Coronel Brito: uma história de Venâncio na Revolução de 1923

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Para além dos estádios de futebol, por aqui um termo se tornou popular e, por isso, costumamos dizer que tudo é motivo de ‘grenalização’. Simples assim: ou se é vermelho, ou se é azul. Mas essa característica não é, necessariamente, culpa do futebol ou, no caso, da rivalidade secular entre Grêmio e Internacional. No Rio Grande do Sul, ter opiniões, gostos e simpatias completamente distintas remete à história, especialmente às guerras que dividiram o estado por duas vezes, também entre duas cores. Mas, em vez de camisas, eram lenços, brancos e vermelhos. O último grande embate entre chimangos e maragatos aconteceu há exatos 100 anos, quando duas figuras políticas rivalizaram: Borges de Medeiros e Assis Brasil.

De uma forma ou de outra, a guerra também respingou numa pequena cidade, ainda uma vila em formação ao redor de uma igreja em honra a São Sebastião. Nesta matéria, a Folha do Mate traz um pequeno resgate de personagens de Venâncio Aires naquele cenário de 1923, como o intendente João Luiz Ferreira de Brito, o Joca, mas que ficou, para a história local, conhecido como Coronel Brito.

Em uma das poucas fotos que fez na vida, um registro de João Luiz Ferreira de Brito está na Galeria dos Ex-Prefeitos, no prédio da Prefeitura (Foto: Acervo Prefeitura)

‘Seu Joca’, o conciliador

O pano de fundo dessa história, que traz personagens que viveram em 1923, poderia ser o mesmo de 1893, quando o Rio Grande do Sul também estava em guerra. Vamos às comparações: a Revolução Federalista do fim do século XIX tinha como objetivo a troca da oligarquia que estava no poder (no caso Júlio de Castilhos), pela que foi rejeitada pelo governo, liderada por Gaspar Silveira Martins. Castilhos e Martins eram os nomes fortes dessa briga, mas foram os apelidos dos grupos que duelaram que ganharam fama: chimangos e maragatos.

Trinta anos depois, em 1923, os mesmos apelidos voltaram, mas agora designavam os apoiadores do governador Borges de Medeiros (chimango) e de seu principal opositor político da época, Assis Brasil (maragato). Em meio a mais uma peleia, algo quase inerente aos gaúchos que nasceram no século XIX (basta lembrar, ainda, da Revolução Farroupilha), houve quem preferiu a tranquilidade e procurava levar assim o município que administrava.

Era o caso de João Luiz Ferreira de Brito (1870-1925), intendente de Venâncio Aires durante a Revolução de 1923. Brito era do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), o mesmo que teve cinco mandatos consecutivos com Borges de Medeiros no governo gaúcho. Por aqui, Brito teve três mandatos seguidos (1912 a 1924), mas, conforme Ana Maria de Brito Lopes, 75 anos, neta do intendente, o feito nada teve a ver com imposição partidária. “Ele detestava o autoritarismo e procurava sempre ser um conciliador. O caráter das administrações dele era sempre de conciliação e isso se estendia na Câmara de Vereadores e às pessoas nas comunidades”, conta a professora aposentada.

Ana Maria relata que o avô era muito reservado, trabalhava quieto, não gostava de exposição, muito menos de fotografias. Por isso, ele nem aparece num registro feito em 1924, logo depois da Revolução, onde estão homens que integraram uma espécie de guarda em Venâncio Aires para proteger o município de possíveis embates mais violentos (veja box). “Vovô tinha muitos contatos em outras cidades e ficava sabendo com antecedência muitas coisas. Como era tempo da Revolução, chamava as lideranças das comunidades e orientava para que ficassem, por alguns dias, mais reservados. Que não andassem sozinhos, nem deixassem animais soltos, porque se tinha medo de ataques nas casas e propriedades.” A professora aposentada conta ainda que o avô mantinha uma arma em casa, mas ninguém nunca o viu com ela. “Ele era um pacifista, não gostava de nada relacionado à violência. Por isso, em Venâncio, mesmo que houvesse pessoas com pensamentos diferentes, ele conseguiu evitar problemas. Não teve antagonismo bélico, mas sim prevenção.”

