Em janeiro de 1876, moradores de Faxinal dos Fagundes, território de Taquari, participaram de um ato em um terreno doado anos antes por Brígida do Nascimento. Com a bênção da pedra angular para a construção de uma capela, seguido de um almoço festivo, aconteceu aquela que é considerada a primeira Festa de São Sebastião Mártir.
Menos de quatro meses depois, outro grupo de pessoas, cerca de 30 quilômetros daquele local, também lançaram uma pedra fundamental, marcando o início da construção de uma ponte. Essa travessia, sobre o arroio Taquari Mirim, se tornaria um dos principais caminhos de quem vinha de Rio Pardo, Taquari e Santo Amaro, para chegar às bandas da Fazenda Mariante.
A construção da ponte ser no mesmo ano da primeira capela de São Sebastião, indica ser apenas uma coincidência. Mas fato é que aquela travessia, cuja parte da estrutura ainda está de pé, também guarda histórias do tempo do Brasil imperial, das estâncias e das fronteiras fluviais.
É numa das ‘beiradas’ do mapa venâncio-airense, que ainda há vestígios da chamada ‘ponte de zinco’, ou ‘ponte coberta’, considerada um dos primeiros ‘pórticos’ do município.
Os nomes do mapa e da pedra
A Geografia ensina que muito das fronteiras entre municípios, estados e países se formaram pelo traçado de rios e arroios. As linhas imaginárias sempre se valeram de elementos da natureza e o curso das águas acabava sendo um facilitador para a divisão.
No mapa atual de Venâncio Aires, por exemplo, são seis nomes (rios Pequeno e Taquari e os arroios Castelhano, Taquari Mirim, Sampaio e Grande) e alguns já formavam limites há mais de 140 anos, quando ainda éramos distrito de Taquari.
O arroio Taquari Mirim, que atualmente é limite, ao sul, com Vale Verde, por muito tempo foi divisa com Rio Pardo e Santo Amaro. Até 1876, os moradores desses dois últimos locais, quando precisavam cruzar para o lado da Fazenda Mariante (Estância), o faziam pelo Passo do Severino (em referência a Severino José da Silva, que tinha uma fazenda naquela região).
Há 145 anos, para facilitar o acesso de moradores de ambos os territórios, que tocavam gado entre as fazendas que lá existiam, foi construída uma ponte sobre o arroio. Foram usados imensos blocos de pedra nas cabeceiras, muita madeira e uma cobertura para ajudar na durabilidade da estrutura, de cerca de 20 metros de comprimento.
Não se sabe quem bancou a estrutura (se foi Estado ou município de Taquari), mas naquele tempo os próprios moradores tinham autonomia para resolver as coisas. Quem comandou a obra teria sido Francisco Nunes Dornelles. Os sobrenomes estão em um bloco de pedra, hoje mantido no pátio da casa de Eny Teresinha Harres, 86 anos, uma das moradoras mais antigas de Linha Taquari Mirim.
Eny conta que Francisco era seu avô paterno, que ela não conheceu. Além do nome dele na pedra, há resquícios de uma data. Embora os dois últimos números não estejam nítidos, Pascoal Harres, 57 anos, filho de Eny, afirma: é 1º de maio de 1876. “Resgatei essa pedra há alguns anos. O pessoal ficava brincando de ‘tiro ao alvo’ com ela e caiu dentro do arroio. Fui buscar, porque era parte da história que iria se perder”, conta Pascoal.
Ligação
A ponte acabou facilitando a travessia de moradores da Estância Mariante, Faxinal dos Fagundes, Rio Pardo, Santo Amaro, Triunfo e Taquari, seja de um lado para outro. O engenheiro civil e ex-secretário de Planejamento de Venâncio Aires, Lucio Konzen, se dedica ao estudo da formação do município há cerca de 10 anos. Nas suas pesquisas, ele conta que, em 1891, a Secretaria de Obras do Estado ordenou a reforma da ponte, momento que foi contratado Antônio de Azambuja Villanova Filho (o mesmo que seria nomeado intendente entre 1892 e 1893, no ainda ‘engatinhando’ município de Venâncio Aires).
