Ele não nasceu em Venâncio Aires, mas está por aqui há tanto tempo que virou uma das figuras mais conhecidas na cidade. Uma personagem única, uma espécie de lenda e cujo nome dificilmente ainda não foi dito: Ita. Três letras, simples assim, mas com uma história bem mais complexa.
Nas linhas a seguir, a Folha do Mate conta parte da trajetória de José Itamar Martins, 63 anos, que está envelhecendo e, como qualquer pessoa com mais idade e necessidades especiais, requer um olhar mais atento de todos que o conhecem.
Em Venâncio, a ‘mãe nova’
“É mal de sete dias, vai passar”, disse Eva, quando viu a feição do décimo filho, nascido em 1º de outubro de 1958, numa localidade que ficava na barranca do rio Jacuí, em Cachoeira do Sul. Uma das irmãs mais velhas, Dinorá, se surpreendeu com os ‘olhinhos diferentes’ do recém-nascido, mas se encantou. “Me apaixonei por ele naquele instante”, conta a aposentada, hoje com 77 anos.
Dinorá tinha 14 anos quando nasceu José Itamar Martins, mas nem ela, nem os irmãos, nem os próprios pais sabiam que Ita, como passou a ser chamado, veio ao mundo com Síndrome de Down. “Ninguém nunca ouvia falar disso”, diz Dinorá, que mora com Ita há 34 anos em Venâncio Aires.
Na década de 1950, os pais deles (Laureno e Eva Martins), viviam da pesca e do trabalho nas lavouras de arroz. Sem conhecimento, sem informação e, principalmente, sem recursos financeiros, Ita cresceu sem a assistência necessária. Uma das maiores dificuldades, conforme relatado por Dinorá, foi a parte motora. “Ele caminhou com 12 anos. Antes se arrastava, apoiando as mãos.”
Ita chegou a frequentar uma escola regular, mas sem o conhecimento adequado, os professores o deixavam livre para fazer o que quisesse, por isso não aprendeu a ler e escrever.
A mudança para Venâncio Aires aconteceu em 1987, com 29 anos, logo após o falecimento dos pais. “Quem me trouxe o Itinha foi outra irmã, porque ele dizia que queria uma mamãe. Quando me viu, me chamou de ‘mãe nova’. Abracei ele e estamos juntos até hoje. Virei a nova mãe dele”, relatou, entre lágrimas, Dinorá, que tem três filhos biológicos e ajudou a criar mais cinco.
Características
Talvez para recuperar um tempo perdido da infância, já que não caminhava nos primeiros anos de vida, Ita tornou por hábito caminhar, todos os dias, nas principais ruas do Centro de Venâncio Aires. Geralmente com roupas sociais e uma maleta, sua imagem ficou conhecida assim.
Durante muito tempo, era visto com uma camisa branca da loja Benoit e até distribuía folhetos. “Ele se afeiçoou com o pessoal de lá, era muito querido por eles e ganhou uma camisa. Usou tanto que rasgou, daí várias vezes eu cortava o emblema da loja e costurava em outras camisetas. Ele dizia que era o gerente”, lembra a irmã Dinorá.
No roupeiro, são vários paletós, uma de suas peças favoritas. O quarto dele, aliás, é extremamente organizado e não tem nada fora do lugar. “Ele arruma tudo e é muito organizado. Como com as roupas: eu só lavo, mas ele arruma e escolhe o que quer vestir”, explica a irmã.
Também tem uma verdadeira coleção de bolsas e maletas, que ganhou de diferentes pessoas na cidade. Dentro delas, carrega papéis diversos, folhetos e até celulares antigos e carteiras. “São as coleções dele”, conta Dinorá.
A saúde é relativamente boa, já que não toma remédios. O problema é o colesterol alto – o que é difícil de controlar, já que massa e arroz “não podem faltar à mesa”. Dinorá destaca que nunca lhes faltou nada, mas o momento é difícil. Morando de aluguel, ela diz que o ideal seria ter ‘um canto’ só deles. “Só com as duas aposentadorias a gente se vê muito apertado.”