Esquadrão provisório

Em 22 de março de 1923, o jornal Correio do Povo falava de uma ‘agitação em Venancio Ayres’. O texto dizia o seguinte, aqui mantida a respectiva grafia da época: “Venancio Ayres, 20 – procedente deste municipio e dos de Lageado e Taquary, seguiu em direcção á serra um grupo de homens armados aproximadamente cincoenta, chefiado por Annibal Geraldo Pereira, federalista que tomou parte saliente na revolução passada.”

“Pessoas aqui chegadas, que viajavam de automovel, reconheceram na referida força, entre outros, a Amandio Gomes e Octaviano Silva. Todos os componentes do grupo estavam armados de carabina e municiados. Segundo uns, subiram a serra afim de angariar elementos para atacar esta villa, segundo outros seguiram para se reunir ás forças do coronel Leonel Rocha, na região serrana.”

“O esquadrão provisorio da Brigada Militar aqui organisado pelo capitão Camillo Teixeira está de prevenção, aquartelado na Intendencia. O mesmo succede com a policia municipal e muitos civis, armados para a emergencia de defender esta villa. Chegou a Rio Pardo o 13º regimento de cavallaria, para guardar a estação telegraphica.”

Quem ajudou a organizar o esquadrão foi o capitão Camilo Joaquim Teixeira (1868-1966), que aparece numa fotografia feita em 1924. A reportagem buscou contato com descendentes dele, a maioria bisnetos, mas que tiveram pouco convívio e, por isso, são poucas as memórias. Do que se sabe sobre ele, é que foi promotor, delegado de Polícia e político.

Em 1923, foi nomeado, como ativista republicano fiel ao borgismo, capitão comandante para uma esquadra provisória para os municípios de Lajeado e Venâncio Aires, juntamente com o tenente Arlindo Mercio Pereira e Linicio Duarte da Silva. As informações são do engenheiro civil e ex-secretário de Planejamento de Venâncio Aires, Lúcio Konzen, que se dedica ao estudo da formação do município há mais de 10 anos e encontrou muitos dados em jornais da época.

Ainda de acordo com as pesquisas de Konzen, Camilo Teixeira organizou e presidiu o PRL em Vila Mariante, em 1934. Em 1935, foi eleito vereador representando a Comissão Distrital Porto Gomes-Mariante e, em 1937, foi vice-presidente do PRL no município. Teixeira faleceu com quase 100 anos e está sepultado no Cemitério Municipal.

Ainda sobre essa guarda de 1923, entre os participantes estava Olmiro Lopes de Campos (1900-1972), filho de Miguel Macedo de Campos (que dá nome à escola de Linha Herval). Olmiro era um jovem agricultor e comerciante na época, conhecido em Linha Herval como Loca Macedo. Ele é avô de Marco Antônio Lopes, 78 anos, marido de Ana Maria de Brito Lopes, neta do Coronel Brito.

Registro feito em 1924, logo depois da Revolução, de homens que teriam integrado um esquadrão provisório em Venâncio Aires (Foto: Arquivo pessoal)

“Ele tem razão”

Nascido em Rio Pardo, João Luiz Ferreira de Brito morava na região de Cruzeiro do Sul quando decidiu vir com a família para uma Venâncio Aires ainda ‘criança’, em 1897. Era comerciante, com conhecimento administrativo, e também estudou Direito. Por isso, ainda naquele ano, foi convidado para ser secretário e tesoureiro da Intendência na gestão de Narciso Mariante de Campos. Em 1912, é eleito intendente. A partir de então, Joca, como era conhecido, também começou a ser chamado de coronel, termo usado para designar chefes políticos. O coronelismo, aliás, conforme o historiador Márcio Marquetto Caye, foi um sistema que serviu para dar suporte legitimador e de manutenção ao borgismo. Mas, em Venâncio, a história não teria seguido um caminho autoritário com Brito. “Quem o conheceu, sabe que ter ficado 12 anos na Intendência não teve a ver com imposição, como aconteceu em muitos lugares no estado. Aqui ele era aceito nas rodas de conversa e respeitava as opiniões. As pessoas o procuravam até para resolver questões de família e acho que essa confiança se estendia nas eleições, porque votavam no Joca”, comentou a neta, Ana Maria.

