Nas pedras, histórias e memórias

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Oriundos da época em que postes de concreto e arames galvanizados não existiam, a alternativa encontrada pelos imigrantes foi construir muros de pedras, bem rudimentares, para controlar o fluxo dos animais dentro das propriedades. Servia também como uma espécie de divisão das terras. Boa parte destas estruturas centenárias ainda é preservada por diversas famílias do interior de Venâncio Aires.

Em meio às tantas pedras empilhadas, a história de muitas famílias é preservada, afinal, foram erguidas pelos primeiros imigrantes e mantidas até hoje pelas gerações subsequentes. Nos fundos de casa, perto da porteira, por trás do musgo, a marca confirma: o muro na propriedade do casal Lisi e Arlindo Hochscheidt tem 123 anos. A data, 1898, está em uma das pedras que se encaixa com outras milhares, no terreno, onde mais de um quilômetro de muro é preservado.

A data, 1898, está marcada em uma das pedras que se encaixa com outras milhares, na propriedade em Linha Antão (Foto: Roni Müller/Folha do Mate)

Segundo Lisi, de 74 anos, descendente da família Baron, os muros de pedra são a história da família. “Quando eu era pequena, meus pais sempre falavam que o vô tinha feito esse muro”, conta. A filha mais nova de Otto e Alma Baron cita que preserva a história da família, que iniciou com Jacó Baron. “Eles nos contavam que usavam as ferramentas e picavam as rochas maiores em pedras para os muros. E puxavam as pedras até perto da casa”, relembra.

A propriedade da família é cheia de rochas que hoje ainda são visíveis por quem passa pela estrada geral em Linha Antão, que liga a comunidade a Centro Linha Brasil. “Na roça tem uma pedra bem grande que parece uma gruta. Antigamente, o professor da escola de Linha Marechal Floriano trazia os alunos para estudar as rochas”, comenta Hoschscheidt, de 79 anos.

Segundo as professoras Márcia Volkmer e Janaine Trombini, os muros de pedras são característicos da arquitetura colonial brasileira. “São vestígios de um passado em que a terra era demarcada a partir de referentes naturais ou, então, a partir do estabelecimento de gente e gado”, explica Márcia. Conforme ela, que é doutora em História, no Rio Grande do Sul, os muros de pedras estão presentes em praticamente todas as regiões geográficas. “Eles remontam ao século XVIII, quando a fronteira geopolítica começa a ser alargada. Os muros de pedras são vestígios de um passado em que as propriedades não eram demarcadas em cartório, ou com a utilização de cercas de madeira ou arame. Da mesma forma, foram fundamentais para o desenvolvimento da agricultura e da pecuária”, diz.

Utilidade

De acordo com a agricultora de Linha Antão, o avô construiu o muro para poder criar seus animais dentro do potreiro. “Hoje, quando os bichos encostam e, por ventura, derrubam algumas pedras, a gente vai lá e arruma, pois a gente tenta manter”, reforça.

Os muros eram utilizados principalmente para criar animais e delimitar fronteiras, esclarece a professora Janaine. A doutora em Ciências (Ambiente e Desenvolvimento) frisa que eram pedras de grandes dimensões e lascas de pedras. “Taipas de pedras são marcos centenários da presença do gado e, mais tarde, serviram também como guias em estradas”, explica.

Muito comum na região Sul do Brasil, especialmente nos Campos de Cima da Serra do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, o termo taipa “é o nome pelo qual é conhecido popularmente o muro feito de pedras, sem uso de qualquer outro material para a sua construção”, comenta.

“A matéria-prima empregada na construção das taipas dos corredores é o basalto, rocha de origem vulcânica e bastante abundante no Planalto Meridional, muito utilizada também na construção de outras estruturas na região, como mangueiras, currais e edificações”, detalha Janaine.

Segundo Márcia, a ação humana de empilhar pedras, com diferentes motivos, sempre existiu. “Em regiões montanhosas, para o desenvolvimento da agricultura, temos a construção dessas estruturas de pedra há milhares de anos”, exemplifica. A professora cita que alguns grupos indígenas que viviam em território sul-americano antes da chegada dos europeus deixaram muitos desses vestígios arquitetônicos. “Na Europa, a denominada ‘arquitetura de pedra solta’ permitiu a construção de muros, pontes e casas em diferentes contextos, e essa técnica construtiva é trazida pelos imigrantes europeus aos vales do Taquari e Rio Pardo, a partir do século XIX”, conta.

(Foto: Roni Müller/Folha do Mate)

Os muros de pedras fazem parte de estratégias de heranças culturais que foram trazidas pelos imigrantes. “No início não existia concreto”, salienta Janaine. “Muitas vezes, no caso da imigração italiana, utilizavam dejetos de animais como ‘cola’ nas edificações das casas”, destaca.

As pedras, de acordo com a professora, eram retiradas da natureza e também durante a limpeza das roças. “É um material resistente e durável, porém mais difícil de trabalhar e carregar, muitas vezes puxadas por tropas de mulas”, salienta.

A moradora de Linha Antão recorda que, na época, a família contava que não havia muitas ferramentas. “A propriedade sempre foi cheia de pedras e rochas e, para fazer espaço, abrir potreiro e roça, eles iam tirando lascas de pedras e fazendo os muros”, conta.

Casa de pedra

Além do muro, Lisi e Arlindo residem e preservam uma casa de pedra. “Ela é bem mais fresquinha no verão. A gente tem um carinho muito grande pelos antepassados”, frisa Lisi.

Segundo a doutora em Ciências, Janaine Trombini, as casas de pedras foram construídas na mesma época, com a retirada de pedras das roças e como proteção inferior da casa e conservação de materiais, como carnes, vinhos e laticínios. “Além de cercas e casas, as pedras eram utilizadas para circundar fontes de água”, aponta.

Lisi e Arlindo residem em uma casa de pedra em Linha Antão (Foto: Roni Müller/Folha do Mate)

Impressões da repórter

Venâncio Aires é um município com fortes traços da descendência alemã e que ainda preserva fortemente a cultura. Entrevistar, principalmente, as pessoas que moram no interior de Venâncio Aires, é sempre um momento de relembrar minha infância.

Assim como inúmeras entrevistas que já fiz, ao chegar na casa da dona Lisi e do seu Arlindo, comentei que se eles se sentissem mais à vontade, poderíamos fazer toda a entrevista em alemão. Apesar de dominarem a língua portuguesa, foi no alemão que o clima ficou totalmente leve e descontraído. Seu Arlindo até se surpreendeu, quando questionou a minha idade, e ficou surpreso que eu falava alemão.

Realmente, é uma pena que parte da nova geração está perdendo esse hábito, mas de certa forma é um privilegio saber o básico da língua alemã auxilia muito no meu trabalho diariamente. Talvez nem meus pais e avós acreditavam que iria trabalhar atualmente utilizando tanto um ensinamento deles.

    

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