Chamou atenção há alguns dias uma publicação nas redes sociais da Prefeitura de Venâncio Aires: um convite para médicos trabalharem na atenção básica do Município. Talvez ainda seja incomum um post para esse tipo de cargo, mas o anúncio no Facebook, página com grande alcance e usuários, foi mais uma forma de tentar chegar a um maior número possível de candidatos às vagas, cujo preenchimento virou dor de cabeça para muitas Prefeituras.
Em Venâncio Aires, o problema mais recente foi o ‘buraco’ deixado em cinco vagas de médicos que trabalhavam em postos de saúde, impactando diretamente no atendimento de seis unidades. Mas o que também chama atenção nessas saídas é que elas aconteceram poucos meses depois das respectivas contratações, feitas em março.
“No início do ano fizemos sete contratações, mas cinco matrículas [contratos de horas diferentes e que cada médico por ter duas] saíram. Se exoneraram ou voltaram para seus municípios de origem por razões diversas. Desde então, estamos procurando, publicando na internet, fazendo contatos, mas até agora apareceu apenas uma candidata interessada”, lamentou o secretário de Saúde, Tiago Quintana.
Enquanto não consegue preencher novamente as vagas, o Município precisou remanejar com o que tem, tirando horas de um lugar, transferindo para outro, trocando turnos e dias. Em Vila Deodoro, por exemplo, onde havia médico todos os dias, agora tem em dois (veja box).
Dificuldades
A complicada busca de Venâncio também é realidade em outros municípios do Estado. Em Santa Cruz do Sul e Bento Gonçalves, por exemplo, uma das maiores lacunas é em relação aos pediatras. Ambas as Prefeituras já garantiram que o problema não é orçamentário, mas sim a falta de profissionais disponíveis no mercado.
No caso da cidade da Serra gaúcha, a remuneração oferecida chegou a R$ 20,4 mil – o teto do funcionalismo público, limitado pelos vencimentos do prefeito – e foi proposta depois que as tentativas via concurso terminaram sem interessados.
Por aqui, o concurso público do ano passado também não resolveu o problema e, conforme Tiago Quintana, das vagas de médicos oferecidas, os aprovados não tiveram interesse em assumir. Vale destacar que das 46 vagas de médicos que o Município comporta hoje, 39 estão preenchidas por concursados e um profissional (com duas matrículas) é contrato emergencial.
Para o secretário de Saúde, a alta demanda de serviços que precisam cada vez mais de profissionais, a farta oportunidade de trabalho e a rede privada ‘aquecida’ ajudam a explicar a dificuldade de se conseguir atrair ou manter médicos na atenção básica. “Hoje o salário para 20 horas é de R$ 8.661,47. É o que se paga na média e Venâncio já está acima de outros municípios. Mas em alguns casos não adianta pagar mais, porque tem cidade que até dá bônus de permanência e o médico não fica”, argumentou Quintana.
Aumento de consultas
Nas últimas semanas, o Hospital São Sebastião Mártir (HSSM) e a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) têm registrado uma grande procura, com recorde em número de consultas e leitos superlotados.
Mas o que também cresceu foi a procura nos postos. Em 2022, entre janeiro até o dia 2 de junho, foram 103.871 consultas. O número (que inclui a UPA) é muito superior a 2021 e 2020, no auge da pandemia, quando houve 71.438 e 65.099 consultas, respectivamente.
Embora a comparação com os dois últimos anos não seja considerada ‘justa’, já que com a Covid-19 muitos não adoeceram ou evitaram o ambiente hospitalar e de posto, quando ela é feita com 2019 (72.256) e 2018 (68.266) a diferença também aparece.
Com esse cenário de aumento na demanda por consultas, associado à falta de médicos, Tiago Quintana não esconde a preocupação. “Prejudica porque represa o atendimento e alonga a agenda, pois temos que atender mais pessoas com menos profissionais.”
Edital para residência médica não tem interessados
Das duas vagas cadastradas através da Escola de Saúde Pública (ESP), de Porto Alegre, com a qual Venâncio tem convênio desde 2013, pela primeira vez não houve interessados de recém-formados para fazer a residência em Medicina de Família e Comunidade.
“Todos ganham bolsa de R$ 4 mil via Ministério da Educação. No caso de médico, o Município ainda complementa o valor de mais R$ 6 mil para atrair esses profissionais, mas não teve nenhum interessado. Isso que abrimos edital duas vezes”, lamentou Tiago Quintana.
Segundo o secretário, para as demais vagas via Escola de Saúde Pública (enfermeiro, psicólogo, assistente social, fisioterapeuta e nutricionista), os cargos foram preenchidos.
O que diz a Associação Médica
• Natalia Artus, presidente da Associação Médica de Venâncio Aires (Amva), relatou que a entidade vê a situação com preocupação. “As unidades básicas são a porta de entrada do sistema. Os pacientes precisam ir lá primeiro para tratar suas doenças crônicas, como hipertensão e diabetes, e para preveni-las. Se o paciente não tem acesso a um médico clínico-geral para fazer as consultas de rotina, pode agravar doenças e superlotar as emergências.”
• Para a médica, uma alternativa seria aumentar o incentivo aos profissionais. “Acreditamos que uma das formas seria aumentar os incentivos do Governo Federal para atrair mais médicos para o interior, porque hoje eles preferem as grandes cidades e acaba faltando profissionais para os postos de saúde.”