“A ponte é um elemento importante da nossa ligação histórica com Santo Amaro, na formação de Venâncio Aires. Esta estrada, que ligava estas duas povoações, cruza o Passo da Taquara, região da família Pereira. Entre eles, Thomaz José Pereira Junior e seus irmãos Rufino e Amaro, que muito participaram na história de Venâncio Aires”, destacou Konzen.
Mapas
Em mapas dos anos de 1882, 1917 e 1930, é possível ver a evolução do território leste de Venâncio Aires e que alguns nomes ainda estão na Geografia municipal até hoje. Entre eles Mariante (Estância que foi dividida na década de 1990), Campo Grande, Rincão de Souza e Palanque, além do rio Taquari e do arroio Taquari Mirim (ainda grafados com Y).
Casa dos escravos
Outra referência importante na região é a chamada ‘casa dos escravos’, que fica a poucos metros do arroio Taquari Mirim. Segundo Pascoal Harres, atual morador, ela está na família há quatro gerações. Ele descende de Roberto Schroeder (bisavô materno), que teria comprado a casa de Severino José da Silva.
A casa teria sido construída antes mesma da ponte. “Ainda no tempo do Império, as tropas que General Câmara passavam aqui”, conta Pascoal, que ouviu os relatos dos antepassados. Já pertencendo a Schroeder (nome que está em um mapa do município de 1917), a casa virou um comércio e local de passagem de militares, tropeiros e viajantes.
Ela ficou conhecida como ‘casa dos escravos’ porque foi erguida pelo trabalho de negros escravizados. Nesse sentido, a história do local, que não é totalmente precisa, tem um detalhe curioso. Num dos lados da residência há um pé de camélia. No século XIX, essa flor era considerada o símbolo do movimento abolicionista.
Lembranças dos caminhos e das águas
Nair Schwingel de Paula, ainda era uma menina, no início da década de 1950, quando ajudava o pai, João, nas lidas da agricultura. Ele cultivava soja do outro lado do arroio e foram inúmeras as vezes que precisaram cruzar a ponte. “Eu fazia isso a pé. Lembro de trazer uma carroça carregada de milho e ainda tocando 15 porcos soltos.”
As lembranças de Nair, 79 anos, remetem ao tempo que a ponte do Taquari Mirim tinha um telhado de zinco. Sob a cobertura, tropeiros que levavam gado de Rio Pardo passavam a noite, se protegendo do frio ou da chuva.
Com o passar dos anos e a evolução do maquinário agrícola, cujo tamanho impossibilitava a passagem pela ponte, a travessia acabou perdendo o telhado. Isso aconteceu ainda na década de 1970 e, mesmo depois de mais de 40 anos, o trecho é conhecido como ‘ponte de zinco’ ou ‘ponte coberta’, em referência a uma característica que nem existe mais.
“Aquilo lá tem um valor histórico imensurável. A gente entende que tudo é uma questão de progresso, mas poderiam ter restaurado. Foi o principal acesso de muita gente, de outros municípios, por anos. Era uma porta de entrada, de pessoas e pelo lado comercial”, afirmou Claudio de Paula, 80 anos, marido de Nair.
Ao encontro da opinião de Claudio, está Dário Martins, ex-secretário de Segurança de Venâncio Aires, que nasceu na localidade. “Considero um patrimônio da nossa história. Quando fizeram a ponte de concreto, nos anos 1990, poderiam ter deixado a original, do lado. Infelizmente não tem o valor que merece, mas aquela estrada, aquele lugar, merecia ser uma rota turística”, sugere.
