No dia 1º de novembro de 2019, o relojoeiro Jorge Musa vai completar 21 anos de sobriedade. Foi neste mesmo dia, há mais de duas décadas, que a mãe dele, Isolde Musa, hoje com 68 anos, avisou ao filho que iria acender a última vela para pedir a Deus que o livrasse das drogas e do álcool. Após mais uma noite de bebedeira e muita cocaína, na companhia de prostitutas, ele chegou em casa com “os olhos esbugalhados, achando que ia ter um treco” e notou que a vela estava quase consumida pelo fogo. “Se não tivesse pedido ajuda naquela oportunidade, estaria em uma gaveta do Cemitério Municipal”, acredita.
Foi até o quarto da mãe e pediu socorro. Isolde orientou que ficasse tranquilo, pois já tinha as malas prontas e tudo que era preciso para encaminhar a internação do filho em uma clínica de reabilitação. O local escolhido para o início da recuperação ficava em Lajeado, cidade distante 40 quilômetros, mais ou menos, de Venâncio Aires, onde Musa morava com a família. Lá, ele passou pelo período de desintoxicação, enfrentou a abstinência e conheceu o Evangelho. “Eu fui liberto pela palavra”, sustenta o relojoeiro.
Hoje, aos 43 anos, Musa tem certeza de que só teve forças para superar os obstáculos ao se entregar a Deus. A rotina na clínica envolvia oração, reflexão, trabalhos manuais e boa alimentação. Ele não estava acostumado com isso, mas se viu obrigado a cumprir o que estava previsto ‘no regulamento’ para deixar de vez o submundo das drogas. Ao mesmo tempo, passou a adquirir conhecimento sobre o trabalho que era realizado e, conforme sustenta, descobriu que “Deus tinha um propósito para a minha vida”. Após dias e noites, durante anos, convivendo em bocas de fumo e casas noturnas, com bebida, mulheres e entorpecentes, se viu recuperado e disposto a transformar vidas de pessoas que ainda estão em sofrimento.
Tanto tempo depois, além de continuar trabalhando na relojoaria, Musa é coordenador do Projeto em Defesa da Vida, desenvolvido na ONG Planeta Vivo, na Capital Nacional do Chimarrão, e que já apresenta uma série de bons resultados. A líder da ONG é a mãe dele, Isolde, que deu início aos trabalhos em uma pequena área do bairro Bela Vista para ajudar catadores de lixo e contribuir com a preservação do meio ambiente. “Já estamos muito adiante do que imaginávamos e, agora, há uma mobilização para que tenhamos aqui um centro de recuperação de dependentes químicos”, diz a responsável.
ONG E PROJETO
Criada por Isolde e outros voluntários em 2005, com a finalidade de desenvolver projetos sociais e ambientais, a Planeta Vivo permaneceu com este propósito por uma década. No entanto, os líderes da ONG sempre tiveram muito claro que as pessoas que eram atendidas no local apresentavam, em suas trajetórias, problemas com álcool e drogas. “Na raiz, era sempre isso. Bastava conversar com pais e mães de família para diagnosticar a desestruturação por conta dos vícios. Também são muitos os casos de violência”, revela.
As experiências levaram a Planeta Vivo a ampliar suas ações, em 2015, com o Projeto em Defesa da Vida. Em um salão de costaneiras, com cerca de 70 metros quadrados, todos os sábados à tarde se reúnem pessoas que têm problemas com álcool, drogas ou sofrem de depressão e outras doenças, para rezar e pedir forças na caminhada em busca da ‘cura’. Cada participante é um exemplo de superação e tem uma história inacreditável para compartilhar. Juntos, perseguem o fechamento das feridas abertas ao longo dos anos e se preparam para o dia seguinte, sempre contando com a presença de familiares. “A família também precisa de restauração. Um dependente faz um estrago descomunal no ambiente familiar”, comenta Musa.
