Nestes dias em que não há mais festas nem Carnaval, pensei que seria salutar invocar memórias de um dos últimos acontecimentos pré-isolamento neste belo recanto do Brasil: o show de Marcelo Nova no Feceva. Diga-se: palmas a quem teve a sagacidade e originalidade de contratar o último dos moicanos, como fora anunciado por seu mestre de cerimônias antes do show, como headliner do evento. A sensação de “poxa, que legal, ótima ideia, não se vê isso todo dia!” pairava entre o brilho da espuma e das gotas de suor que só uma implacável noite de verão no auge da estiagem pode proporcionar.

Foto: Leíne Bertotti/Divulgação

Com quase 69 anos, Nova pode se dar a alguns luxos permitidos só a quem chega a esta idade e/ou patamar de carreira. Como fazer sua competente banda alongar a introdução de Hoje, música de abertura do show, até que ele estivesse a postos para pisar no palco. Ou pouco se lixar para seus próprios hits, como Sílvia, que rendeu à plateia um esporro cruzado com ironia – tal qual um pedido para que as pessoas crescessem em vez de pedir aquela “música chata”, nas próprias palavras do cantor. Nova ainda deixou quase integralmente os refrãos de Hoje para serem cantados por sua banda e de Só o Fim para a voz da audiência, respectivamente.

Em vez de apelar ao óbvio, Marcelo Nova invocou números bem menos radiofônicos do que o da famosa piranha. Gotham City – do Camisa –, A Balada do Perdedor – em que ele mesmo se descreveu como perdedor ao apresentá-la, em contrariedade total com as pílulas de autoajuda diluídas mundo afora em nossos dias – e suas versões para My Way, de Frank Sinatra, ou a impagável Cocaína, presença garantida há muito em seus shows solos, ganharam espaço no repertório. Com o cantor sempre muito bem amparado pelo conjunto – “grupo tem em qualquer lugar, conjunto é pra poucos”, disse o líder da trupe – capitaneado pela guitarra do filho Drake Nova, mais Leandro Dalle no baixo e Célio Glouster na bateria. A formação, diga-se, é a mesma da atual versão do Camisa de Vênus, apenas com o acréscimo do baixista original Robério Carvalho e o remanejamento de Dalle para uma segunda guitarra.

A escalação de Nova como penúltima atração – subiu ao palco pouco após as 22h, antes do Vera Loca, que fechou a noite –, soou acertada. Afinal, enquanto a banda gaúcha despejou os famosos hits pegajosos em que todo mundo canta junto com a mãozinha pra cima já em tom de celebração – mesmo que as pessoas nem saibam de que –, o show de Nova é de difícil deglutição em certos pontos. Até mesmo em pontos altos, como o clássico Bete Morreu, de 1983, talvez a primeira música do país a falar em estupro e feminicídio – temas que ele fez questão de ressaltar –, muito antes que tais assuntos tomassem a mídia e o cotidiano das pessoas. E pensar que ela foi vítima da censura quando de seu lançamento. E de que há quem apoie esse tipo de prática…

A fase de difícil assimilação de parte do show, porém, foi dissipada com uma saraivada de hits ao final, com as imprescindíveis Simca Chambord, Eu Não Matei Joana D’Arc e Pastor João e a Igreja Invisível. A satisfação – em especial dos pertencentes e/ou admiradores da velha guarda – em assistir a um show quase inusitado para este lugar do mundo foi uma das melhores sensações da noite. Os cânticos de “bota pra f…” e até LPs do velho grupo levantados em meio à audiência simbolizaram bem tal sentimento.

Marcelo Nova no Feceva foi o show certo para a ocasião certa. Devo dizer, ainda, que não conhecia o festival: por motivos profissionais, me ausentei das edições anteriores. A sensação que ficou foi de um evento acima da média do que se costuma encontrar na cidade. Uma pena que a capital do ouro verde não disponha de espaço mais apropriado em termos de climatização, acústica e afins do que ginásios como os do Parque do Chimarrão para um evento de tal porte.

Deixa pra lá. Que sigamos com realizações, ainda que esparsas, comparáveis em nosso contexto a transformar pão em vinho, chão em céu, pau e pedra ou cuspe em mel. Que o coronavírus e o pensamento atrasado assim permitam. E que, assim como esta coluna, a peleia por tornar isso possível em meio à vida cotidiana retorne assim que possível. Cuidemo-nos.