Brito construiu uma casa na rua Tiradentes, em frente à Praça Católica, no mesmo ano da Revolução. A residência não existe mais e neste endereço está atualmente o Edifício Tiradentes (Foto: Arquivo pessoal/Reprodução Facebook)

A boa relação que o avô tinha com os moradores de Venâncio talvez passasse, também, pelas ideias que o intendente tinha sobre administração e avanços para a cidade. Dentro de casa, na residência que ele construiu, justamente em 1923, falava com respeito do principal opositor político de Borges de Medeiros. “Vovô não falava o nome, mas sempre dizia, quando lia uma notícia ou ficava sabendo de alguma ideia do Assis Brasil: ele tem razão”, revela Ana. Segundo a professora aposentada, Brito admirava as ideias científicas e mudanças na política agrícola, principalmente na pecuária, defendidas por Assis. Foi ele, aliás, quem introduziu o gado Jersey no Rio Grande do Sul. “Aquela ideia de ser republicano, de ser arrojado, seguia com ele. Mas, ao mesmo tempo, ficava triste com os comentários do atraso do estado em muitos aspectos. Então, naquilo que ele acreditava e admirava, independente do partido, ele fazia acontecer. Já estava incorporado nele antes mesmo do Assis Brasil.”

Avanços

Ana Maria de Brito Lopes conta que o intendente, reservado como era, falava pouco e, muitas das opiniões, dividia apenas com padre Albino Juchem, de quem se tornou amigo. “Eram vizinhos de quadra e conversavam muito. As ideias dos dois casavam, apesar de vovô falar muito em ‘ciência’, uma palavra que, para a religião na época, era oposta. Mas se respeitavam demais.” Conforme a professora, outra palavra dita seguidamente por Brito era ‘progresso’. “Procurou atualizar Venâncio e ajudou a trazer a eletricidade e o telégrafo. Teve até uma festa com piquenique para comemorar a instalação.” Outra preocupação do intendente, conforme a neta, era com o planejamento urbano. “A cidade não cresceu a esmo. Foi planejada a partir das quadras centrais, trabalho que também teve o agrimensor José Duarte de Macedo como nome importante.”

Curiosidades

  • João Luiz Ferreira de Brito teve dois casamentos e oito filhos no total. Dos cinco filhos do primeiro matrimônio, uma era Zilda (depois casada com o major Hermes Pereira) e que no futuro viraria nome de escola no bairro Gressler.
  • Brito tinha muito orgulho de ser sobrinho de José Joaquim de Andrade Neves, o Barão do Triunfo, que lutou na Guerra do Paraguai. E era irmão de Antônio Augusto Ferreira de Brito (este que virou nome de rua em Santa Cruz do Sul – Tenente Coronel Brito).
  • Construiu uma casa na rua Tiradentes, em frente à quadra da Praça Católica, no mesmo ano da Revolução. Mas também tinha muitos hectares na parte leste da cidade, onde mais tarde se formou um núcleo populacional, hoje conhecido como bairro Coronel Brito.
  • Exatamente um ano depois de deixar a intendência (para a volta do coronel Thomaz José Pereira Junior), Joca morreu, com apenas 55 anos, em novembro de 1925. Ele sofria há muito tempo de asma e também desenvolveu problemas cardíacos. Está sepultado no Cemitério Municipal.

Tratado de Paz

A Revolução de 1923 carrega o ano no nome porque começou e terminou naquela temporada, entre janeiro e dezembro. Talvez pela ‘curta’ duração e por ter tido ‘menos sangue derramado’, é um fato pouco lembrado, às vezes. A guerra terminou com a assinatura do Pacto de Pedras Altas, no castelo daquela localidade, casa de Assis Brasil.

