Por Eduarda Wenzel e Letícia Wacholz*
Dia 25 de maio, Estados Unidos. Um homem negro é morto após ter seu corpo pressionado contra o chão e morrer por asfixia causada por um policial branco. Dia 19 de maio, Venâncio Aires. Um homem negro e um pai de santo passam por revista e são levados à Delegacia de Polícia após serem apontados como suspeitos de furto em um estabelecimento comercial, no centro da cidade. O que há em comum nestes dois episódios? Especialistas e lideranças envolvidas na luta por igualdade destacam o preconceito racial envolvido nos casos.
Nos Estados Unidos, a morte de George Floyd colocou o racismo no topo da agenda política das principais autoridades. Uma onda de protestos levou milhares às ruas, negros e brancos. Logo se tornou um dos assuntos mais comentados da internet nesta semana. Quem tem conta no Facebook ou Instagram, deve ter acompanhado uma série de manifestações em apoio ao movimento ‘Black Lives Matter’, que em português significa ‘Vidas Negras Importam’.
Enquanto o assunto segue repercutindo mundo afora, em Venâncio Aires um episódio de racismo ganhou evidência nas redes sociais dias antes da morte do norte-americano. O caso de dois homens acusados injustamente não ganhou a dimensão do caso Floyd, mas mostra que o racismo também faz parte da nossa realidade.
Na véspera do aniversário do filho, o professor de Metalmecânica e pai de santo Everson Carlos da Luz convidou o amigo Raul César Senna, proprietário de uma distribuidora de bebidas, para ir com ele comprar um relógio. Conforme Luz, ambos estavam com roupas simples, porque tinham feito algumas obras em casa, e foram atrás do presente. Na primeira loja que entraram, aconteceu o caso que os marcou. “Olhamos relógios e quando a vendedora os trouxe, ela deixou cair alguns no chão. Não gostamos dos modelos e saímos para ir a outras lojas, porque eu queria analisar os preços e modelos”, conta.
Ao chegarem em outro estabelecimento, no centro da cidade, “os policiais vieram em nossa direção gritando ‘mão na cabeça’, ‘vem para a rua’ e nos revistando, porque teríamos roubado dois relógios.” A Brigada Militar havia sido acionada pela loja onde estavam anteriormente. Eles não entenderam o que estava acontecendo e não tiveram tempo de falar. “Deixaram a entender que, por eu ser negro, não teria condições de comprar um relógio”, afirma Senna.
Eles lembram que ficaram na frente da loja, expostos para as pessoas e com armas apontadas para a cabeça. Posteriormente, levaram Senna até o carro para revistar. “Mexeram em tudo e me falaram ‘entrega onde estão os relógios, que a gente te libera e prende só teu amigo’. Eu respondi que não havia nada de relógios, então nos levaram de camburão para a delegacia.”
Somente na delegacia foram vistas as imagens da câmera de segurança da loja e foi comprovado que Senna e Luz haviam sido acusados injustamente. “Os relógios que não acharam ainda não tinham chegado na loja, pois estavam em trânsito”, esclarece o professor.
Depois de toda exposição, os homens foram liberados, mas estão recorrendo judicialmente. A loja gravou um vídeo, divulgado nas redes sociais, com a presença de Luz e Senna, no qual pediu desculpas. “Deram até um vale para usufruirmos na loja, mas nada repara nosso sofrimento psicológico e a exposição, porque para muitos ainda somos ladrões”, observa o pai de santo.
Para Luz, a forma que ele e o amigo reagiram à situação ajudou a amenizar a exposição pública. “Nós ficamos calmos, porque não devíamos nada, e isso ajudou a conduzir melhor a situação, mas as marcas desse dia horrível vão ficar para sempre.”
