“Antes era só um desejo. Agora, já vejo meu futuro.” A afirmação convicta e tranquila é de um rapaz que também transparece convicção e tranquilidade, mas mais ainda orgulho, ao mostrar a mesa de trabalho, em uma fábrica de móveis planejados de Venâncio Aires. Faz poucas semanas que Lucas Gabriel Porto, 22 anos, foi contratado e pode, na prática, unir o que sempre foi talento (o desenho artístico) ao curso de Desenho em CAD, certificação que lhe rendeu um emprego de projetista.
O curso de CAD (software de projeto) feito pelo Lucas faz parte das 34 capacitações oferecidas pelo Qualifica Venâncio em 2022, programa municipal de cursos gratuitos e que já formou mais de 360 pessoas em diversas áreas desde abril. Com investimentos de R$ 310 mil em recursos próprios, a Prefeitura apostou no Qualifica para tentar atenuar um gargalo corriqueiro por aqui e em muitas cidades: às vezes, o problema não é a falta de vaga, mas sim garantir que o candidato ao trabalho tenha a qualificação necessária para o cargo.
Para se ter uma ideia, conforme dados do Mapa do Trabalho Industrial 2022-2025, estudo realizado pelo Observatório Nacional da Indústria, até 2025, o Rio Grande do Sul precisará qualificar 758 mil pessoas em ocupações industriais, sendo que 609 mil são apenas em formação continuada, para trabalhadores que devem se atualizar. Isso significa que, da necessidade de formação nos próximos anos, 80% serão em aperfeiçoamento.
Em Venâncio Aires, o setor da indústria, que evolui no ritmo das máquinas, também vive uma busca constante. Uma prova disso está na lista das vagas que geralmente ‘fazem aniversário’ à espera de candidatos junto à agência FGTAS/Sine: eletricista, soldador, funileiro, torneiro mecânico, fresador e mecânico, por exemplo. Atualmente, são cerca de 200 vagas no Sine por semana e apenas 20, em média, são novas. “A maioria permanece em aberto por não encontrar candidatos suficientes ou são cargos que exigem qualificação”, destaca o coordenador do Sine, Cristiano Kaufmann.
Essa ‘saga’ também foi enfrentada pela Marlô Móveis, fábrica onde Lucas Porto foi contratado como projetista. “Toda vez que precisamos, é uma vaga difícil de encontrar, assim como de marceneiro. Nós anunciamos em rede social, no Sine, em agências de emprego. Isso sem pedir experiência e ainda assim é complicado. Felizmente o Lucas apareceu bem quando abrimos uma vaga nova”, comemora Adriana Teixeira, responsável pelo setor financeiro da fábrica.
Incentivo e continuidade
Lucas é, atualmente, um dos mais de 11,7 mil contratados no setor da indústria de Venâncio Aires, responsável por quase 60% do total de pessoas com carteira assinada no município – conforme dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) de junho.
O jovem, que já trabalhou em metalúrgicas e frigorífico, conta que a mãe, Janice, é uma das maiores incentivadoras e foi através dela que soube do Qualifica. “Eu estava trabalhando em Lajeado, daí ela me avisou que teria esses cursos. Decidi voltar e deu certo. Hoje ela diz para mim: ‘como é bom ter estudo, filho’, porque lamenta não ter tido essas oportunidades quando era mais nova.”
Incentivado pelos pais e pela própria empresa onde está trabalhando, Lucas terminará o Ensino Médio nesse ano e já traçou seu plano futuro: o curso de Design de Interiores. “Sempre gostei de desenho e poder trabalhar com isso é realizar um sonho. Então vou continuar me capacitando.”