Prefeitura quer ampliar terceirização de serviços
Na tentativa de suprir as vagas ou evitar dificuldades futuras, a ideia de terceirizar o serviço médico ganha cada vez mais força em Venâncio Aires. Segundo Tiago Quintana, o processo facilitaria, por exemplo, na desburocratização de contratos. “Hoje, o processo seletivo e o contrato emergencial ainda são questões que demoram, fora os encargos que precisam ser considerados. Com uma empresa ou universidade fazendo contrato direto e até com a possibilidade de poder oferecer um salário melhor, facilitaria.”
A ideia de Venâncio é implementar em outros postos de saúde do município o que foi iniciado neste ano na Penitenciária Estadual de Venâncio Aires (Peva). Lá, os serviços de médico, enfermeiro, técnico em Enfermagem, dentista, assistente social e psicólogo são geridos pela Univates, com a qual o Município firmou uma parceria em março deste ano. “A Saúde Prisional é uma obrigação nossa, mas terceirizando, conseguimos liberar profissionais para trabalhar diretamente nos postos.”
Conforme o secretário de Saúde, o custo para execução com servidores que existem no quadro municipal chegaria a R$ 85 mil mensais. Através da parceria com a Univates, baixou para R$ 62 mil e pode cair ainda mais, para cerca de R$ 5 mil. Isso porque o Município deve ter confirmada sua habilitação junto ao Governo Federal e a maior parte do programa será custeado pela União e Estado.
Quintana não deu maiores detalhes, mas adiantou que, até o fim do ano, a contratação terceirizada de médicos deve ampliar a oferta de atendimentos e horários em um grande posto de saúde da cidade.
Todos os dias
Se fosse para ter médicos em tempo integral nas unidades, durante todas as manhãs e tardes da semana, Tiago Quintana diz que seria necessário contratar cerca de 15 profissionais e, nesse caso, haveria um impacto no orçamento da Saúde.
Mas, considerando a atual demanda, o objetivo é garantir que os postos tenham médicos todos os dias, em pelo menos um turno. “Seria o ideal. Se conseguirmos preencher essas cinco vagas, mais a terceirização prevista numa grande unidade, teremos condições de atender bem todos os postos na cidade e interior.”
Horários de médicos nos postos
• ESF Mariante: todos os dias manhã e tarde
• UBS Estância Nova: todos os dias de manhã
• ESF Tabalar: todos os dias manhã e tarde
• ESF Macedo: todos os dias manhã e tarde
• EFS Coronel Brito: todos os dias manhã e tarde
• ESF Caic: todos os dias manhã e tarde
• UBS Battisti: terça, quarta e sexta de manhã
• ESF Santa Tecla: todos os dias manhã e tarde
• Vila Deodoro: segunda e quinta de manhã
• Centro Linha Brasil: segunda e quinta de tarde
• Vila Arlindo: terça e sexta de tarde.
• Linha Tangerinas: terça, quarta e sexta de manhã
• Vila Teresinha: terça de tarde
• Vila Palanque: segunda de manhã e tarde; quarta à tarde; quinta manhã e tarde
• UBS Cruzeiro: terça, quarta e quinta de tarde
• UBS Santa Emília: segunda, terça, quarta e quinta de manhã
• UBS Santa Tecla: Profissional 1 – toda manhã. Profissional 2 – terça, quarta e sexta à tarde
• UBS Gressler: Profissional 1 – segunda, terça, quarta e quinta de manhã. Profissional 2 – segunda, terça quarta e quinta à tarde. Profissional 3 – todas as manhãs. Profissional 4 (noite) – segunda, terça e quarta das 17 às 20h
• UBS Central: atendimento ginecológico e pediátrico, manhã e tarde.
• ESF Gressler: Médica em licença maternidade e férias, retorna 15 de agosto.
• Linha Travessa: aguardando reforma
“O que atrai são boas condições de trabalho e remuneração”, afirma professora de Medicina
Clauceane Venzke Zell, que é professora no curso de Medicina da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) e há 16 anos trabalha na rede pública de Santa Cruz, conta que já na formação, muitos alunos não demonstram interesse numa carreira no Sistema Único de Saúde (SUS), mesmo que no início a maioria vai para a rede pública.
“Existe um percentual que realmente gosta de saúde pública, acaba fazendo carreira no setor público e são muito felizes com essa escolha. Mas, com o passar dos anos, vão migrando para a medicina privada ou para os planos de saúde.”
Ainda conforme Clauceane, dos futuros médicos que não pretendem seguir na atenção básica, se ouvem os seguintes argumentos. “A remuneração é menor em relação ao setor privado. Além disso, não se tem valorização, porque as pessoas ainda consideram os médicos do setor público como menos competentes, inclusive não os consideram especialistas. Outro fator é a questão política que sempre interfere no trabalho na rede pública.”
A médica destaca ainda que a universidade procura trabalhar esses aspectos, com a prática voltada para a experiência na atenção básica. “O curso de Medicina é organizado de forma a valorizar o médico generalista, que é quem atua nas unidades de saúde. Desde o primeiro semestre há atividades práticas nos postos de saúde visando contato intensivo com esse campo de trabalho.”
“O que atrai médicos são boas condições de trabalho e boas condições de remuneração. O poder público, em qualquer cidade, precisa oferecer uma rede de saúde bem organizada, com fluxos de encaminhamentos claros e resolutivo. E ter um plano de carreira.”
CLAUCEANE VENZKE ZELL – Médica de rede pública e professora do curso de Medicina da Unisc