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Aparência
Senna acredita que a roupa também influenciou no preconceito. “Se eu tivesse vestido com blazer e calça jeans, como normalmente, acredito que não teria acontecido tudo isso.” Mas, explica que drante sua vida já sofreu e presenciou muitos atos de racismo. “Nós, negros, sofremos preconceitos constantes, porém esse fato vai me marcar mais, porque passei por um grande constrangimento sem necessidade”, destaca.
Ele diz que ainda tenta entender o que leva as pessoas a julgarem pela cor da pele e aparência. “Na loja devem ter pensado ‘um negro e um branco mal arrumado só podem ser marginais’, mas não, nós somos trabalhadores”, comenta Senna.
Na opinião de Luz, falta à sociedade conhecer melhor a trajetória dos negros no país e entender que eles possuem o mesmo valor e potencial. “Se acontecer um roubo e tiver duas pessoas brancas e uma negra, essa negra será suspeita. Infelizmente a realidade é assim”, lamenta o professor.
“Muitas pessoas ainda não acreditam no racismo”
É com diálogo e estudo que a ONG Alphorria, criada em 2011, trabalha para combater a discriminação racial. Segundo a coordenadora da entidade, Ana Lúcia Landim, a luta contra o racismo deve contar com a união de pessoas negras e brancas, sobretudo ativistas que entendem a importância deste tema. “O racismo que acontece longe e também perto de nós, é assunto que ainda tem que ser discutido”, frisa.
Ela explica que a campanha Vidas Negras Importam (Black Lives Matter) nasceu nos Estados Unidos, em 2013, após a morte de um adolescente na Flórida. Agora, com o episódio de racismo que ocasionou a morte de George Floyd, o movimentou retornou e com força. “Ao contrário do que ainda muita gente pensa, de que é um absurdo que o óbvio ainda precise ser defendido, na verdade, não é óbvio. Muitas pessoas ainda não acreditam no racismo. Não entendem como o racismo funciona e também não tem empatia em relação ao outro”, diz.
Na comunidade
A ONG trabalha com ações diversas em parceria com sindicatos, associações, profissionais de educação e outros movimentos. “Combater a discriminação racial para a ONG Alphorria é mostrar como a discriminação funciona, é se colocar do lado das pessoas que sofrem a discriminação e que solicitam amparo na instituição. Fazemos a escuta das pessoas e lutamos por mais direitos”, cita Ana Lúcia. Ela acrescenta que A ONG Alphorria acolhe qualquer pessoa que tenha interesse em estudar, conhecer e se integrar em alguma ação.
“Luta contra racismo precisa envolver toda a sociedade”
Para o delegado da Polícia Civil de Venâncio Aires, Vinícius Lourenço de Assunção, a luta contra o racismo precisa envolver toda a sociedade. Ele cita que todos os cidadãos têm o dever de repudiar qualquer tipo de racismo ou mesmo de injúria racial. “É preciso saber se posicionar e denunciar, de modo que a pessoa que ofenda seja responsabilizada judicial e penalmente”, destaca.
Ao avaliar o tema localmente, o delegado destaca que existem comportamentos preconceituosos em termos raciais “possivelmente pela forma como Venâncio Aires foi colonizada, por termos uma grande quantidade de europeus que aqui aportaram”, afirma.
Isso, segundo Assunção, faz existir um “preconceito velado, que muitas vezes não chega, nem mesmo até a delegacia. Mas se percebe que, localmente, o preconceito está presente em palavras e expressões, com muito mais intensidade do que outras cidades em que já trabalhei”.
- Injúria racial – Ofender a dignidade usando elementos de raça, cor, etnia, religião, origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência. A pena prevista é de um a três anos e multa.
- Racismo – É o ato discriminatório dirigido a determinado grupo ou coletividade. Pode estar caracterizada ao recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, a edifícios públicos ou residenciais, negar ou impossibilitar emprego em empresa privada, entre outros. A pena pode chegar em até cinco anos e multa.
- Como denunciar – Crimes de racismo e injúria racial podem ser denunciados em qualquer Delegacia de Polícia.
*Colaborou Cristiano Wildner