Era para ser Maria Aparecida, nome mais do que natural dado a muitas meninas que nascem em 12 de outubro no Brasil, para homenagear a padroeira do país. Mas, por insistência do pai, foi batizada como Sara, que na Bíblia é descrita como ‘mãe das multidões’.
Ainda que seja apenas coincidência histórica ou de significados, fato é que Sara da Rosa tem tudo a ver com duas datas bastante celebradas por aqui: 12 (Dia de Nossa Senhora Aparecida e das Crianças) e 15, Dia do Professor, afinal, ela se dedicou à sala de aula por mais de quatro décadas e, desde 2005, lidera um grande trabalho social com crianças carentes de Venâncio Aires. Nesta reportagem especial, a Folha do Mate conta parte da trajetória dos 80 anos da professora Sara.
Alfabetizada por Odila Rosa Scherer
Pelas mãos de Maria Kunz, ou ‘Kunz Marichia’, como era conhecida a parteira da pequena Venâncio Aires de oito décadas atrás, uma menina veio ao mundo no fim da tarde de 12 de outubro de 1942. Sara, que quase foi Maria Aparecida para homenagear a padroeira do Brasil, era a primogênita de Amélia (1926-2017) e Pedro Anhanha (1914-1955) e nasceu numa casinha de madeira junto ao campo do Guarani (estádio não existia), do qual Pedro era o zelador. Bem próximo do local, só havia um córrego, futuramente canalizado e que conhecemos como Sanga do Cambará.
Além de zelador, outro trabalho de Pedro era abrir poços e verificava as medições com uma simples vareta. Como Venâncio tinha uma vasta área ainda inexplorada, ele levou a família para um ponto ‘retirado’ da cidade. Foram morar na região então conhecida como ‘Campo Aberto’ (atual bairro Cidade Nova) e lá teriam mais cinco filhos, numa casa de chão batido e com paredes de taquaras e barro. Para dar conta da prole, Amélia não trabalhava fora e a mais velha, Sara, também já tinha grandes responsabilidades, mesmo com apenas 9 anos. Precisava ajudar a cuidar dos irmãos mais novos, mas, no fundo, tinha um único desejo: estudar.
Em 1952, as opções para a educação das crianças venâncio-airenses do Centro eram o Monte das Tabocas ou o ‘colégio das Irmãs’, o Aparecida. Mas deixar uma filha andar tão longe, todos os dias para estudar? O irredutível Pedro não aceitava e, por isso, até então, Sara não tinha frequentado a escola. Mas foi nesse ano, durante o tratamento de saúde de um dos filhos, que tudo mudou.
Antoninho, um dos caçulas, era um menino muito doente (faleceria ainda bebê) e, seguidamente, Amélia o levava para os cuidados de doutor Zeimann, que atendia no então posto de saúde (prédio onde funcionava a Secretaria de Cultura). Em tempos onde não havia distribuição gratuita de medicamentos, o jeito era comprar, algo impossível para uma família pobre.
Já naquela época, as primeiras-damas dos municípios desenvolviam um trabalho mais social. O prefeito era Alfredo Scherer (1909-1992), que estava no primeiro mandato, e a esposa dele, a professora Odila Rosa Scherer (1909-1978), integrava a Legião Brasileira de Assistência, fundada na década de 1940 pela então primeira-dama do Brasil, Darcy Vargas, esposa do presidente Getúlio. “As primeiras-damas já tinham um trabalho com pessoas carentes e eu lembro de acompanhar a mãe nessas idas no posto. Numa dessas, fomos na Prefeitura, onde a dona Odila deu uma receita assinada. Com isso, pegamos o remédio gratuitamente no farmacêutico Goswino Storck [o homem que construiu o Edifício Storck, hoje sede do Museu]”, lembra Sara.
Foi assim que ela conheceu Odila, mulher que se tornaria uma das figuras mais importantes da vida dela. “Os Scherer moravam na rua principal [onde hoje é a loja Lebes]. Eu sabia que ela era alfabetizadora e um dia falei que tinha muita vontade de aprender a ler e a escrever. Esse pedido também era de uma criança que já tinha passado fome e frio. Nós realmente éramos muito pobres.”
Coincidentemente, naquele ano a filha mais velha dos Scherer (Ione) casou e saiu de casa. Ficaram, então, os quatro rapazes: Gleno, Glauco, Rogério e Ronei. Já saudosa de sua menina, Odila viu em Sara a possibilidade de ter novamente uma filha dentro de casa. O problema era convencer Pedro Anhanha. “O pai não queria. Mas minha mãe, que apesar de analfabeta era sábia, disse: se ela quer, é porque tem seus motivos. Ela vai.” Na intermediação, a amiga dos Anhanha, Pedra da Silva, que trabalhava na casa dos Scherer, ajudou a convencê-lo. “Assim, sem papel, sem autorização formal, apenas na confiança dos meus pais, fui morar com os Scherer e virei uma espécie de filha para eles para o resto da vida.”
