Quem tem entre 30 e 40 anos deve lembrar daquela música que diz: ‘Panela velha é que faz comida boa’, um verdadeiro clássico do sertanejo e que fez muito sucesso na voz de Sérgio Reis. Mas, mais do que a panela, há quem diga que uma boa comida também depende do fogão. É o caso de Sybilla Keller Renz, 86 anos, moradora de Linha Cachoeira, interior de Venâncio Aires. “A comida tem outro gosto”, afirma, ao se referir à prática de cozinhar no fogão a lenha.
Sybilla não é a única fã de fogões a lenha, mas a aposentada tem uma situação quase particular e raríssima hoje em dia: o fogão dela tem mais de 100 anos. O item da marca Wallig Fabricantes e Cia, de Porto Alegre (veja abaixo) chegou na família Renz há mais de 50 anos, quando Sybilla e o marido Oswaldo Felipe Renz (1932-2017), procuravam um ‘novo’. “Ele pertencia à Berta Klamt, que ia voltar da Linha América para Linha Isabel, e achava complicado levar de volta. Daí ficamos com ele”, lembra Sybilla. Conforme a aposentada, antes ainda, o fogão pertenceu à família Parckert, de Linha Isabel, que teria comprado o Wallig ‘novo em folha’ há 103 anos.
Característica
A data de fabricação, 1920, está entalhada sob uma das chapinhas que revestem a frente da gaveta onde caem as cinzas. Os puxadores e toda a estrutura frontal e lateral são originais, com as flores em alto-relevo, pintadas à mão. Naturalmente, com o uso e ação do tempo, parte da estrutura interna e externa está bastante desgastada. A chapa superior, de ferro fundido, precisou ser substituída neste ano, porque as antigas bocas estavam muito deterioradas.
Com a renovada, estão garantidos ainda alguns anos para Sybilla continuar preparando a comida, já que é a cozinheira ‘oficial’ da casa. “Acho que agora dura mais uns 100 anos”, brincou Gelson Renz, 49 anos, filho de Sybilla. É ele, aliás, o responsável por fazer o primeiro fogo do dia, por volta das 6h. Para o almoço e o fim da tarde, a tarefa geralmente é da aposentada. “Sempre tem que ter água quente para tirar o leite”, explica ela, sobre lavar o úbere da vaca para a ordenha. Na casa dos Renz, seja no inverno ou no verão, o fogão a lenha está sempre ‘trabalhando’ e é no entorno dele que geralmente a família se reúne para o chimarrão. Além de Sybilla e Gelson, moram na residência a esposa de Gelson, Claudete, 46, e o filho caçula deles, Alan, de 11 anos.
A herança da ‘vó de coração’
O outro fogão a lenha centenário ainda preservado no interior de Venâncio está em Vila Teresinha, na casa de Maciel Lermen, 31 anos, e Regina Taís Wille, 28. O jovem casal também tem um Wallig 1920, quase idêntico ao que está com os Renz, em Linha Cachoeira. O que muda é levemente o tom da cor das flores e o lado da torneira para água quente e da porta da fornalha.
O fogão foi dado de presente para Maciel no ano passado e pertenceu a uma ‘vó de coração’ dele, Elmira Geller, que faleceu em 2022, aos 96 anos. Conforme Regina, a peça é totalmente original, inclusive a chapa superior. Pelo uso e pela ação do tempo, o fogão também tem várias partes desgastadas, mas nada que impeça seu pleno funcionamento, seja para cozinhar, esquentar água ou manter o espaço aquecido, onde brincam os filhos do casal, Henrique, 5 anos, e Pietra, de um.
Em Santa Clara, outro fogão e uma geladeira Steigleder
• Além dos fogões em Teresinha e Cachoeira, um terceiro Wallig 1920 também faria parte desse pacote que chegou a Venâncio Aires há um século. Conforme Regina Taís Wille, ele está na casa de Ivo Eckert, no município de Santa Clara do Sul.
• Eckert é vizinho de Vianei Wille, pai de Regina e o qual também mantém uma relíquia em casa: uma geladeira Steigleder, que marcou época por ser a primeira de muitas famílias gaúchas. O maquinário da Steigleder foi adquirido por Walter Bergamaschi em 1998, quando a Venax, de Venâncio, passou a fabricar refrigeradores.
Durabilidade
Os fogões centenários ainda preservados no interior de Venâncio foram fabricados pela Wallig, metalúrgica fundada em Porto Alegre, em 1904, por Pedro Wallig, imigrante alemão, e que teve continuidade com os filhos. Segundo Walter Bergamaschi, proprietário da Venax Eletrodomésticos, durante décadas a empresa se consolidou como a maior fábrica de fogões do Brasil. “Em 1966, quando eu tinha 19 anos e fui estudar em Porto Alegre, além de ser uma referência em produto, era uma empresa muito disputada para quem buscava trabalho. Os fogões eram sinônimo de qualidade e entre os anos 1920 e 1960, quem casava, o sonho de consumo era um Wallig.”
Bergamaschi explica ainda que a empresa também fez sucesso com a fabricação de fogões a gás, que começaram a atrair consumidores na década de 1950, quando foram desenvolvidos os botijões menores, de uso doméstico. Devido a uma crise financeira, encerrou as atividades no início dos anos 1980. Questionado sobre o que pode ter contribuído para tamanha durabilidade dos fogões já centenários, o empresário menciona o tipo de material usado na época. “Se usavam outras espessuras de chapa, por exemplo, o que foi mudando com o tempo, devido ao próprio consumidor. Eram itens muito pesados e se fossem feitos hoje ainda, o produto iria encarecer muito.”
Conforme Bergamaschi, atualmente a média de durabilidade de um fogão a lenha varia entre 15 e 20 anos, mas ele pondera. “Assim como tem carros com 50 anos rodando muito bem, tem outros com dois anos e já não estão bons. Isso vale para tudo entre eletrodomésticos e móveis. Muito depende do cuidado no uso.”
Confira o vídeo produzido pelo influenciador digital Alemonzito:
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