“Hoje eu tenho muita vergonha disso, mas conto mesmo assim. Como eu tinha muito medo de ir para a cadeia, eu não furtava na rua para sustentar o vício. Pegava as coisas de dentro de casa, pois sabia que meu pai e minha mãe não iam me denunciar para a Polícia.”
JORGE MUSA – Ex-dependente químico e coordenador do Projeto em Defesa da Vida
Clair conseguiu recuperar o sorriso
Quem vê Clair Schmitz, de 53 anos, atendendo aos telefonemas de clientes e acertando os detalhes de negociações da empresa da qual é proprietária, não consegue imaginar que, por um bom tempo, aquela mulher sorridente, de trato fácil e simpatia singular flertou com a morte. “Hoje dá para ver que estou bem, né? Mas cada dia é uma luta”, comenta a empresária, que trabalha com a venda de embalagens.
Na adolescência, foi bicampeã estadual de vôlei e participava de desfiles de moda. Como gastava muita energia, comia bastante, e foi ‘traída’ por achar que estava sempre acima do peso. Não estava, mas acabou usando medicação para emagrecer. “Todo mundo me achava bonita, só eu que não. Foi começar a tomar o remédio e eu notei que estava perdendo o equilíbrio aos poucos. Tomei oito anos sem parar”, lembra.
Aos 18 anos, o medicamento inibidor de apetite já formava ‘combinação’ com o álcool. Anoréxica e bulímica, chegou aos 44 quilos e quase não conseguia levantar da cama. Conheceu a depressão e tentou o suicídio. “Sobrevivi, mas mesmo assim não consegui colocar a cabeça no lugar. Saí de Venâncio Aires e fui morar em Lajeado, onde abri uma empresa de serigrafia, mas conheci uma pessoa e passei a fumar maconha todos os dias. Trabalhava como louca e consumia a droga o tempo todo”, relata.
RECAÍDA
Clair tinha a impressão de que estava conseguindo “administrar bem a maconha”, entretanto tudo mudou quando o seu relacionamento chegou ao fim. “Estava há muito tempo sem beber, porém no dia em que terminamos, comprei três cervejas e tomei. Depois, fui para um bar e não faço ideia de quantas mais consumi. Em relação ao álcool, foi uma recaída drástica”, analisa. Separada, seguiu com a bebida e a empresa, que tempos depois foi atingida por uma enchente. “O prejuízo foi muito grande e a depressão voltou. Descontei tudo na cerveja e, o pior: conheci a cocaína, a pior de todas as drogas que usei”, lamenta.
Sabendo da difícil situação da filha, o pai de Clair, Norberto, a ‘resgatou’. A empresária voltou para Venâncio Aires aos 33 anos, no entanto não se distanciou das drogas e do álcool. Foram dias bons e ruins até 14 de abril de 2017, quando o pai dela faleceu. “Foi o pior dia da minha vida. Depois que ele morreu, passei três semanas em uma chácara da nossa família bebendo e usando drogas. Meu pai sempre acreditou que podia me livrar do vício e, naquele momento, passei a não ter mais ele ao meu lado”, argumenta.
Quase duas décadas depois do retorno para a Capital Nacional do Chimarrão e de muitas noites em claro, por conta do vício, Clair parece ter encontrado o equilíbrio. Hoje, leva o seu testemunho às pessoas que participam dos encontros do Projeto em Defesa da Vida. “Consegui virar o jogo quando me apeguei com Deus. Estou há 18 meses ‘limpa’ e tenho muito orgulho disso. Tenho comentado com amigos e familiares que estou aprendendo a viver. Continuo trabalhando, mas reduzi um pouco o ritmo e busquei mais qualidade de vida. Moro em uma chácara no interior, escuto os pássaros e me sinto feliz”, declara.
“Não ria de uma pessoa que está na sarjeta, pois um dia você pode estar lá, caído e sem ter forças para levantar. Faça ao contrário: seja aquele ser humano que ajudou um irmão a superar um obstáculo que parecia intransponível.”