Finalmente, a escola
Quando a mudança aconteceu, já era metade do ano e Sara não pode ingressar na escola regular. Mas nem por isso estava ‘por fora’ das coisas. Curiosa e atenta, ela gostava de acompanhar a rotina de Odila, que corrigia em casa as cartilhas dos alunos do Monte das Tabocas. “Eu sentava junto com ela e tentava imitar o que os alunos faziam. A dona Odila começou a me ensinar também e, em seis meses, eu estava alfabetizada. E sempre fiz letra cursiva.”
A matrícula no Monte aconteceu no ano seguinte. Por uma questão de ordem, Sara deveria ingressar no primeiro ano, mas a então diretora, Wilma Helena Kunz, fez um teste com a novata. “Me mandou ler e escrever algumas coisas e também resolvi umas contas de Matemática. No fim, ela determinou que eu já estava apta para ir direto ao segundo ano e minha professora foi Ermelinda Becker [filha de Jacob Becker].” Além dela, Sara passou pelas professoras Ilca Metzdorf, Glacy Mergener e Ivone Braga.
Latim e Português com Pedro Beno Bohn
Na década de 1950, o Monte das Tabocas só tinha até o 5º ano. Para quem queria continuar a estudar, o jeito era tentar uma vaga no Ginásio (quatro anos seguintes ao primário) do Aparecida. Sara, sempre incentivada por Odila, foi bem na prova e garantiu uma vaga. A então adolescente continuou vivendo com os Scherer, embora nunca tenha perdido contato com a família ‘de sangue’.
Essa relação familiar precisou se fortalecer ainda mais, já que, em 1955, Pedro, que era alcoólatra, tirou a própria vida, com apenas 41 anos. “A dona Odila também ajudou muito minha mãe e irmãos. E assim foi por muito tempo, seja com roupas, comida ou médico.”
Enquanto isso, Sara se concentrava nos estudos e teve oportunidade de aprender com outra figura ilustre de Venâncio. “O ginásio tinha uma base curricular rica e aprendíamos Inglês, Francês e Latim”, descreve. Neste período, em sala de aula, seu grande mestre em Latim e Português foi Pedro Beno Bohn (1923-1975), professor que dá nome à escola de Vila Arlindo.
Família
Foi num baile de Carnaval do Clube Sete de Setembro, em 1961, que Sara começou a namorar Itor da Rosa, hoje com 81 anos e bancário aposentado, também ex-secretário Municipal de Indústria, Comércio, Turismo e Desporto nos governos Glauco Scherer, Almedo Dettenborn e Celso Artus.
O casamento ocorreu em 1963 e o casal teve dois filhos: Itor Junior, hoje com 55 anos, e Ana Paula, de 42. Sara e Itor também são avós de Pedro, Leonardo e Valentina, filhos de Itor e Claudia.
Mais de 40 anos em sala de aula
No início da década de 1960, o governo Leonel Brizola investiu fortemente na educação pelo território gaúcho. Aos 18 anos, Sara da Rosa fez parte desse processo de formação profissional e através dela viveu sua primeira experiência como professora, morando e trabalhando em Linha Sete Léguas, atual município de Boqueirão do Leão.
O local era a escola Rui Barbosa, mantida solitariamente por Ancídia Wagner, professora que dava conta de cerca de 100 alunos de 1º a 5º ano. “Eu assumi a alfabetização e a turma de 3º ano. Foi lá, a mais de 50 quilômetros do Centro de Venâncio, que somei para minha vida experiências inesquecíveis. Vi que a pobreza não estava só na minha família”, relata.
Sara conta que a maioria das crianças vinha de famílias muito humildes. “Tinha uma horta, que os pais ajudavam, e dela, todo dia, saíam os ingredientes para uma sopa que a Ancídia fazia. No inverno, muitos mal tinham roupa. Como do lado da escola tinha uma olaria, eles nos traziam uma folha de zinco com brasa em cima. Daí as crianças esquentavam as mãozinhas para pegar o lápis.”
Foi com Ancídia Wagner, aliás, que Sara também aprendeu algo que a acompanha até hoje: uma receita que leva farinha, água, sal, açúcar, fermento e muito amor. Trata-se do famoso pão que incrementa o lanche das crianças que frequentam a Paresp.
Formação e atuação
• Ainda nos anos 1960, Sara fez o curso Normal (magistério) no Aparecida (integrou a segunda turma de normalistas). Nesse meio tempo, vai lecionar Ensino Religioso no Oliveira Castilhos. A faculdade de Letras ela concluiu em 1974, já nas Faculdades Integradas de Santa Cruz do Sul (Fisc).
• Enquanto trabalhava e estudava, continuou tendo o apoio das duas mães: Amélia, ajudando a cuidar do filho, Itor Junior, e Odila, contribuindo para os estudos. Também foi em 1974 que ela faz seu primeiro concurso público estadual. Depois disso, leciona nas escolas Leo João Frölich (17 de Junho), Frida Reckziegel (Palanque), Aparecida, Monte das Tabocas e Cônego Albino Juchem.
