Intolerância, fanatismo político e violência. Esses três ingredientes são partes comuns no contexto de uma guerra, seja ela onde for. No Rio Grande do Sul, que teve embates conhecidos Brasil afora, um em especial ainda é lembrado por muita gente. Pessoas que não viram, mas que ouviram sobre a tal guerra que dividiu o estado na última década do século XIX.
Quase 130 anos depois, ainda é difícil entender as atitudes da adversidade entre chimangos e maragatos. Por aqui, a guerra entre os de lenço vermelho contra o de lenço branco também teve capítulos, inclusive por motivações diferentes. Um roteiro que passou, por exemplo, em São Miguel – Santa Emília, Linha Isabel, Linha Andréas, Linha Coronel Brito e no atual bairro Brígida. A partir de relatos e do que se tem na Literatura, a Folha do Mate tenta resgatar histórias da Revolução Federalista no então recém-emancipado município de Venâncio Aires.
O corpo que nunca foi encontrado
Era início de 1894 quando os jovens Pedro Fröhlich (1870-1942) e Margarida Riedel (1875-1939) marcaram o casamento para o dois de maio seguinte. A cerimônia seria na ‘Michaelskapelle’ (a antiga capela de São Miguel, na Santa Emília).
Era um momento de alegria vivido pelos noivos e famílias, apesar do cenário tumultuoso que já vinha pelo estado desde o ano anterior, quando ‘estourou’ a Revolução Federalista (veja abaixo).
Embora Venâncio Aires fosse, então, um município recém-emancipado (1891) e ainda arriscava as próprias decisões, os ventos não eram tranquilos e a inquietação também tomava conta dos moradores de São Miguel. A localidade já vinha sofrendo, desde o início, roubos e saques de alguns serranos da região de Boqueirão do Leão favoráveis aos maragatos.
Em São Miguel até o alto da Duvidosa, o pai de Margarida, Clemente Riedel, era um líder e começou a recrutar voluntários para que montassem guarda sempre perto da capela, com o objetivo de defender a comunidade. Contrário aos maragatos, Clemente (ou Clemens, como era chamado), conseguiur armas diretamente com Júlio de Castilhos, o então presidente do Estado. Isso irritou os federalistas locais e o que se dizia entre os maragatos é de que “Riedel deveria desaparecer”.
Páscoa sangrenta
A Semana Santa de 1894 foi entre 19 e 25 de abril, a poucas semanas do casamento de Pedro e Margarida. Pensando na Páscoa e no próprio matrimônio da filha, Clemente entendeu que os momentos mereceriam festividade e determinou que a guarda fosse suspensa de forma provisória.
O ‘afrouxamento’ da defesa de São Miguel não demorou a chegar aos ouvidos dos líderes maragatos da região e, ainda na noite da quinta-feira Santa, a casa dos Riedel foi invadida. A matriarca, Elisabeth, se escondeu no porão da casa com os filhos pequenos, além de Margarida.
Houve um longo tiroteio e as balas dos Riedel terminaram. Desesperado, José, um dos filhos de Clemente, tentou sair por uma janela para buscar socorro, mas morreu baleado. Clemente acabou preso e foi levado amarrado. “Onde ele foi morto e onde foi enterrado, não se sabe até hoje. Mas se conta que ele cavou a própria sepultura e foi degolado, como era a marca da revolução”, conta Jorge Matias Reckziegel, 55 anos.
O agricultor é trisneto de Clemente e ouviu histórias narradas pela mãe, Julita, e leu o que escreveu o primo dela, Cláudio Carlos Fröhlich, autor de livros como ‘Colônia de Santa Emília’ e ‘Johann Fröhlich e Maria Anna Mohr’ (no qual há essa história sobre Clemente Riedel).
Conforme as pesquisas da família Fröhlich, mesmo com a tragédia das duas mortes, o casamento de Pedro e Margarida aconteceu, mas não teve festa. A manutenção da data é um mistério, mas uma possibilidade é que algumas comunidades não tinham padre todo o tempo disponível e, muitas vezes, era preciso aproveitar a vinda do religioso.
Versão
O caso de Clemente Riedel tem outra versão, que está no livro ‘Revolução Federalista no Vale do Taquari’, de José Alfredo Schierholt. Nele, diz que Riedel foi levado pelos maragatos até Linha Lucena e, após um curto julgamento, recebeu a sentença de morte: cavar a própria sepultura, dentro da qual foi fuzilado.
Assim como no livro da família Fröhlich, na obra de Schierholt também não há informações sobre o local exato da morte e o corpo nunca foi encontrado. “Os traumas ficam e naquele tempo, aquilo que aconteceu, deixou a família com mais medo ainda. Acho que por isso já na época não procuraram pelo corpo, com medo de alguma represália”, opina Jorge Matias Reckziegel.
Carneação nas terras de Berlim da Cruz
Não se sabe exatamente o ano, mas a revolução também marcou uma família bastante conhecida no município – os Cruz, descendentes diretos de Brígida do Nascimento. Conta-se que certo dia, Reginalda, esposa de Antônio Berlim da Cruz (que foi intendente e é nome de rua), avistou, através de um monóculo, a aproximação de homens vindo a cavalo da região sudoeste de Venâncio.
