Quem nunca foi num show da Fenachim? Quem nunca tomou chimarrão no gramado da Igreja São Sebastião Mártir? Quem nunca comeu um xis do Ilgo? Quem nunca foi numa Festa do Bastião ou sentiu aquele cheiro adocicado exalando das fumageiras? É pouco provável que o venâncio-airense não se identifique com algumas dessas situações. São momentos e cenários que só quem é do município entende, afinal, são aspectos quase inerentes a tantas gerações.
Um exemplo é para indicar algum local próximo da esquina das ruas Júlio de Castilhos e Jacob Becker. O mais comum é ouvir o seguinte: é ali, pertinho da antiga rodoviária (ou rodoviária velha). A estação rodoviária na rua Jacob Becker deixou de operar lá há quatro décadas, mas o ponto segue sendo uma das principais referências da parte central da cidade e quem lembra bem desse tempo de ‘formigueiro’ no entorno da esquina é Vanderlei Mosmann. Mais do que um passageiro que muitas vezes chegou e partiu daquele lugar, era foi um dos responsáveis por anunciar, em sistema de som, horários e roteiros dos ônibus. No início da década de 1980, quando tinha cerca de 15 anos, mas já com uma fala de timbre forte, Mosmann ficou conhecido como ‘a voz’ da rodoviária.
Salinha de sonorização
“Parte agora o Expresso Gaúcho, com destino a Porto Alegre, via Mariante. Auto Viação Venâncio Aires, com destino a Lajeado, em horário semidireto. Senhores passageiros, uma boa viagem! Num oferecimento de Canto Quente, com as mais afamadas marcas e a novíssima jeans Levi’s.”
Empresas, itinerários e até os textos comerciais seguem vivos na memória e na boca do marceneiro Vanderlei Mosmann, 56 anos. Na virada da década de 1970 para 1980, ele, ainda adolescente, começou a trabalhar com o irmão Paulo e o amigo Nilton Moraes (ambos já falecidos), na ‘Comunicasom’, equipe montada especialmente para fazer a sonorização da rodoviária de Venâncio. A ideia surgiu porque um irmão de Nilton tinha o mesmo serviço na rodoviária de Taquara e Paulo e Nilton, jovens na casa dos 20 anos, viram nisso uma oportunidade de trabalho.
Com dois amplificadores, um equalizador, um microfone, uma mesa analógica de oito canais, dois tape deck para fitas K7 e outros equipamentos das marcas Gradiente e Cygnus, os jovens se instalaram numa pequena peça de 1,30 metro de largura, que tinha uma janela de vidro para a calçada. Mosmann, então adolescente que também frequentava o espaço, logo começou a ajudar e, devido à ‘voz de locutor’ que já tinha na época, se tornou o principal responsável pelo microfone.
No entorno do supermercado dos irmãos Artus, bem na esquina, instalaram caixas de som sob a marquise e outras nos demais prédios subindo a rua Jacob Becker. “A gente não pagava aluguel pelo ponto e o dinheiro que ganhávamos era com as propagandas que fazíamos para o comércio”, lembra Mosmann. Além do supermercado Artus, entre as empresas que eram citadas logo após o anúncio dos roteiros de ônibus, estavam os supermercados Avelino e Marquetto, a loja Canto Quente (onde hoje é a Farmácia Haas), Farmácia Leuckert, Cléris Calçados e a Três Guris.
Das 5h30min às 22h
• Vanderlei Mosmann conta que chegavam às 5h30min para preparar o equipamento, porque às 6h saía o primeiro ônibus para Porto Alegre. “Às 6h15min já saíam os Auto Viação Venâncio Aires [Viasul] da família Büchner.” De acordo com o marceneiro, os jovens ficavam na salinha de som até depois das 22h, quando partia o último ônibus, da Expresso Gaúcho. Isso de segunda a sábado.
Movimento, música e encontros
Vanderlei Mosmann conta que a rodoviária na rua Jacob Becker fez daquela quadra e esquina com a Júlio de Castilhos o ponto mais movimentado da cidade. “Imagine diversos ônibus estacionados em oblíquo na Jacob Becker, até quase a esquina com a Osvaldo Aranha. Quando davam ré, quase encostavam na calçada. Sorte que a rua era mão única na época. Quando saíam, muitos subiam a ‘principal’, que era mão dupla.”