• Durante o primeiro mandato de prefeito (1989-1992) do ‘irmão de coração’, Glauco Scherer, Sara se torna supervisora na Secretaria de Educação de Venâncio. Também lidera um projeto de alfabetização e orientou professores dentro da 6ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE).
• Diretamente em sala de aula, Sara se aposentou em 2004, aos 62 anos. Mas já no ano seguinte, daria início a um novo desafio e que se tornaria um dos maiores projetos sociais de Venâncio.
Uma parceira da esperança
Desde 2005, atendendo crianças e adolescentes entre 4 e 17 anos no turno oposto ao da escola, a ONG Parceiros da Esperança (Paresp) já recebeu mais de 6 mil jovens. “Nunca duvidei que a Paresp traria uma contribuição social para Venâncio. Eu sentia a realidade vulnerável de muitas crianças e isso não só despertou o desejo de uma fundação, mas uma dedicação pessoal, com o propósito de resgate de vidas”, afirmou Sara, ao lembrar do início do projeto, que também tem como fundadoras Rejane Genz, Alília Schwengber e Lori Pitsch.
Naquela época, percorrendo os bairros da cidade, a professora reuniu 140 crianças e, assim, tudo começou, no antigo prédio do Casva, ao lado da esfola Oliveira Castilhos. Hoje, são 92 jovens no prédio próprio, no bairro Morsch. “É um trabalho que contempla o centro de atendimento, a escola e as famílias dessas crianças.”
A Paresp é uma entidade filantrópica e todo o atendimento é gratuito para os usuários, por isso, conta com o apoio de diversas empresas, além do poder público e doações da comunidade.
Atualmente, Sara é a diretora institucional. O filho Itor é o presidente e o neto Leonardo faz a supervisão geral. Da família, ainda trabalham diretamente a filha Ana Paula, que é pedagoga, e a nora Claudia, como professora.
Resgatando vidas
Quando faz um balanço da sua trajetória, Sara reconhece que não foi por acaso que se tornou educadora e uma agente do trabalho social. Na infância pobre e mesmo muito antes de descobrir as letras, ela já tinha dentro de si uma convicção. “Desde que me conheço por gente, eu tinha certeza que trabalharia para ajudar alguém. Por isso que queria tanto aprender, para poder ensinar depois.”
Nessa história que completou 80 anos no último dia 12, a professora aposentada diz que talvez foi Odila Rosa Scherer (professora que dá nome à escola do bairro União), a figura mais emblemática na sua vida. “Entendo que o verdadeiro educador deve praticar a inclusão social. Se a dona Odila não tivesse me resgatado, me dado aquela oportunidade, talvez eu não teria vencido os desafios da minha vida. Por isso sempre fui tão determinada e realimento a vontade de ajudar até hoje. Acho que dona Odila deve estar orgulhosa, assim como minha mãe Amélia, que passou dos 90 anos e sempre doava farinha para eu fazer os pães das crianças na Paresp.”
“O que nutre minha esperança no futuro, é ter uma geração mais comprometida com valores e traçando seus projetos na caminhada do bem, para que possam usufruir seus direitos, cumprindo seus deveres.”
SARA DA ROSA – Professora aposentada
Um certo livro
A trajetória de Sara da Rosa é carregada de simbolismos: dias da Criança, do Professor, a infância pobre e o trabalho social que ainda desenvolve aos 80 anos de idade. Além disso, a particularidade de ter convivido com pessoas que hoje são nomes de escolas e ruas de Venâncio Aires. É a história viva! E o nome dela, que o pai talvez não tivesse dimensão da referência bíblica, mas que remete à ‘mãe das multidões’, outro conceito que cabe perfeitamente a essa figura conhecida como ‘profe’, mas também uma mãe para muitos que já foram seus alunos ou que foram recebidos na Paresp.
No caso desta repórter, Sara também foi importante. Fui aluna dela em 2001, na 8ª série do Cônego Albino Juchem. Com 14 anos já lia muito e vivia com um livro nas mãos no intervalo das aulas. Um dia, professora Sara chega ao meu lado e me alcança um exemplar de ‘Um certo capitão Rodrigo’. “Acho que tu já tem condições de ler esse aqui”, me disse. Eu nunca agradeci a ela pelo incentivo constante à leitura e nem por ter me ‘provocado’ a conhecer a maior obra que já li na literatura brasileira, ‘O tempo e o vento’, daquele que considero o maior escritor do país: Erico Verissimo.
Claro que eu não precisava esperar mais de 20 anos para fazer isso, mas são daquelas coisas que a vida se encarrega em algum momento, como esta oportunidade de ser eu a contar a trajetória dela na semana em que completou 80 anos. E já que é Dia do Professor, aproveito para agradecer a todos os mestres que tanto me ensinaram, em especial à Sara da Rosa. Obrigada por aquele livro, profe, mas obrigada, principalmente, por essa aula constante de cidadania.