Talvez essa seja uma daquelas coisas que, de tão ‘inerentes’ à cidade, os moradores de Venâncio Aires já nem percebem que, sob seus pés, existem galerias pluviais que cortam a parte urbana de sul a norte. Sangas canalizadas, que décadas atrás eram apenas córregos com água limpa, mas hoje também levam a poluição.
São cerca de 10 quilômetros de galerias construídas, que foram fechadas ao longo dos anos conforme o avanço do perímetro urbano no entorno desses cursos hídricos. Entre as principais, algumas são bem conhecidas, como a do Cambará. Mas tem uma galeria que talvez pouca gente sabe que existe e a maior parte dela está escondida sob os canteiros da avenida Ruperti Filho.
Em 1965, quando Hellyete Becker casou com Otalcino Ortiz, o casal decidiu morar na parte mais alta da cidade, quando a Ruperti Filho ainda não era avenida, apenas uma rua que rendia muita poeira. Se há 56 anos o local abrigava os Ortiz e mais uma ‘meia dúzia’, nos anos seguintes o trecho recebeu novos moradores e o movimento aumentou muito.
Essas mudanças acarretaram em alterações na via. Hellyete, hoje com 78 anos, lembra que foi na metade da década de 1970 que começaram a mexer na estrutura da rua. “Cada morador teve que ceder dois metros do seu pátio para alargar a rua, até porque fizeram aquela baita sanga no meio. Isso era tão fundo e era um perigo para as crianças.”
A sanga mencionada pela aposentada é a galeria construída para a rede de água e esgoto pluvial, que começa na quadra da Osvaldo Aranha com a Emiliano de Macedo e desce até a rua Reynaldo Schmaedecke, quando é desviada para encontrar a do Cambará. “Em cima dela que construíram os canteiros. No início, cada morador cuidava do canteiro na sua frente, mas depois a Prefeitura assumiu, plantou a grama e as plantas”, explica Hellyete. O trecho canalizado da chamada de sanga da Mangueira tem 2,19 quilômetros.
Banhos em água limpa
A sanga do Cambará começa no bairro Gressler, próximo à escola Wolfram Metzler, percorre as ruas Armando Ruschel, Emilio Michel, Silveira Martins, corta a Jacob Becker próximo ao estádio Edmundo Feix, e segue fechada, até o antigo curtume, na rua Sete de Setembro. São cerca de três quilômetros canalizados, fechados nos últimos 30 anos.
Mas, antes disso, a sanga não passava de um córrego e levava água limpa até a várzea do Castelhano. Tanto, que Gelsy Presser, 72 anos, se banhou muitas vezes nela. A aposentada, que mora a vida toda na mesma casa, na rua Assis Brasil, conta que a sanguinha era local de diversão para ela e os amigos, netos de Frederico Reinaldo Closs, que fundou o antigo curtume e dá nome à Escola Municipal de Educação Infantil (Emei) do bairro União. “A sanga era estreitinha, mas quando dava enxurrada, descia muita água. A mãe contava que debaixo do assoalho dos primeiros galpões onde os Closs curtiam couro, dava para ver a água correndo pelas frestas.”
Saiba mais
• 10 sangas cortam o perímetro urbano de Venâncio Aires.
• 9 delas seguem até o arroio Castelhano. A sanga da Areia, que passa próximo ao Parque do Chimarrão, desemboca no arroio Taquari Mirim.
• As principais sangas canalizadas são a do Cambará (3,01 km), da Mangueira (2,19 km), do Arrozal (2,89 km) e da Divisa (1,33 km).
“Somos vítimas de uma sanga”
Quem mora na parte baixa da cidade ou costuma passar próximo ao antigo curtume, sabe que é na rua Sete de Setembro que termina a canalização da sanga do Cambará. A partir dali, o canal é aberto e segue assim até o Castelhano.
Com cerca de cinco metros da largura e quatro de profundidade, olhando assim é difícil imaginar que, há décadas, esse trecho não passava de um córrego. “Eu, que sempre tive perna curta desde criança, conseguia ir de um lado para outro com um pulo”, relata Rejane Maria Clunk, 58 anos. A aposentada mora desde que nasceu do lado do canal, mas, quando o pai Pedro comprou dois terrenos na região, há mais de 60 anos, era só uma “sanguinha”, mais afastada do leito atual, com água limpa e que nas beiradas dava para cultivar agrião.