CLAIR SCHMITZ – Ex-usuária de drogas
Após 38 internações e anos morando na rua, a comemoração dos 80 quilos
Edson Couto Rocha, de 47 anos, há quatro meses é uma espécie de zelador da ONG Planeta Vivo. Está instalado em um quarto improvisado no local e, no momento, é o responsável por estruturar a área onde ficam a churrasqueira, o forno e o fogão a lenha da ONG. Ele jura que nunca trabalhou como pedreiro, algo difícil de acreditar para quem confere os pisos e azulejos milimetricamente colocados. “Nem eu acredito, mas olha só, está ficando bom, de verdade. Estou muito feliz aqui”, orgulha-se.
Rocha decidiu ficar em Venâncio Aires para evitar uma nova recaída. Usuário de drogas desde os 13 anos, já passou por tudo na vida. Ele chegou a ficar quase um ano sem usar entorpecentes, contudo voltou à triste realidade quando perdeu a mãe, vítima de câncer, em 2017. “Enterrei ela e fui para a rua, em busca de droga”, lamenta. Depois da 38ª internação, deixou a clínica com apenas 47 quilos, mas disposto a se recuperar. “Hoje já estou pesando quase 80 quilos. Desta vez preciso me livrar do vício”, diz.
A história dele é um tanto incomum, a julgar pelo fato de que não bebia. “Cheguei a provar cerveja e uísque, mas nunca foi a minha praia”, comenta. Rocha era usuário de drogas injetáveis, entre elas a cocaína. Trabalhava como soldador na empresa de um tio, em Taquari, de onde é natural, e tinha dinheiro para bancar o vício. Mas, com o passar do tempo, não conseguia mais ‘achar’ as veias para a injeção das drogas. Foi quando conheceu o crack, entorpecente que completou a devastação de sua vida. “Três meses depois que eu comecei a usar, estava morando na rua, completamente fora da razão”, recorda.
A decadência o levou a decidir por deixar Taquari. Solteiro e sem filhos, foi parar nas ruas de Porto Alegre. Juntava papelão, vendia e revertia todo o dinheiro do trabalho em crack. “Praticamente não comia. Usava a droga por cinco dias, normalmente, até que desmaiava e chegava a ficar dois dias apagado. Quando acordava, o ciclo se repetia”, revela. O tio de Taquari mandava um valor todos os meses para ajudar na subsistência, mas Rocha só pensava no crack. “Chegou um ponto que eu tinha que ter sempre, não podia faltar. Eu dava um jeito, porque sabia que sem o entorpecente eu poderia me matar”, conta.
REVIRAVOLTA
Foi com a ajuda do tio, de Taquari, que Rocha conseguiu dar início ao processo de enfrentamento do vício. Ao ter notícia de que o familiar continuava na rua, em Venâncio Aires – para onde veio em 2014, quando descobriu que a mãe estava com câncer -, o familiar pediu apoio da ONG para salvar o dependente químico. “Minha mãe veio morar com uma tia minha em Venâncio, pois o tratamento era em Santa Cruz do Sul e ficava mais perto. Cheguei a morar com elas, mas continuava usando o crack. Depois que ela morreu e eu voltei para a rua, meu tio entrou em contato com o Jorge Musa, coordenador do Projeto em Defesa da Vida, e acertaram que eu seria internado para desintoxicação, para depois ficar na ONG. Deu tudo certo e, hoje, a mesma intensidade que eu tinha para me drogar, tenho junto a Deus”, afirma.
Notadamente sóbrio e lúcido, Rocha já faz planos para o futuro: quer ser um dos pilares do centro de recuperação de dependentes químicos que a ONG Planeta Vivo pretende sediar. “Se eu não morri depois de tudo que passei, é porque Deus tem um propósito para a minha vida. Minha luta é manter a sobriedade e, quando estiver mais confiante, quero ajudar outros usuários a deixarem o fundo do poço. Já estive lá, sei como é e agradeço às pessoas que não desistiram de mim. Agora, sei que vou vencer a batalha”, conclui.