O marceneiro lembra, numa época em que poucos tinham carro próprio, a rodoviária, inevitavelmente, virou o local em que quase todas as pessoas circularam em algum momento da semana ou mês, principalmente agricultores e estudantes. “Era um verdadeiro formigueiro. Um movimento gigantesco o dia todo.”
Além de anunciar os itinerários e comerciais, a ‘Comunicasom’ preenchia os espaços com música. Eram clássicos do rock nacional e internacional, gravados em fitas K7. “Os mais jovens vinham pedir muito Elton John e John Lennon. A gente deixava um bloco e caneta do lado da janela para anotar, porque o pessoal batia ali para pedir música”, comenta Mosmann. Era uma espécie de ‘rádio FM’ própria, bem antes de Venâncio ter sua primeira emissora FM, a Terra, em 1987.
‘A voz’ da antiga rodoviária também lembra dos encontros que o local proporcionou e que levaram, inclusive, a casamentos. Isso aconteceu com ele próprio, já que foi na rodoviária que conheceu a primeira esposa. O irmão dele, Gilmar, que chegou a trabalhar na sonorização do ponto, também conheceu a esposa no local. Está casado com Glória há mais de 30 anos.
“Meu filho Sander, de 22 anos, cresceu ouvindo isso e também fala do local como ‘antiga rodoviária’. Por isso acho que esse termo nunca vai morrer. Para os mais velhos e os mais novos, aquela esquina sempre vai ser a ‘antiga rodoviária’.
VANDERLEI MOSMANN – Marceneiro
Muito antes do microfone
Antes da ‘Comunicasom’, qualquer informação relacionada aos ônibus que chegavam e partiam era dada ‘no grito’, sem microfone, nem caixas de som. Quem lembra bem desses tempos da Venâncio Aires ainda em preto e branco é Itor da Rosa, 82 anos. Pinga, como é conhecido na cidade, é bancário aposentado e ex-secretário Municipal de Indústria, Comércio, Turismo e Desporto dos governos Glauco Scherer, Almedo Dettenborn e Celso Artus.
A relação dele com a rodoviária remete à metade da década de 1950, quando era adolescente e começou a trabalhar como garçom no Café Central (onde por último estava a Bade Esportes), local onde funcionou a primeira rodoviária de Venâncio Aires. Itor trabalhou lá entre 1955 e 1959, ano em que saiu para servir ao Exército. Ele conta que o prédio da rua Osvaldo Aranha era considerado o ‘point’ da cidade. Nele, se discutia de um tudo, como política, futebol e corridas de cavalo. Ali também se conferiam os lançamentos de filmes em cartaz no Cine Imperial, se encontravam amigos e namorados, e desconhecidos também se tornavam conhecidos depois um café por lá.
“Quem anunciava os ônibus, do balcão, no grito, eram Rubem Joaquim Harres e Celso de Boer”, relata Itor da Rosa. Harres e Boer eram cunhados e a família Harres tinha a concessão para a rodoviária, junto ao Café Central, cujo prédio, conforme Itor, era de propriedade de Arno Schuck. O aposentado lembra de um detalhe das linhas de ônibus que faziam a região de Vila Palanque e Mato Leitão, no barro vermelho. “Quando chovia, eles enrolavam correntes grossas nos pneus, para não atolar. Se assim não fosse, nem a rua principal conseguiam subir.”
Conforme Itor, na virada para a década de 1960, Schuck e Benno Gassen compraram um prédio na rua Jacob Becker esquina com a Júlio de Castilhos, onde passou a funcionar uma churrascaria e a rodoviária acabou se mudando também. Isso marcou o começo da história desse ponto de referência que já passa gerações e marcou o começo de muitas outras histórias. Como da professora Jaqueline de Boer dos Santos, 56 anos, filha de Celso de Boer, que também frequentava a rodoviária, ainda que de passagem, já que era o caminho quando estudava no Colégio Aparecida. Foi no local que ela conheceu o marido, João dos Santos, que trabalhava como fiscal da rodoviária. Isso foi no início da década de 1980, quando Vanderlei Mosmann já fazia a sonorização do espaço e época de transição da rodoviária para outro ponto de Venâncio Aires.
Em novembro de 1983, foi inaugurado o Terminal Rodoviário Alfredo Scherer, no bairro Cruzeiro, local que segue ainda hoje. Quase 40 anos depois, há quem ainda chame o espaço de ‘rodoviária nova’. Mas está tudo bem, porque o venâncio-airense vai continuar tendo sua ‘antiga rodoviária’.