A tropa carregava bandeiras, fitas e lenços na cor vermelha. Imediatamente, Reginalda ordenou a um dos empregados para que pegasse um cavalo e fosse avisar os demais parentes, que moravam na região da Ponte Queimada e no Grão-Pará (casa de pedra próxima ao arroio São João onde morava um dos filhos, Antônio Pedro da Cruz).
Ao chegar na Ponte Queimada, o mensageiro ganhou outra camisa, que estava sendo costurada pela proprietária da casa. Vestiu às pressas e montou novamente o cavalo, seguindo até o Grão Pará. “Quando chegou lá, a camisa estava em farrapos. Com o medo e a pressa, atalhou pelo mato e passou por galhos que rasgaram a roupa”, conta Maria Zulmira Portella de Moura, 65 anos.
A pesquisadora ouviu essa história da mãe, Yolita da Cruz Portella (que dá nome à Emei do bairro Brígida). Maria Zulmira, que é bisneta de Antônio Berlim da Cruz, diz ainda que as tropas avistadas pela bisavó acabaram acampando na propriedade, onde hoje fica o ginásio da Coopeva.
Lá, carnearam a vaca mais gorda, tiraram um quarto (pernil) e fizeram um churrasco. O restante, deixaram embaixo de um pé de pera. “Os empregados queriam aproveitar a carne, mas minha bisavó não deixou e disse que poderia estar envenenada.”
Degola
Também houve uma degola na família Cruz. Diz-se que os maragatos atacavam durante o dia as casas onde sabiam ter dinheiro. Em 1893, um dos primeiros moradores da região entre a atual Ponte Queimada e a Linha Coronel Brito era Joaquim Mariano da Cruz. Os federalistas souberam que ele estaria com dinheiro, após vender gado, e atacaram a residência. No embate, dois maragatos ficaram feridos e decidiram recuar.
No entanto, dias depois, voltaram e conseguir entrar na casa. A história é de que Joaquim foi degolado em cima da cama e seu corpo foi queimado. Essa versão foi resgatada a partir de uma pesquisa feita pela própria comunidade, em 2002, e que parte foi publicada pela Folha do Mate no mesmo ano.
A defesa de Linha Isabel
Enfrentar o medo e o desconhecido também foi necessário e aí surgiu, em alguns locais, uma espécie de exército improvisado. Nos moldes da guarda organizada no São Miguel, na Linha Isabel foi fundada a Liga de Defesa Colonial. Em pouco tempo, mais de 150 homens da chamada ‘Isabela Pikade’ e outras partes da região serrana de Venâncio, se uniram para proteger as famílias e os bens que tinham de ataques durante a revolução.
De acordo com uma publicação da década de 1920, que descreve fatos do cinquentenário da Linha Isabel (1873-1923), essa liga tinha como presidente Anton Rieger. Eram ainda três conselheiros e 12 seções com homens com mais de 17 anos. Eram centenas em condições de combate. “Esta liga proporcionava aos moradores mais segurança, cada um podia prosseguir em paz nos seus trabalhos, não havia divisões políticas”, diz o material publicado em 1924 e que fazia parte da coleção de Elcido Felten, que participou da fundação do Museu de Venâncio.
Medo
Do outro lado do arroio que corta Isabel, existe uma região conhecida como ‘Teufelsloch’ (o Buraco do Diabo). Por lá morava a família Penck, uma das que sofreu ataques dos maragatos. “Entravam em casa, pegavam os cavalos, carneavam os bichos. Se escondiam nas lavouras e meu pai era um nenê”, relata, em alemão, Hilda Seidel, 91 anos, uma das moradoras mais antigas da Linha Isabel.
O medo e a busca por refúgio nos porões das casas, no meio do mato e nas lavouras também foram lembrados por Olga Reckziegel Posselt, 92 anos. Dominando apenas a língua materna, a aposentada disse “mein papa sagte angst”, se referindo ao pai, Carlos, que dizia que os moradores tinham medo.
Ainda na Linha Isabel, um dos casais mais conhecidos da localidade, Otto e Romilda Haupt, 87 e 85 anos, respectivamente, também ouviu relatos parecidos. A história mais forte na família deles nem aconteceu na Isabel, mas sim na família da mãe de Otto, na Linha Andréas. Por lá, os maragatos acamparam nas terras dos Wollmann e roubaram bois e galinhas. A mãe de Otto, Juliana, tem seu rosto conhecido de quem já visitou o Museu. Um dos vestidos da exposição ‘Noivas de preto’ foi usado por ela, no casamento com Germano Haupt, em 1919.
Chá salvador
Jorge Fröhlich, irmão do Pedro mencionado no início dessa matéria, sempre relatava aos familiares uma outra situação envolvendo as ligas formadas para defender o município. A história é de que, mesmo depois da revolução, ele teria sido forçado pelo coronel José Thomaz Pereira Junior, intendente de Venâncio, a integrar o ‘corpo provisório’. Jorge contava que só conseguiu ser dispensado depois de ter aliviado, com um preparado de ervas, um forte dor de dente do coronel.