“Não tenho muito do que me orgulhar na vida até aqui. Se tivesse que escolher, diria que me orgulho de nunca ter roubado para sustentar o vício. Se puxarem a minha ficha na Polícia, não vão acreditar que passei por tudo isso, pois é completamente limpa.”
EDSON COUTO ROCHA – Ex-usuário de drogas
Juntos, Camila e Jéferson superaram o pânico e a cocaína
São apenas 30 anos vividos, mas Camila Magioni Schuler Severo já tem uma incrível história de vida, que faz questão de compartilhar. Dessa forma, acredita que pode ajudar outras pessoas a saírem de situações embaraçosas, a exemplo do que aconteceu com ela. Há pouco mais de três anos, começou a ter sensações estranhas, não conseguia ficar em ambientes fechados e sentia muita dor de cabeça, falta de ar e aperto no peito, entre outros sintomas. Até então levando uma vida “super tranquila”, se assustou com as dores e angústias. “A todo o momento, achava que ia ter um ataque cardíaco”, relata.
Demorou um pouco até que ela admitisse que precisava de ajuda, mas chegou o momento em que a busca por apoio se tornou indispensável. Foi diagnosticada com síndrome do pânico, teve sua vida social, profissional e acadêmica afetada. “Era uma confusão de sentimentos. Como eu nunca tive qualquer problema, não queria admitir que estava doente. Quando busquei ajuda, estava no fundo do poço”, relembra. A partir do tratamento e busca por informações a respeito da doença, passou a ficar um pouco mais tranquila, mas não conseguiu concluir a faculdade de Direito. Trancou o curso após oito semestres.
Em meio ao tratamento e esforço para se livrar do pânico, Camila conheceu Jéferson Daniel Severo, hoje com 30 anos, por quem se apaixonou. “Eu gostava muito dele, mas precisei ter muita força para manter a relação. O Jé estava em um momento horrível da vida dele, tinha sérios problemas em virtude do uso de cocaína”, conta. Os dois, atualmente, são casados e têm uma filha, de um ano e quatro meses – a família se completa com outra menina, de 9 anos, fruto de outro relacionamento de Camila.
Severo afirma que, provavelmente, não estaria tão bem se não tivesse encontrado a companheira. “Estávamos juntos há um ano, quando ela disse que ia desistir de mim. Eu resistia, seguia usando drogas, estava acabando com a minha vida. Mas, graças a Deus, tive um momento de lucidez e fui para a internação”, ressalta. Até hoje, ele não sabe como, em 35 dias, se viu livre do entorpecente. “Eu fumava e bebida desde os 11 anos. A cocaína usei a primeira vez aos 13 anos. Foi tudo muito precoce pra mim”, conta.
MUDANÇA
Com o tempo, Camila controlou o pânico e o marido se afastou definitivamente das drogas e do álcool. Juntos, passaram a frequentar as reuniões do Projeto em Defesa da Vida, da ONG Planeta Vivo. Ela já é coordenadora do Grupo Familiar e conta com o apoio do companheiro na realização das atividades. “Me ajudo ao ajudar os outros, e o mesmo serve para o Jé. Compartilho momentos tristes pelos quais passei porque muitas pessoas sofrem sozinhas, não querem pedir ajuda. Quanto mais cedo admitirmos que precisamos de apoio, antes teremos nossa restauração. Ouvindo outras pessoas e trocando informações, podemos atacar os traumas, evitar os gatilhos”, complementa Camila.
“Cheguei a ir para o hospital três dias seguidos. Estava extremamente nervosa, com medo de ser rotulada como louca. Pensei que ia morrer, mas consegui enfrentar o problema e chegar a um equilíbrio. Hoje, tenho uma família estruturada e cheia de amor.”
CAMILA MAGIONI SCHULER SEVERO – Coordenadora do Grupo Familiar do Projeto em Defesa da Vida
CONTATOS
Quem quiser saber mais sobre as atividades da ONG Planeta Vivo e do Projeto em Defesa da Vida pode entrar em contato pelo telefone (51) 98189-4589, com Jorge Musa.