“Quem olha acha que a gente mora dentro da sanga. Mas não fomos nós que construímos perto, ela invadiu nosso terreno. Eu, meu irmão e os vizinhos somos vítimas de uma sanga”, desabafa.
A situação causa desagrado há anos e, em 2015, Rejane revela que fez um pedido na Prefeitura para buscar uma solução. “Meu terreno tem 12 metros, mas a sanga já avançou um monte e eu continuo pagando IPTU pela metragem original do terreno. Aí me dizem: ‘metade da sanga é tua’. Mas o que vou fazer com ela, se nem para piscina serve?”, dispara.
Problemas
Conforme Rejane, o problema se arrasta desde a década de 1980, quando começou a canalização e consequente alargamento da sanga com a construção de muros. Mas tudo piorou há cerca de 20 anos, quando uma forte enxurrada destruiu a estrutura e literalmente a água levou embora parte do terreno da aposentada e do irmão, que mora na casa dos fundos. Desde então, ela espera por uma solução. “Muita gente já veio aqui, de administrações diferentes, tirou foto, disse que iriam ver, mas até agora nada. A gente desanima com tanta promessa.”
Para ela, o ideal seria reforçar as laterais da canalização, já que as pedras estão desgastadas ou caíram, e cobrir a sanga. Isso, segundo Rejane, traria mais segurança e atenuaria o mau cheiro. “No verão, para almoçar, tem que fechar a casa. Se não, fica insuportável.”
A chuva que caiu na manhã da última quinta-feira, 24, já foi suficiente para deixar Rejane Clunk de orelha em pé. “Aquela chuva rápida deu meia caixa. Aqui é assim, toda vez que os sapos começam a coaxar mais alto, anunciando chuva, a gente já se prepara. É levantar as coisas e rezar.”
A aposentada diz que, ao mesmo tempo que espera por uma solução, acredita que ela não virá tão logo. “Eu só queria dormir tranquila numa noite de chuva. Mas não tenho esperança de eu, viva, ver isso aqui resolvido. Já me disseram que é área invadida. Mas não fomos nós que invadimos. Estamos aqui há 60 anos, foi a sanga que foram alargando e construindo dentro do nosso terreno.”
Legislação
• Resolver o problema da Rejane e outros moradores que moram há anos próximo à sanga do Cambará não é simples. Isso porque existe uma insegurança jurídica sobre assunto.
• Atualmente, o Código Florestal determina que os limites das áreas de preservação permanentes (APPs) às margens dos cursos d’água variam entre 30 metros e 500 metros, dependendo da largura de cada um, contados a partir do leito maior.
• Mas essa legislação é de 2012 e não abrange o que se estabeleceu há décadas. “Para quem vai construir, sempre é analisado caso a caso, mas existe uma insegurança jurídica sobre o que pode ou não. O Código Florestal determina uma coisa, mas temos sangas fechadas, com construções antigas”, destaca o arquiteto da Secretaria de Planejamento e Urbanismo, Alexandre Silveira.
• Para os pontos já canalizados, Silveira explica que o Plano Diretor de Venâncio Aires estipula que, em ambos os lados do canal, é preciso deixar 2,5 metros sem edificações. O espaço fica reservado para eventuais manutenções.
O que diz o Meio Ambiente
Segundo o biólogo da Secretaria de Meio Ambiente de Venâncio, Nilmar Melo, para cursos hídricos naturais tubulados, sempre se seguiu a área não edificável da Lei de Parcelamento de Solo, que definia como 15 metros a faixa não edificável. “Na área urbana, por exemplo, não temos a questão de área consolidada, como temos já na área rural. Sobre tubular cursos hídricos naturais, sempre será necessário a elaboração de estudos técnicos visando demonstrar a real necessidade. Os casos de permissão para intervenção em APP só seriam possíveis em casos específicos e mediante decreto de utilidade pública”, explica Melo.
Ainda conforme o biólogo, mesmo que os trechos onde hoje o curso hídrico encontra-se a céu aberto, caso sejam tubulados futuramente, ainda assim deverá ser respeitada a faixa de 30 metros da APP, já que a tubulação do curso hídrico não descaracteriza a área de preservação permanente.