Sobre cuidado e assistência
Recentemente, uma publicação nas redes sociais teve um grande alcance. Uma sobrinha de Ita chamou atenção para uma situação em especial: com quase 63 anos, a memória dele está comprometida e, por vezes, tem se perdido pela cidade.
Essa desorientação foi percebida pelo barbeiro Jandir da Silva, nesta semana. É na barbearia dele que há mais de 15 anos Ita corta o cabelo e faz a barba (gratuitamente). Quando estava para sair, avisou que queria ir em determinado lugar, mas seguiu na direção errada. “Eu já levei o Ita em casa várias vezes, mas agora realmente está precisando que todos olhem por ele. É uma figura muito querida e tem gente de tudo que é lugar que o conhece”, comenta Silva.
Os momentos ‘perdidos’ têm acontecido com frequência, embora a família tenha restringido seus passeios devido à pandemia. “Foi muito complicado ele ficar em casa ano passado. Ele quase entrou em depressão, chorava muito, falava sozinho, pedia pelos nossos pais”, lembra Dinorá.
Com a melhora do cenário e Ita vacinado contra a Covid-19, ele tem passeado pelo menos duas vezes por semana. “Ele precisa das pessoas. Precisa sair, ter contato. Claro que tem gente que não gosta dele, até já apanhou, mas muitos gostam e ajudam a cuidar”, observa a ‘mãe nova’.
Carinho
Essa necessidade de contato com pessoas talvez ajude a explicar a vida de Ita até aqui. Segundo a diretora pedagógica da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae), Grazieli Winkelmann, há alguns anos ainda se colocava a expectativa de vida de uma pessoa com Síndrome de Down inferior a 60 anos.
Atualmente, esse conceito mudou e não é mais regra, porque depende de cada um. “A pessoa que vai ser estimulada, que é amada e interage, vai ser muito mais feliz. Embora o Ita não tenha tido um acompanhamento profissional, ele é muito amado pela família e, na cidade, muita gente gosta dele. Esse carinho e essa socialização lhe dão uma qualidade de vida muito maior”, destaca Grazieli.
Caso alguém veja o Ita desorientado ou perdido, pode contatar a sobrinha dele, Daniele Martins, pelo telefone 99655-2801. A família também vai providenciar uma pulseira com a identificação e o endereço.
“Ele é como uma criança, que não vê maldade em nada. Se ele ainda está vivo é porque é movido a amor. Recebe carinho o dia todo. Amo ele de forma especial desde que nasceu. Ele é meu irmão que virou filho e meu amor além de tudo.”
DINORÁ MARTINS – Irmã e também mãe do Ita
Impressões de repórter
Conheci o Ita no início dos anos 1990, quando eu tinha por volta de 6 anos. Lembro de ter ido com minha mãe no Centro e ele me deu ‘oi’. Até então, eu nunca tinha visto, presencialmente, uma pessoa com Down. E, mais surpresa ainda, fiquei ao constatar que era um adulto. Na minha total ignorância, olhei para a mãe: “É o Ita, ele é especial”, ela me respondeu.
Quanto fui estudar no Cônego Albino Juchem, em 1996, os encontros e os ‘ois’ nas quadras próximas à Prefeitura ficaram mais frequentes e aí comecei a perceber o quanto ele era conhecido. Mas quanto conhecimento o venâncio-airense realmente tem sobre ele? Felizmente, na minha profissão, tenho a oportunidade de conhecer melhor as pessoas, de entrar na casa delas e receber confiança para contar isso numa matéria.
Aqui faço um agradecimento à Daniele Martins, que intermediou minha visita, e à Dinorá, que me recebeu em casa e narrou sua história ao lado do Ita. Foi muito bonito constatar que o amor entre irmãos virou um amor de mãe e filho. Isso se percebe na cumplicidade com que se tratam, se olham e se cuidam mutuamente. No jeito que falam ‘mãe nova’ e ‘Itinha’.
Para me mostrar o quanto gosta de Dinorá, Ita abriu os braços e exclamou “Assim!”. Embora ele tenha se esforçado para mostrar o alcance da sua envergadura, sei que naquele espaço ainda não cabe todo o carinho e a gratidão que um tem pelo outro. E que bom que muita gente na cidade também gosta ‘um tantão assim’ dessa figura especial de Venâncio Aires.