Entenda
A Revolução Federalista tinha como objetivo a troca da oligarquia que estava no poder (no caso Júlio de Castilhos), pela que foi rejeitada pelo governo, liderada por Gaspar Silveira Martins. Júlio e Gaspar eram os nomes fortes da oposição, mas foram os apelidos dos grupos que duelaram que ganharam fama: maragatos e chimangos.
Os chimangos, também conhecidos como pica-paus, eram os governistas, castilhistas. Para o apelido, há duas versões: a cor do enfeite nas vestes e pelo som parecido dos pica-paus batendo em árvores quando as armas eram detonadas. Sob as ordens de Castilhos, os de lenço branco tinham, entre seus principais comandantes, Joaquim Tomás dos Santos Filho.
Já os maragatos eram os revolucionários e tinham esse apelido porque nas tropas havia vários espanhóis residentes no Uruguai e vindos da maragataria, na Espanha. Representavam os federalistas, liderados por Gaspar Silveira Martins, e eram identificados pelo uso de lenços vermelhos. Seus principais chefes eram Gumercindo Saraiva e João Nunes da Silva Tavares.
Também é sob o manto dos maragatos que surge uma espécie de terceiro partido, serranos ou ervateiros. Segundo o livro da venâncio-airense Hilda Agnes Hübner Flores, ‘Rio Grande do Sul: aspectos da Revolução de 1893’, eram pessoas que, a partir de 1850, quando a Lei de Terras proíbe a concessão fundiária gratuita, precisaram ceder espaço para lotes que seriam ocupados por colonos. Assim, teriam aproveitado a revolução com outra motivação: recuperar ‘direitos perdidos’.
Entre os líderes locais, um dos mais conhecidos era Zeca Ferreira, ervateiro e monarquista, da região de Boqueirão do Leão e o qual liderou ataques em Venâncio Aires. Sem treinamento militar e sem armas adequadas, não sustentavam combates de vulto, mas usavam de tática a guerrilha, atacando picadas, roubando e ameaçando, confirmando alguns relatos pelo interior de Venâncio.
A revolução desencadeou uma guerra sangrenta e que ficou conhecida como a Revolta da Degola. A degola era mais barata que usar balas e igualmente mortal. No conflito, que durou de fevereiro de 1893 a agosto de 1895, foram cerca de 10 mil mortos. Ao fim, o castilhismo foi mantido.
Nomes na História
“Sempre brincava com meus alunos: que bom que a escola Gaspar é na rua Tiradentes e não na Júlio de Castilhos, se não teria uma briga da espíritos.” O comentário, naturalmente em tom de brincadeira da professora e historiadora, Angelita da Rosa, descreve uma situação do cenário central da cidade de Venâncio Aires. Além de Gaspar e Júlio, há outros nomes eternizados por aqui.
Pelo interior, é principalmente na região serrana que os nomes das localidades sugerem uma relação com a Revolução Federalista. Não há confirmação de que os ‘batismos’ foram devido à guerra, mas a coincidência é grande. Gumercindo ‘Saraiva’, João Nunes da ‘Silva Tavares’ e Joaquim Tomás dos ‘Santos Filho’ são alguns dos envolvidos e que viraram ‘linhas’ na parte alta. “Não temos como afirmar essa relação. Sabemos de relatos que a revolução foi forte na região, mas Venâncio não tem muitas informações escritas, há muito mais do ponto de vista oral”, apontou Angelita.
Nessas muitas histórias não comprovadas, uma diz respeito à própria origem do principal arroio de Venâncio Aires. Diz-se que numa batalha, um uruguaio ou alguém de fala castelhana, foi morto e o corpo jogado na água. Não se tem certeza, mas há quem diga que o arroio Castelhano tem esse nome por causa dessa suposta morte ocorrida durante a revolução.
Outra remete à Linha Sexto Regimento. Durante pesquisas da própria comunidade para o caderno especial Folha Distritos, publicado pela Folha do Mate entre 2007 e 2008, o nome seria uma referência ao sexto regimento de cavalaria de Dom Pedrito, a primeira fortificação governamental tomada pelos maragatos e ponto de partida para a Revolução Federalista.
Mas, como afirmar tudo isso? Sem registros oficiais, são histórias que mantidas no boca a boca. Talvez algumas carregam um pouco de ‘enfeite’, de ‘fantasia’, mas sobre isso também não é possível desmentir nada. Em meio a hipóteses, vale a iniciativa de algumas pesquisas, como que a Folha já fez há alguns anos, e da literatura de nomes locais, como os escritores Hilda Agnes Hübner Flores e Cláudio Carlos Fröhlich. Parte das obras está disponível na biblioteca pública do município.
Sempre tem mais e, com certeza, há outras histórias por aí. Todas verdadeiras, na memória de quem as conta. E, quanto a isso, não há o que contestar.