Com o acordo, Borges de Medeiros poderia cumprir seu mandato até 1928, mas não poderia se reeleger. Na eleição seguinte, venceu novamente um candidato ‘lenço branco’ e que, nas décadas seguintes, daria muito o que falar na história do Brasil: Getúlio Vargas.

Amigos dos tempos de A Federação

Borges de Medeiros, então governador do Estado em 1923, foi um dos idealizadores do jornal A Federação, principal veículo de divulgação dos ideais políticos do Partido Republicano Rio-grandense (PRR) desde os anos 1880. O primeiro redator do jornal, em 1884, foi um jornalista e advogado paulista, que morreu um ano depois.

Quando o processo de emancipação da Freguesia de São Sebastião Mártir chegou ao governo, em 1891, Fernando Abott ocupava o cargo de governador. Como Abott era amigo desse jornalista paulista, decidiu fazer uma homenagem: o novo município teria o nome do falecido. Assim, nasceu a história de uma cidade que já tem 132 anos: Venâncio Aires.

As memórias de Alice e o relógio que ficou

Pouco está documentado sobre Venâncio nos tempos da Revolução de 1923. De forma geral, a respeito da época, há o sempre importante livro Abrindo o Baú de Memórias. Também li A Era Borgista, do Círculo de Pesquisas Literárias, emprestado pela historiadora Angelita da Rosa. Mas a maior parte das informações dessa matéria me foi contada pela professora Ana Maria de Brito Lopes, 75 anos, neta do Coronel Brito. São relatos da história oral, algo de muito valor para o Jornalismo. Ana não conheceu o avô, mas todos os detalhes lhe foram narrados por uma tia, Alice (1894-1983). Foi por causa dela, aliás, que Brito veio para Venâncio Aires, em 1897. Alice ficou cega ainda pequena e, com a facilidade do transporte portuário por Mariante, estavam mais perto de Porto Alegre para buscar tratamento médico.

Relógio é da marca Ansonia Clock Company, um dos principais fabricantes de relógios americanos do século XIX. Objeto tem cerca de 150 anos e pertenceu a Ismael Marques da Costa (Foto: Débora Kist/Folha do Mate)

Alice não voltou a enxergar, mas aprendeu tudo com o pai e testemunhou muitas dessas histórias. Além das memórias da tia sobre 1923, Ana dividiu comigo uma outra história de família que tem, também, a ver com o passado de Venâncio. A professora aposentada é, do lado materno, bisneta de Ismael Marques da Costa, que também foi intendente no município no fim do século XIX. Era ele, aliás, quem comandava a cidade na Revolução anterior, em 1893. Naquele ano, a casa foi invadida e a mulher estava sozinha com os filhos. “Levem tudo. Mas aqui não vão tocar”, determinou Maria Philomena, sentada sobre a cama, na qual as barras dos vestidos das moças esconderam os pés do leito, onde estavam escondidos os rapazes.

Animais, comida e utensílios foram roubados. Mas um objeto ficou: um relógio de parede e que, em pleno 2023, segue na família, na casa de Ana Maria. Segundo ela, o relógio foi um presente de casamento do bisavô, portanto, tem cerca de 150 anos. Para mim, ter oportunidade de tocar no objeto foi como ‘viver’ esse passado. O relógio ‘poupado’ pelos revoltosos em 1893 está bem guardado e preservado. É mais um pedaço da história de Venâncio, da qual ainda temos muito a descobrir e aprender a preservar.



Débora Kist

Débora Kist

Formada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc) em 2013. Trabalhou como produtora executiva e jornalista na Rádio Terra FM entre 2008 e 2017. Jornalista no jornal Folha do Mate desde 2018 e atualmente também integra a equipe do programa jornalístico Terra em Uma Hora, veiculado de segunda a sexta, das 12h às 13h, na Terra FM.

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