Envolvimento social
• Para o professor do Departamento de Gestão de Negócios e Comunicação da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), Julian Israel Lima, a falta de qualificação é algo que tem atrapalhado muito o preenchimento de vagas.
• “Não são poucas as vezes que temos, em meio a uma multidão de inscritos, poucos com os conhecimentos e habilidades requeridos. Entre gestores ou recrutadores em empresas, o discurso é o mesmo: pessoas sem experiência, com pouca ou nenhuma qualificação para as atividades.”
• Mas Lima pondera que para os trabalhos que requerem alta especialização e experiência, o ‘pacote’ que vai fidelizar os melhores profissionais também precisa ser qualificado, o que envolve um ambiente, estrutura, benefícios e um salário que sejam competitivos.
• O professor afirma que a sociedade como um todo precisa atuar para que as coisas deem certo, o que envolve o poder público, a comunidade, empresas e instituições de ensino.
• “Precisa um envolvimento social e a política pública promovida pela Prefeitura para capacitar essas pessoas é algo de muito valor, pois alcança a possibilidade de acesso à renda para um público que, muitas vezes, não teria condições financeiras de fazer uma formação.”
O programa
Dos 368 formados até agora nos cursos do Qualifica, a Prefeitura ainda não sabe precisar quantos já conseguiram trabalho depois da capacitação. A expectativa é ter esses dados até o fim de novembro, quando o programa encerra sua primeira edição.
Mas muitas informações, de pessoas e de empresas, têm chegado aos ouvidos do poder público, por isso, a Administração acredita que tem conseguido ajudar a encurtar o caminho entre quem procura e quem oferece emprego em Venâncio Aires.
“Eram e são necessárias ações para contribuir com o aumento da empregabilidade no pós-pandemia e suprir a carência de mão de obra. Do que temos conversado com empresários e a população, é de que está dando certo”, avalia o secretário de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Turismo, Nelsoir Battisti.
Para a escolha dos cursos, houve uma pesquisa junto às empresas e foram analisados indicadores do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), a demanda de abertura de empresas da Central do Empreendedor e a característica das vagas oferecidas pela agência FGTAS/Sine.
As inscrições (gratuitas assim como os cursos) ocorrem uma vez por mês, sempre num sábado pela manhã, na Prefeitura. Como a inscrição deve ser feita de forma presencial, para valorizar o interesse de quem busca uma vaga e porque nem todos têm acesso à internet, é comum a formação de longas filas, sendo que muitos candidatos procuraram garantir um lugar ainda na noite de sexta.
Entre abril e julho, foram 1.436 horas de cursos divididas entre Senai, Sesi, Sebrae e Fisk (parceiros do programa). Sete turmas com 64 alunos vão começar as aulas ainda em agosto. Depois disso, devem ser confirmadas mais nove turmas com capacidade para 86 alunos. Se a projeção se confirmar, serão 518 formados em 2022.

Soldando o sonho a uma chance
Um dos cursos mais demandados pelas indústrias de Venâncio Aires é o de soldagem. Até agora, 38 pessoas já fizeram a capacitação pelo Qualifica e outros 20 começam neste mês. Na turma concluída nesta semana, uma mulher, algo ainda não tão comum nessa função dentro das indústrias.

“A propaganda era forte de que aqui tinha serviço”, explica Ana Paula da Silva, 28 anos, ao contar porque trocou Progresso, no Vale do Taquari, por Venâncio Aires. Isso foi em 2016 e, na época, ela veio sozinha com o filho, Emanuel, então com 3 anos. Desde que se mudou, passou por tabacaleiras, mas foi dentro de uma metalúrgica que descobriu uma paixão. “Eu via o pessoal trabalhando com solda e fiquei com muita vontade de aprender, é uma função muito importante numa indústria. Meu colega, Dilmar Cortes, me incentivou e por isso me inscrevi”, conta Ana, que atualmente está desempregada.
Com os cursos de solda MIG/MAG e TIG, ela tem alimentado dentro de si uma vontade muito maior que seu 1,54 metro de altura. “É meu sonho trabalhar com isso e espero uma oportunidade. Sei que sempre foi um serviço ‘mais masculino’, mas mulher também pode. Meus colegas e o professor [Julio Chaves] sempre me trataram com muito respeito e me ajudaram muito.”
Expectativa
Enquanto a Ana espera por uma oportunidade, há quem está na expectativa para contratar. Com mais de 20 vagas em aberto, a Multmec e a Multiserv, empresas que desenvolvem produtos para indústrias, enxergam no Qualifica uma possibilidade de suprir parte da mão de obra.
“Já contratamos e a ideia é contratar mais pessoas formadas desses cursos. Porque a gente vê, quando o pessoal vai para a fila para buscar uma vaga, que realmente tem interesse. A capacitação é importante, mas ter vontade de trabalhar também é fundamental”, avalia Enar José da Rosa, sócio-proprietário da Multmec. Ele diz ainda que a dificuldade em encontrar mão de obra qualificada no município existe há muito tempo, tanto que dos 100 funcionários da unidade local, 10 se deslocam diariamente de Santa Cruz do Sul para trabalhar em Venâncio Aires.

