O mundo estava em ebulição em agosto de 1969. Foi o mês dos infames assassinatos de Charles Manson e sua gangue, bem como do legendário Festival de Woodstock. No dia oito daquele mês e ano, menos de 30 dias após o homem – pretensamente – chegar à lua, os Beatles atravessavam a rua para protagonizar uma das fotos mais célebres da história da música. Não numa via urbana qualquer: era na famosa Abbey Road, em Londres, rua que batiza um estúdio de gravação muito utilizado pelos Fab Four e daria nome, ainda, ao penúltimo disco da carreira do grupo, lançado cerca de 50 dias mais tarde. A foto, afinal, era pra ilustrar a capa da bolacha.
Tudo muito legal, mas… E se numa viagem de agosto com o caos a gosto – e em doses cavalares –, num rendez-vous no espaço-tempo como o conhecemos, o quarteto de Liverpool, em busca da fotografia perfeita para sua música irretocável, trocasse a terra do relógio Big Ben pela da banca Big Bem? O Tâmisa pelo Taquari? A rainha pelo chimarrão? Eu juro a você: não sou Luci nem estou no céu com diamantes, mas sorrir é preciso – e gratuito.
Em tal cenário, é bem possível que o conceito da imagem tivesse de ser modificado. Em Sebastianfield, há um bom número de faixas de segurança para que os Beatles pudessem atravessar a rua, mas também razoável número de motoristas que os ignoraria. A educação inglesa, mesmo para sujeitos considerados transgressores em certos costumes em seu tempo – e alguns ainda seriam nos dias de hoje –, os impediria de realizar o contra-ataque, de ímpeto sanguinário, tão comum entre os pedestres locais: atravessar a rua sem olhar para os lados e o carro mais próximo que se vire para parar, desviar, se desmaterializar ou o que mais estiver ao alcance para evitar o choque.
Alguém poderia sugerir fotografar os Beatles em local mais apropriado, despido de conflitos de espaço entre veículos automotores e caminhantes. Que tal um local construído justamente com tal finalidade? Sim: poderíamos levar John, Paul, George & Ringo ao caminhódromo do Acesso Leopoldina.
Mas também lá, em qualquer que fosse o ponto, haveria claro empecilho: a sessão de fotos se tornaria interminável. O memorável caminhar de passos sincronizados viraria missão impossível. A todo o momento, o quarteto teria de se esquivar de grupos liderados por situacionistas ou oposicionistas, com seus celulares empunhados, em busca de apresentar suas versões sobre a conclusão ou não do espaço – devidamente apoiados por exército profissionalizado de sentinelas virtuais, invariavelmente em regime de plantão do outro lado da tela.
A situação seria especialmente dramática para Paul McCartney. Cabia ao baixista canhoto aparecer na imagem com um cigarro na mão direita e descalço. Diz-se que para alimentar, de propósito, os boatos de que teria morrido em acidente de trânsito no fim de 1966 e substituído por um sósia. Alimentar rumores? De propósito? Justo aqui, no belo recanto do Brasil, em que não seria surpreendente alguém lhe dizer que fulano foi visto num supermercado quando, na verdade, o dito cujo estava rumo a Roma para ver o Papa? Um risco de suicídio profissional do qual seria incapaz até este canto de jornal com tal fábula publicada.
Ainda seria possível pensar noutras alternativas, mas o mais prudente é desistir: 1969 foi o ano em que John Lennon e Yoko Ono se casaram – e quando a Guerra do Vietnã atingiu seu ápice. Em oposição às batalhas e mortes no país asiático, o casal realizou protestos pacíficos, conhecidos como Bed In: foram duas sessões, de uma semana cada, em que John & Yoko deitaram-se em camas de hotel e receberam a imprensa, numa campanha com mensagem debochada: “para que perder o sono com a paz mundial?”.
Imagine se Lennon, no foco dos holofotes de todo o planeta e em pleno atrito com as maiores potências do mundo, descobre que o assunto periclitante da cidade para onde ele e os seus se transpuseram é uma parada de ônibus…