Ich Spreche Kein Deutsch

Logo que cheguei em Venâncio, em 1976, comecei a trabalhar no ambulatório do Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Assim como outros médicos da cidade, ia lá uma vez por semana para atender consultas, a preços reduzidos, para adultos, crianças, grávidas, enfim, o que viesse. Os clientes chegavam, perguntavam qual o médico do dia, aí viam aquele novinho com cara de guri (apesar do bigode) e pensavam: “Esse não deve saber grande coisa”. E iam ao consultório de um dos médicos mais “veteranos”, mesmo tendo que pagar consulta cheia.

E ainda havia uma dificuldade adicional. Um dia me chega um cliente e logo vai fazendo muitas queixas, tudo falado em alemão! Disse-lhe: “Desculpe, eu não falo alemão…” Aí, o homem me olhou com um ar de superioridade e lascou em português com sotaque: “Então o doutor não terminou bem o estudo!”

Se ainda hoje há algumas pessoas, nas profundezas da colônia, que se comunicam só em alemão, imaginem como era há 50 anos. Qualquer estabelecimento na cidade precisava de funcionários que falassem alemão. Para as secretárias de médicos, um requisito obrigatório. Era comum fazer uma consulta inteira com a presença da secretária como tradutora e intérprete. E ainda havia as palavras estranhas que designavam doenças ou partes do corpo cuja tradução para o português não existia. Nesse ponto, eu tinha uma vantagem. Me criei atrás do balcão da venda do meu pai e da minha avó lá no Taquari Mirim, município de Rio Pardo (hoje, Passo do Sobrado) ouvindo aquelas expressões intraduzíveis. Nós, os Ferreiras, estávamos cercados por Werlang, Eisermann, Becker, Sehn, Kist, Kroth, Konzen, Baierle, e eu ouvia aquele misto de português com alemão, um “portumão”, todos os dias. Na venda, havia uma prateleira de medicamentos populares e ali perto eu escutava que “deixar sair água” era fazer xixi; erisipela era “roos”, vesícula era “gal”, dor era “pain”, útero era “mái (mãe) do corpo”.

Certa vez, me apareceu de madrugada um pai trazendo sua filha adolescente para consultar. Ambos mal falavam umas pouquíssimas palavras em português. Perguntei qual era o problema, ele apontou para a filha e disse: “Fumeta de noite!” Não entendi, pedi para repetir. E o pai: “De dia, bom. De noite, fumeta.” Ora, os mais antigos hão de saber que a palavra “fumeta”, uma espécie de gíria da época, não significava boa coisa. Será que aquela mocinha desobedecia, se rebelava, fugia de casa, saía para farrear, era mesmo “fumeta”? Aí o pai começou a fazer uns gestos como se estivesse botando alguma coisa para fora da boca. Então eu entendi: “fumeta” era “vomita”, ela vomita toda noite! Pronto. Já não me lembro mais da causa dos vômitos, mas doença grave não era, felizmente.

Falar em alemão pelas colônias ainda é um costume até hoje. Não se vai muito longe com o dialeto daqui, mas é uma tradição cultural que merece ser mantida desde que não prejudique a compreensão melhor da vida cotidiana.

DESTAQUES

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