Curiosidade
Criado próximo ao Taquari Mirim, Claudio de Paula lembra das vezes que a mãe, Olívia, lavava as roupas no arroio. “A gente era pobre, tinha uma muda de roupa. Daí enquanto a mãe lavava, eu esperava pelado no mato. Era o jeito”, revela, entre risos.
Claudio conta ainda que as pedras do arroio foram usadas na construção da igreja São Sebastião Mártir, em 1929. “Meu avô, Jerônimo Gonçalves levava carroças de pedras até o centro da cidade.”
Crença
Na região do Taquari Mirim, a fé dos moradores sempre ‘entra em ação’ em momentos delicados. Assim é quando ocorrem períodos de estiagem, que secam o leito do arroio. Além de procissões, por lá há um costume antigo para pedir chuva: acender uma vela para um homem que era conhecido apenas como “Costela”. Segundo o casal de Paula, ele teria morrido afogado na década de 1930.
Outras pontes
A ponte de zinco, datada de maio de 1876, é uma das mais antigas do município. Sobre qual a mais velha, não há registros precisos, já que há poucos documentos e muitas das estruturas já foram substituídas ou nem existem mais.
Quem guarda parte desses poucos registros é o aposentado Libório Wilges, 73 anos. Um dos defensores da manutenção do nome ‘Estância Mariante’, desde a década de 1990 ele resgata a história da região. Wilges tem, em casa, mapas e fotos muito antigas. Um dos documentos é uma planta da Fazenda Mariante, de 1882.
Ele também tem fotografias da inauguração de uma ponte, também coberta, sobre a Sanga das Mulas, atual região de Estância São José. No registro, de 1927, aparece a sogra dele, Nely Back, com apenas 5 anos. Outra ponte coberta é uma sobre o arroio Castelhano, datada de 1939. A foto está no Museu de Venâncio Aires.
A característica da cobertura das pontes se justifica, principalmente, pela durabilidade. Como eram à base de madeira, o objetivo era que não ficassem tão expostas à ação do tempo.
Mariante
Por tamanho e importância, a ponte mais ‘famosa’ de Venâncio Aires é a que fica sobre o rio Taquari, em Mariante. Inaugurada em 1959, a travessia facilitou o acesso do município a Porto Alegre, por via terrestre. Por outro lado, segundo a historiadora Angelita da Rosa, a ponte “foi a decadência de Mariante”. “Tudo passava por Mariante, já que só existia o transporte fluvial. Era um acesso importantíssimo, mas, com a ponte, não havia mais necessidade de passar por lá. Nos tempos áureos do porto, Mariante chegou a ter duas salas de cinema.”
Memórias que ficam
Em 1988, durante a 2ª Festa Nacional do Chimarrão, foi inaugurado o pórtico de Venâncio Aires, no Acesso Leopoldina, a principal entrada da cidade há cerca de 50 anos. A estrutura foi desenhada e planejada pela arquiteta e urbanista Marione Reckziegel.
Na região do Taquari Mirim, não se sabe quem projetou a ponte ou o telhado. Mas, considerando a idade e o relato de pessoas que cresceram na barranca do arroio, há quem a defina como uma espécie de primeiro ‘pórtico’ do município, principalmente pela ligação com Santo Amaro.
O que resta da ponte original são os blocos de pedra nas cabeceiras, em ruínas e escondidos sob o matagal. Aos poucos, a estrutura física está se consumindo pelo tempo, afinal, são quase 150 anos.
É consenso na localidade que aquela travessia teve sua importância como rota durante muito tempo. Talvez não na proporção comercial da ‘faixa velha para Santa Cruz’ (rua Armando Ruschel) ou da estrada que vinha da região serrana do Estado e descia por Vila Deodoro. Tampouco a movimentação do porto de Mariante e, mais tarde, a ponte na RSC-287.
Mas sua importância está nas gerações que por lá se criaram, nas famílias que se estabeleceram e nas histórias de uma terra e de um povo ainda em formação, quando Venâncio era só um faxinal. A ponte de zinco já é história e também uma saudade.