Em casa
• Entre os alunos do Qualifica, não existe um único perfil, nem origem de candidatos. Por isso, no meio das turmas é comum escutar sotaques diferentes, mas não apenas do alemão, influência histórica e cultural na cidade devido à descendência germânica.
• Em Venâncio Aires, onde moram cerca de 450 imigrantes de países latinos, o espanhol também virou som comum nas ruas, comércio e empresas. É o caso de Nerelsys Josefina Garcia Guevara, 27 anos. “Já me sinto em casa”, comentou a venezuelana, que está na cidade há três anos.
• Essa sensação de proximidade também se explica porque ela está trabalhando numa área próxima ao que já fazia na Venezuela. Nerelsys fez o curso de Padaria e Cardápios, oferecido pelo Qualifica, o que lhe abriu portas na Nonna Soave, confeitaria do município. “Aprendi muitas coisas no curso, mas aqui estou aprendendo muito mais. É uma grande oportunidade e estou gostando muito.”
Um atrativo para novos investimentos
Estimular a capacitação de mão de obra tem gerado frutos que talvez o Município nem esperasse colher tão cedo: o interesse de empresários em investir seus negócios em Venâncio Aires.
Segundo o secretário de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Turismo, Nelsoir Battisti, o programa é um dos fatores que têm influenciado nas tratativas com empreendedores. “Os empresários têm um olhar muito positivo quando veem que o Município investe recursos próprios na qualificação da mão de obra. Quando a gente faz a propaganda da cidade e apresenta o Qualifica, os olhares são diferentes. Inclusive as próprias prefeituras têm buscado informações, como de Santa Cruz e Caxias do Sul, que são municípios de referência, buscando referência em Venâncio.”
Nelsoir Battisti não deu maiores detalhes, mas confirmou que em setembro o Executivo irá encaminhar para a Câmara de Vereadores um projeto de lei referente à cedência de uma área no Distrito Industrial. O espaço será destinado a uma nova empresa do setor metalmecânico, que deve gerar até 80 empregos. “O Qualifica teve peso na vinda dessa empresa, tanto que quando soube das 20 novas vagas do curso de solda, o dono já disse: manda para mim.”

(Foto: Débora Kist/Folha do Mate)
Qualifica 2023
Os cursos de 2022 estavam previstos para terminar em outubro, mas o prazo foi ampliado porque houve substituição e acréscimo de capacitações que tiveram mais procura. Entre eles, assistente de RH, torneiro mecânico, eletricista, soldador, operador de empilhadeira e auxiliar administrativo.
“O programa ainda não terminou, mas já é um sucesso. Há uma grande procura e quem conseguiu sua vaga, a grande maioria está fazendo o curso. Quem está em formação ou já concluiu, as empresas estão de olho. A qualificação é o caminho”, ressalta o prefeito Jarbas da Rosa.
Conforme o prefeito, a continuidade do programa em 2023 está sacramentada e cursos da área industrial e outros da área da inovação e tecnologia da informação, serão oferecidos no próximo ano. Para isso, a Prefeitura trabalha na elaboração do projeto, identificando as necessidades, e já reservou parte do orçamento disponibilizado nesse ano no programa.