da história sombria vivida pelos lituanos pois abrigava as tropas soviéticas que invadiram a torre da televisão de Vilnius em 1991, quando treze lituanos foram mortos na tentativa de libertar o país dos grilhões do comunismo.
À medida que descemos em marcha para entrar nesta selva de concreto escura e úmida no subsolo fomos aos poucos esquecendo 2019 e nos transformamos em cidadão comunista de 1984. Entre uma sala e outra, oficiais uniformizados nos observavam com cães alsacianos latindo sem parar, fazendo com que o clima de pavor e subordinação permanecesse real e constante.
Durante duas horas estamos em constante movimento, marchando, correndo, subindo e descendo escadarias internas e sendo empurrados para outros corredores do bunker. A série de atividades tinha o objetivo de nos enfraquecer, esgotar nossa resistência e provar que somos “camaradas” do Estado. Na primeira sala que paramos, local reservado para reuniões do alto escalão do partido, nos ajoelhamos para escutar o comandante nos explicar os benefícios de ser um cidadão na URSS.
“Levante-se em linha reta e contra a parede” ordenou um oficial KGB. Somos interrogados num quarto escuro, iluminado por um pequeno abajur, repetindo frases e slogans do regime, como num processo de lavagem cerebral. E aqueles que discordassem eram levados para fora. Durante o regime, traidores por não concordarem com a legenda do partido eram executados na floresta. Na peça, o som abafado de tiros à distância simbolizava a morte do acusado.
Mais adiante em outra sala, maior e iluminada, aprendemos a usar máscaras de gás, em caso de ataque nuclear. Na parte mais enterrada da casamata, detritos de metal e borracha foram espalhados pelo chão com o assoalho recortado. “Todo mundo na União Soviética tem trabalho e todos devem trabalhar”, gritava o comandante. “Você quer trabalhar?” perguntava de maneira retórica. E assim todos nós limpamos toda a sujeira do local, sem reclamar. Visitamos consultório médico e outros salões. Nosso calvário aos poucos chegava ao fim, longe dos pesadelos de 1984.
O último ato da peça é a visitação a uma mercearia simulada. Poucos produtos, entre barras de sabão, leite condensado e verduras em conservas preenchem as prateleiras
vazias. O artigo mais cobiçado durante o regime soviético era o rolo de papel higiênico. Somente os privilegiados conseguiam comprar papel. A grande maioria da população usava as páginas das revistas comunistas que eram distribuídas pelo regime gratuitamente. No final da experiência recebemos um certificado de participação, acompanhado de uma dose de vodka antes de as portas da liberdade se abrirem novamente.